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Friday, August 25, 2006

Carta de um jovem são, Paulo

Eu sou Paulo
De São Paulo
E num pulo
Paro e percebo
Nós somos sãos
Nem tão santos
Feito Joões ou Josés
Anjos Gabriéis
Eu não pressinto
Que possa ser santo
Não careço disso
Tal como vós
Pois é mansa
Nossa cidade
Repleta de estrelas
Oclusas pela poeira
E gentes
Por todos os cantos
Em cânticos
E prantos
Suplicando
Pelo santo
São
Em vão

Tuesday, August 22, 2006

Lívida

Branca é a tez de enquadro
Teu sorriso generoso
Comburente de amor em paz

Preto ampara tuas melenas
Debruçadas no alvo sardento
Sedento de mar e luz

Azul de céu faz janela
Em tua casa nobre, rasa
Morada de sol
Jardim da primavera
Que recomeça e recorda
Teu belo nascer

São flores e flores
Que brilham, cheiram
Anunciando tua chegada
Tua presença cálida

Lívida
Límpida

Monday, August 21, 2006

A menina dança

As sapatilhas deslizam
Demonstram candura
Ao beijar o tablado

Porque a menina dança

Eu, velho calado
Sussurro alegria
A qualquer companhia
De vista que não cansa

Por que a menina dança?

Solta no ar, flutua
Felicita
Brilha sozinha
Voando faceira
E me faz de criança

A menina dança

Aplausos, são muitos
Em solene palco
De breu em vez de talco
Debret encanta olhares

Alva e pequena
Doce e segura
Flanando rasante
Em sorriso breve, leve

Breve

Leve

Que ameniza e entorpece
Ao som da lembrança
Tirem-me a mordaça
Eu quero falar de amor
Todo puro e mágico
Aroma de amor

Porque a menina dança


Paulo Roberto Andel - 21/08/06

Friday, August 18, 2006

Jangão

Escutei o choro de minha mãe ao telefone e parti rapidamente para casa.
Coisa de cinco da tarde.

Soube então da morte de meu tio.

Foi um homem bom e carinhoso. Teve uma vida de percalços. Muito pobre e batalhador árduo durante boa parte da vida. Lembro-me em 2002, quando ele mostrara-se tão orgulhoso ao me conhecer; eu sou único universitário dentre mais de cem familiares por parte materna e, embora isso não tenha a menor importância pessoal para mim, dele tive um tratamento de pai durante uma semana que passei em Ponta Grossa, cidade paranaense.

Levei trinta e seis anos para conhecê-lo e só tive uma semana, única.

Minha mãe, criança ainda, saiu de casa para buscar emprego em Curitiba nos anos cinqüenta, visando ajudar a família em casa. Não tinha dez anos. Passou em casas de família, dormiu na rua, sofreu. Acabou conhecendo um grupo de ciganos e, por consequência, veio parar em Resende, na divisa entre Rio e São Paulo. Nunca conseguiu dinheiro para voltar. Sofreu.

Quanto eu tinha vinte anos, comecei a tentar pesquisar o possível paradeiro da família. Foi uma década perdida: com a morte de meu avô, os humílimos filhos sequer tinham certidões de nascimento, e todos foram registrados com o sobrenome Antunes, não o correto Quadros – por isso, nunca os achei em listas telefônicas ou similares.

Com o advento da rede mundial de computadores, passei a pesquisar em salas de bate-papo, sem qualquer sucesso. Um dia, uma moça que jamais conheci, ao saber da história, manteve-se anônima mas ficou de fazer chegar meu pedido a quem pudesse ajudar. Dias depois, um homem de grande coração, Rubens Tuma, telefonou-me; confirmei a história e prontificou-se a ajudar. Dias depois, nosso pedido de contato foi veiculado em uma grande rádio popular da cidade e, com isso, conseguimos realizar o sonho de fazer minha mãe rever os parentes. Alguns não puderam esperar, já eram idos; outros, muitos, lá estiveram e a abraçaram como nunca. Se alguém tivesse me perguntado qual foi a coisa mais bonita que tinha acontecido em minha vida, eu certamente teria dito que foi essa, a de ajudar a plantar felicidade no coração da minha amada mãe.

Tempos depois, uma tia faleceu. Minha mãe chorou como nunca, à distância de mil quilômetros, como ontem – e, para nós filhos, esta é a pior das dores: ver o sofrimento dos pais.

Meu tio, depois de uma vida de muito sacrifício, nos últimos anos de vida arrendou um barzinho, onde faziam serestas, coisa muito simples, típica da boa gente do interior. Na única semana que nos vimos, abraçou-me muito e parecia feliz. Devia ser mesmo.

Sinto uma dor enorme. Não sei descrever.

É a dor da distância.
A de não poder ter vivido as coisas. A de não poder ter ficado mais perto da minha gente, nem minha mãe, coitada. Não foi culpa minha, mas era merecido um jeito diferente de lidar com isso.
Ao meu tio Jango, João Maria, nome mais que brasileiro, meus sinceros melhores sentimentos de amor.


Paulo Roberto Andel 18/08/06

A balada da moça distante

Vieste na névoa ensolarada
Do fim de tarde na Guanabara
E a baía, luzidia, dava-te silêncio
De compaixão

Contemplação

Foste vinda do vento, de longe
E, de perto, eu já não entendia
O que te reluzia
Na beira parada do quase cais

Quando a tua voz doce, rápida
Vibrava entre versos simples
E mesmo por alfarrábios
Meus ouvidos tomavam-te
Por licor
O leve licor de suave luar

Por onde andas?
O que tivestes?

Pouco importa de fato
Pois a beleza do acto
É tua aparição
Seja o que for
Haja o que houver
Na luz de Madredeus

Teus olhos majestosos moram em mim
Feito dois diamantes
E ocupam duas casas
Uma de cabeça
Outra de coração

A trilha de tua morada
Entre majestosos arbustos
E frutos dadivosos
Faz sete candeias
Cândidas neves
Cânticos de lírio

E um breve intervalo
Para que venhas serena
Violante morena
Pérola de mar celeste

Beijo de brigadeiro ao léu
Azul de instigante céu

Lábios dos mais belos beijos
Velas dos melhores castiçais


Paulo Roberto Andel 18/08/2006

Friday, August 04, 2006

A esposa do ginecologista

Não entendo muitas coisas neste mundo, é verdade, mas nada me incomoda mais quando penso em certos papéis desempenhados por determinadas pessoas. Não sei, ou até sei, que se é pelo fato de eu ser mulher e uma mulher relativamente normal ou se eu sou anormal mesmo e fico intrigada com coisas sem importância. O fato é que eu não acredito que exista esposa de ginecologista neste mundo.

Começo pensando em um trabalho normal, como outro qualquer. Pense em um! Obviamente não pode ser o ginecologista porque ele não se enquadra nesses termos... mas um dentista, por exemplo. Imagine agora um dia comum de trabalho deste dentista: abre boca, fecha boca, o próximo! Abre boca, fecha boca ... o dia inteiro nisso. Agora, imaginemos nosso normal lidador chegando ao aconchego do lar, exausto depois de um duro dia de trabalho... não agüenta mais ver uma boca aberta na sua frente. Quer ver televisão, ler um livro, conversar e namorar sua esposa...

Acho que não preciso citar outros exemplos. Para que vocês entendam onde quero chegar, podemos ir direto ao nosso estranho trabalhador: o ginecologista. Poupemos-nos dos detalhes do seu dia e vamos direto ao final de sua jornada, a sua chegada ao seu doce lar. A sua necessidade merecida de descanso, estacionando o carro na garagem... quem abre a porta de casa para recebê-lo? Ela! A sua esposa que é a causa da minha indignação e descrença.

Vamos continuar a imaginar o casalzinho feliz em casa. Toca o telefone, a esposa atende. Uma voz feminina do outro lado inicia:

“-Alô, o Doutor Arthur está?”

Sua voz é de coitadinha, pois está sofrendo de algum mal que até Deus sabe aonde. O doutor vem prontamente atendê-la e carinhosamente pergunta:

“-O que está sentindo?”
Silêncio. O doutor está ouvindo. “Estarei lá na clínica amanhã, dê um pulinho lá para eu dar uma olhadinha, enquanto isso pode ir aplicando...” e a doce e feliz esposa à mesa com o jantar esfriando ouvindo esta conversa. Desliga o telefone e o jantar prossegue naturalmente. E depois vão para cama, onde juram que tudo acontece como em qualquer outro lar. Ora, quem pode acreditar que esta cena é real sem questionar se o casal não é de outro planeta?

Já tentei perguntar a esses enigmáticos homens sobre esta minha inquietude e todos mentiram da mesma forma: é diferente. Olhar a esposa é diferente de olhar uma paciente. Como isso é possível? A não ser que a esposa seja “realmente” diferente - o que torna a história mais assustadora. E para onde as esposas vão quando tem problemas ginecológicos???

Vamos além, dizem esses seres que é um trabalho como outro qualquer. Que “analisar” uma mulher é, na prática, igual ao que qualquer mecânico de automóvel faz. Levamos o carro com problemas, ele olha e dá o diagnóstico. É claro que como a mulher é um ser humano há um cuidado maior na forma que o problema será tratado; porém, é fato, que não há nenhum deslumbre ou uma emoção da parte do médico ao ver sua paciente de pernas abertas na sua frente. Se assim for, agora temos uma situação mais estranha ainda. Trata-se do médico examinando sua paciente no consultório.

Todas as mulheres sabem que ir a um ginecologista é um evento, seja lá qual for a freqüência que o vemos. Preocupamos com a nossa “aparência”, nos olhamos no espelho sob determinados ângulos que não nos vemos todos os dias, algumas passam perfume, todas tomam um banho mais demorado... Enfim, chega a hora de contarmos o nosso probleminha ou apenas fazer um simples preventivo. Conversamos um pouquinho até que ele nos olha com certo jeitinho e diz para nos trocarmos, isto é, que é para colocarmos aquela camisolinha que está pendurada no banheiro do consultório. Faço xixi? A mulher nervosa pensa. E se o papel ficar grudado? Jogo água? Me enxugo como??? Deita-se na cama. Será que estou bem? Ouve-se a voz dele: "relaxa, meu bem." Devo me fazer de meiguinha ou relaxar como ele pede? E se eu soltar um pumzinho sem querer? Ai meu Deus! O médico a examina... "Quanto será que foi o jogo de ontem?" Era só o que faltava...meu time perder de novo! Será que vai dar tempo de passar no banco? Ih, não posso me esquecer de ligar pro... pronto, querida, acabou! Depois conversam médico e paciente, despedem-se e... próxima!

À noite, a paciente lembra que esqueceu de perguntar algo para o médico. Liga para a casa dele, atende uma calma voz feminina.

“-Alô. Alô, o Dr Arthur está?”

“- Ele ainda não chegou, quer deixar recado?”

“- É que eu estive com ele hoje, meu nome é Elika e, bem... ele sabe qual o meu problema, é que eu esqueci de perguntar a ele uma coisa.”

“- Ligue mais tarde, ele chega daqui a pouquinho.”

“- É que eu fico sem graça em ficar incomodando...”

“- Bobagem! Pode ligar, o trabalho dele é esse!”

“- Com quem estou falando?”

“- Com a esposa dele...”

Neste momento, a origem do Universo, a física quântica e a desigualdade social viram objetos de simples pesquisa - e me repreendo ao ter ensinado aos meus filhos que fadas e ETs não existem.


Ao meu ginecologista e sua esposa com carinho
Elika Takimoto

Monday, July 31, 2006

O frio domingo

Ontem não era propriamente o que se chama de um domingo de regatas.
Houve um frio enorme na Guanabara; as ruas eram vazias e, portanto, cheias de silêncio ocasionalmente cortado pelo tilintar das gotas de garoa nas peças metálicas de bueiros, tampões e semelhantes.
O sopetão de inverno deixou os bairros calados, serenos, acolhidos pelo cinza que se fez de celeste.
Segui a minha rotina habitual de vários domingos, vários dias e anos: ir para o Maracanã, o mesmo que está na minha vida tal como um parente querido, que tantos insistem em derrubar. A rotina foi levemente alterada pelo fato de que utilizei o metrô como meio de transporte - normalmente gosto de ver as ruas, os caminhos, mas a falta das gentes e a garoa me incentivaram à troca. De qualquer forma foi bom: houve um clima de subway no metrô, de fog, alguma coisa londrina que não sei determinar ao certo. Muitos botafoguenses, alguns tricolores, várias meninas lindas, todos devidamente agasalhados.
E tive lembranças.
A primeira, quando foi necessária a triagem para a linha dois, que conduz até o estádio. Sou do tempo em que eram somente as estações de São Cristóvão e Maracanã - hoje, é um mar delas, chega até Pavuna, coisa impensável antigamente.
Outra, durante o jogo, com pouco público, devido às campanhas reticentes dos times e o frio, mais o afastamento natural que tem ocorrido dos estádios: televisão, preços, violência, tudo tem sua parcela. Houve um Fla-Flu há vinte anos, também num dia chuvoso, que teve vinte mil pagantes; eu achei um absurdo - como poderia um jogo dequela estampa ter um público tão pequeno? Agora, dependendo da ocasião, vinte mil é para lamber beiços inesgotavelmente.
O jogo em si não trouxe os alfarrábios à minha mente. Foi fraco, lento, quase desinteressante, indigno da rivalidade centenária entre o Fluminense e o Botafogo. Porém, quem frequenta o Maracanã sabe da magia que é estar nele presente, nem que seja para vaiar a pior pelada dos últimos doze mil anos - e quem frequenta de verdade, com fé, não concorda e jamais há de concordar com a aberração que seria demolir não um estádio, mas a prima dona do futebol brasileiro que, copas fora ou não, ainda faz as vezes de banca no carteado da bola. Quando o jogo é ruim dos dois lados, tirando uma surpresa do destino, termina como ficou de verdade: com empate.
O dia frio teve seu último capítulo de lembranças quando desci a avenida Maracanã. Subitamente, deixei-me tomar pelos anos setenta. Na mesma avenida, outrora, meu pai dava-me a mão para atravessarmos. Em sentido contrário ao dos carros, virávamos à direita, na São Francisco Xavier, invariavelmente à espera do 434 ou 435, que nos deixava na porta de casa, Siqueira Campos. Tempos de uma casa muito pequena, estávamos até sem mesa de jantar; minha mãe preparava a comida e servia numa mesinha que não tinha mais do que um metro de área. Bebida era refrigerante, feito até hoje. Na televisão, a espera pelos gols do Fantástico e, mais tarde, pela reprise do jogo na TVE. Não foram poucas as vezes que isso aconteceu, basicamente entre os anos de 1979 e 1981, quando então eu já comecei a ir sozinho ao estádio - recordar é viver, tempos em que era normal um garoto de treze anos ir sozinho ao Maracanã.
Ao final da avenida, prestes à tradicional direita, vi-me sem a mão de meu pai, sem o 434, a Siqueira Campos. Tenho hoje duas mesas, quase grandes, com refrigerante. A família estaria em casa, felizmente, mas é certo que nenhuma janta estaria à minha espera. TVE? Gols do Fantástico?
Dei-me conta de que, mais do que a magia do futebol, tão embriagante para mim, é a eterna saudade de ser criança, criança na essência absoluta, e não ter que enfrentar as segundas-feiras com suas gentes, reclamações, contas e tristezas vãs.
Paulo Roberto Andel - 31/07/06

Thursday, July 20, 2006

Ode à pequena mendiga

Lembro-me de que uma menina era linda
Logo à vista fitei seus olhos esverdeados e faiscantes
Trajava uma roupa poída, porém tratada e honesta
Alguns traços cinzentos cobriam os braços maltrapilhos
Esmolados, esfomeados na escada da estação de trem
Que avizinhava-se da Rua da Matriz

Eu, nós, eu, criança tomada pela mão, trazida pelo pai
Era menino de longe, muito longe, outra Copacabana
Ela era pedinte, talvez filha da outra mendiga na parte baixa
Chorando pelas moedas aos pés da mesma escada

O pai me passou na roleta, eu despedi-me com o olhar para nunca mais
Não sei dizer da formosura de seu rosto, as formas, outros detalhes
Cabe-me apenas recordar de sua candura e seu olhar
Brilhante, colorido, desesperado, fugidio


Não haviam ensinado-me o que eu tinha acabado de sentir
Um breve instante que há muito trago no peito, na memória
E sempre recordo toda vez que a mulher mais linda
Já vista pelos doces olhos do meu cansado coração
Surge à minha frente, de repente, em trajes vermelhos, pretos

Volto a ser criança e me espanto com a imagem distante
É o amor que me remota à beleza da mulher, a leveza da menina
Que mora eternamente na mendicância, em qualquer escadaria
Que faça às vezes daquela, perto da Rua da Matriz

Onde estará a menina? Viva? Linda? Vadia?
Onde morrerá a menina? Perdida na esquina?

Onde reside o amor que inunda minh’alma desde a infância?

Perto de algo que lembra Cristo?
Longe de tudo o que fala de Deus?


Paulo Roberto Andel - 20/07/06

Parassimpático

Parassimpático

Feito de cranianos nervos
Alojando-se pelos núcleos
Alvejando certos órgãos

Sacramentando vidas
Vistas, faces, vozes, vagas

Parassimpático
Perto de ação final
Morando nos gânglios
Tronco cerebral
Medula sacral

Do vago a Edinger-Westphal

Parassimpático
Parasatisfeito?

Paramétricontroladoesquerdorsonu



Paulo Roberto Ândel - 20/07/06

Friday, July 14, 2006

Sodade

Bastou um estalo, um breve sussurrar da televisão de baixo volume, um sono leve e eu me deparei com o branco opaco do teto.
A meu lado, não estava quem eu somente queria.
Havia silêncio a preencher os espaços d'alma, majestoso feito duas mil orquestras num carnaval de sonhos a olhos abertos, atentos.
Não era o posfácio de um dia difícil, tampouco resquício de mágoa ou desconforto. Nada disso.
O teto beijou minha vista quase embriagada e me trouxe à mente uma única palavra: saudade.
Ah, a saudade! Esse rio, um turbilhão.
A saudade que mora em Cabo Verde, numa canção de Cesaria Evora, preencheu-me. Tudo junto, num instante.
Era do amor que tanto prezo, sem retorno. Dos amigos queridos, que foram para o infinito. Breve lembrança da oitava série, debruçado na janela da sala e fitando o Atlântico Sul. Corrida na pista do Forte do Leme, picolé com Vera. Jogo de botão debaixo da escadaria do shopping center. Reunião ao sábado no grupo de escoteiros. Não-beijo na Tatiana, perto da Sá Ferreira. A pizzaria Caravelle. O bar do "Seu Manel". A casa do Buja. Atari com Ricardinho. Arroz à piemontese na Bella Blu. Viagem despretensiosa para São Paulo, aparentemente sem maiores motivos.
Em segundos, minha vista firme no vazio do teto serviu de combustível para cinco mil viagens, todas somente possíveis na perfeita harmonia da confusão mental, cada idéia em dois segundos enquanto o mundo girava muito mais rápido do que de costume.
Saudade dos meus tempos de faculdade. Saudade do Maracanã, da universidade. Saudade de Arraial do Cabo. Saudade de outra linda Tatiana. Teresópolis. Raiz da Serra. Patis. Guanabaras. Niteróis, especialmente: uma viagem que fiz na madrugada, sozinho na proa da barca, sentindo-me um verdadeiro pirata e deliciando-me com o barulho breve d'água, na solidão mais bem-acompanhada da minha história. Friburgo, na volta, abraçado à mais bela das belas. Resende, na ida. Mendes, na estadia.
Quebrei o tempo por um instante e liguei o aparelho de discos. A doçura da poesia de Francisco para superar beleza do outrora silêncio.
A fresta da janela permitiu-me ver outros quartos, de outros apartamentos. Luzes apagadas, ausência de outros ruídos, todos os tudos desligados. Talvez três da manhã, imaginei.
Outras saudades bateram-me no peito preciso. Das mais simplórias, feito a de um milk-shake, até as de maior sofisticação, tal como um show de Jane Monheit. Saudade da boa conversa do Moraes. Saudade da viagem com Tatiana. Saudade da prosa de Breno. E Alessandra? E Luciene? E Ana. Todas de beleza sem fim.
Deixasse o tempo correr em meu descanso, não faltariam motivos para lembrar e pensar em mais e mais saudades. Algo que se sente e é difícil de descrever ao certo, mas que pode ser traduzido como um prazer celestial de repetir o que se passou - mesmo que essa passagem ainda esteja presente e que vá se repetir por muitas outras quinzenas.
Juarez Machado, o grande artista, disse em certa vez que só seria realizado em sua profissão quando conseguisse desenhar a saudade.
Como expressar a saudade em arte? Como dialogar com a saudade? Eu não sei. Dela, minha ignorância só permite-me aproximar através do sentir, do pensar, do refletir no meio de madrugada vadia, entre calados e música de leveza. E foi isso que tanto fiz em efêmeros momentos do descanso interrompido.
Imaginei ser hora de guardar a saudade, para ter saudades da saudade e posteriormente recordá-la, sorvendo cada pedaço feito uma deliciosa iguaria ou um drinque apoteótico; dei cabo temporário aos pensamentos.

Recolhi-me à prévia antes do novo sono discreto.

Idílio à vista não havia, meu coração era morador de um bairro distante, suburbano.

Não pedi licença em meu espaço na cama. Desnecessário, pois.


Paulo Roberto Andel - 14/07/07

Monday, July 10, 2006

Fora de sim

Quando dei por conta, eu não estava mais ali
Éramos muitos na companhia, todos falantes, felizes
Meu silêncio se fazia de voz aguda, translúcida
Transportada para a calma infinita
No vazio que era pura presença e pertinência

Havia algo de feliz no semblante da moça
Decerto não sei descrever na plenitude
Mais que bastante, por mais de um instante
Contagiado fiquei, solidário e participante
Não era a mudez que me restringia do ato
Pois fato era que eu permanecia
Com a chama ardente em meu coração

Houve um momento fora de propósito
E poucos foram dos mais atentos
Foi relento que nos deu testemunha
E carinho nos serviu de guarita

De repente, veio um rompante
Dois lábios que avoaram ligeiros, acesos
Feito aves em bando, para meu espanto

Quando dei por conta, eu não estava mais em mim
Era toda praça, cada pedaço, todo lugar
Toda estrada de batida terra, paz e guerra
Sóis e céus por detrás dos véus
Meu lugar era dela, por ela

Presente sentinela

A guardar o melhor do amor.


Paulo Roberto Andel, 10/07/06

Tuesday, July 04, 2006

Um rosto

Minha vista enevoada
Fitou um velho rosto

Entre tantos na multidão

Com seus olhos pequenos
Lábios limpos
Saborosos
Sorriso de linho
Moldura de cachos
Especiais
Nada banais

Calei frente ao rosto
Consenti
Carinhei minh’alma
Deserta
Pequena
Vaguei no mar da lua
Quase nua

O rosto me deu uma prece
Agradeci o viver

Friday, June 23, 2006

As coisas que nunca mudam

Você está parado e, de repente, as lembranças sobrevoam pela mente feito pequenos outdoors, incessantes e permanentes. Basta silêncio que a memória há de agir navegando pelos passados. Pode ser um grande jogo, um motivo de risadas, a mulher amada, o amigo que se foi antes da hora, quase tudo. Nosso tempo é hoje, agora, já. Contudo, o passado, mesmo que devidamente bem controlado, guardado hermética e seguramente em compartimentos devidos, surge quando menos se espera. Aquelas caixinhas que ficam devidamente preservadas, que nos fazem quase sempre bem quando ressurgem – e que nunca mudam.

Uma vez, lá ao longe, eu gostei muito de uma garota. Coisas dos tempos de faculdade, quando tudo é encantamento, beleza e poesia. Ana. Era mais nova do que eu, mas já trabalhava, carteira assinada, assistia às aulas arrumada pelo rigor da profissão, era um encantamento. Logo que a vi, chamou-me atenção o fato de que falava pouco em público, parecia inicialmente tímida e era mesmo; muito depois, soltou os cachorros, mas era outra história. Timidez de lado, eu gostei de que não fosse uma daquelas garotas fúteis, que já trabalhasse e tivesse responsabilidades, me inspirava confiança e nem sei bem por quê. Adorava seus cabelos tingidos com as luzes, seu sorriso. Lia, conhecia jazz, bossa nova e, assim como eu, eleitora de Brizola. Assistimos juntos ao dia que Luiz Carlos Prestes concedeu uma de suas últimas palestras, na universidade da Guanabara. Ficamos amigos. Tinha namorado, separou-se. Fomos a uma festa em Niterói num agosto distante; o aniversariante, famoso no circuito colegial por suas conquistas, não tardou em assediá-la, mas foi educadamente dispensado. Acabei beijando-a na beira da piscina, sob aplausos de um casal de bêbados, na mesma rua onde, muitos anos depois, outra menina que depois namorei tinha uma casa. Coisas da vida.

Eu, menino pobre, gostava de suas conversas, de sua alegria, do fato de que ela gostasse da minha companhia mesmo quando andávamos de ônibus, íamos ao Bob´s ou caminhávamos na praia iluminada de Copacabana. Tudo simplicidade, mas deliciosa. Trocávamos presentes, ríamos, divertíamos um ao outro. Adorava aquele beijo. E por que não namoramos? Confesso que não sei dizer. Deve ser da garotada, quando você ainda não tem segurança para certas coisas, talvez.

Aconteceu, um dia, de a moça loura de tinta ir embora, ainda não sei se para sempre. Casou, separou, Perdemos contato há uns dez anos, melhor assim. Em mente, tudo devidamente arquivado.

Um velho amigo inventou de me colocar de novo em sala de aula, não para dar aulas, sim como aluno. Eu, que já tinha minha carreira tida como encerrada, dei fim ao fim. Houve um outro agosto, outra faculdade, outra ansiedade de estréia e tudo novo de novo. Os companheiros de sala foram apresentando-se, conforme instruções de uma professora. Um menina novinha, bonitinha, então calada, sentada à direita, fitei rapidamente. Casada, pelo anel à vista, respeitosamente. Passaram-se uns dois ou três dias, até que alguém conversava no fundo da sala por perto, e assustei-me: num instante, veio-me à mente o cabelo tingido, a boca escarlate, os dentes alvos, os olhos pequenos, depois de tanto tempo. Evitei olhar para trás no instante: pensei que Ana estivesse na sala. A voz, sim, a voz ali estava, timbre fino, agudo, quase inconfundível, como se aparecesse ecoando por meio de uma fita cassete interminável. Esperei mais alguns momentos antes de virar para trás e ver quem era a ressurreição da voz de Ana, já que a mesma nunca estaria ali. Melhor, quase nunca.

Quando vi, surpreendeu-me constatar que a dona daquela voz, em beleza sorridente, era idem a do lado direito de outro dia. Olhei e gostei. É bom rever boas coisas na memória, mesmo que a origem da produção das lembranças seja completamente involuntária, pois.

Ana? Não. Alívio? Ah, Lívia.
(Andel Roberto Paulo, 06/23/06)

Wednesday, June 21, 2006

21 de junho

Agora, início de nublada tarde na Guanabara.

Não há, no momento, grande ameaça de chuvas, que tanto atormentam os nativos da cidade, principalmente aqueles que fazem das marquises o próprio teto. Parece um dia de calmaria: trânsito de carros escassos, muitos na expectativa de mais uma partida na Copa do Mundo, quase um feriado disfarçado, exceto pelo comércio que não pára, pois vender é preciso.

Junho, das festas, das conquistas.

Chegou o inverno.

Os dias já estavam frios para nós, em nossa capital, desde o outono. As noites também chegaram mais cedo.

As folhas que caíram das árvores foram devidamente recolhidas pelos servidores de limpeza.

Há um certo clima pelos arredores, ora de nostalgia, ora de recolhimento. O frio, embora esse, nosso daqui, não seja genuinamente gelado, humaniza. Flanam os romances de orla, gestos mais comedidos, certa calmaria. Os que podem, vestem-se melhor; mesmo os mais humildes cuidam-se, com seus velhos casacos e gorros.

Será bonito ver Ipanema e Leblon tendo o céu elegante e levemente cinzento, feito nos tempos em que conversava com Pedro Brito nas pedras do Arpoador. Ou ainda, quando Tatiana era linda em meus braços.

Serão três meses de reflexão, quase meditação. Nossos dias de fog londrino chegarão.

Mesmo sem crença, torcerei contra as tempestades e contra as mazelas da pobreza que insiste na cidade, injusta que é.

No mais, pelas noventa noites a seguir, nós todos, de certa forma, estaremos pacientemente brindando nos cafés e cantinas a expectativa da chegada da primavera, com suas novas flores e promessas ao alcance de uns e outros, não de todos.


(Paulo Roberto Andel, 06/21/06)

A crônica partida

De acordo com alguns homens das letras, por vezes tidos como de brilhante espectro intelectual, a crônica é tida como um gênero literário “menor”. Coloco aspas na diminuição: a meu ver, são válidas porque discordo frontalmente dessa opinião. Como poderia ser menor para nós, brasileiros, uma expressão cultural que nos deu simplesmente Rubem Braga?

Eu, que cronista não sou, defendo a idéia central do velho Braga a respeito do tema: crônica é viver em voz alta. Mesmo que passe pela auto-bustificação, conforme a visão de outro craque, Ivan Lessa.

A crônica é o jeito de garantir eternidade aos momentos que, por confusão mental nossa, minha e sua sim, parecem desimportantes, mas não são. Para mim, é o resultado da vista firme do poeta que se reflete nos comentários, todos que não precisam ser os de maior profundidade.

O bem que confronta o mal; o sol que brilha na tarde que sucedeu uma manhã nublada; o sorriso da criança; o olhar da mulher amada; um humilde engraxate em busca de seu ganha-pão; o disco que toca a bossa; o melhor time da semana; a traição e a verdade; o fim da linha. É tudo simples e definitivo. É tudo vida.

Em crônica, tudo cabe – assim, não é o gênero menor, e sim o maior, o mais profundo. Cheio de formas e nuances.

Uma crônica reticente ou definitiva? Pode ser, pois.

Uma descrição rasa ou profunda? Também.

Recheada de palavras que nos tragam ventos de delicadeza ou da mais pura aspereza, quem sabe?

Viva? Permanente, mesmo que feita para o entendimento efêmero.

A crônica é partida constante para um infinito de idéias que, gigantescas ou curtíssimas sejam, congrega a síntese do eterno presente em que vivemos. Repetidas vezes, tal como fosse uma crônica e incessante partida rumo ao mar da tranqüilidade. Redundante pelo próprio nome: crônica.

Ou ainda a crônica partida, rasgada, de cujas entranhas venha sempre um novo amontoado de palavras, quase versos, capazes de expressar a nossa, humana, genuína capacidade artística, que é a de pensar.
(Paulo Roberto Andel, 21/06/06)

Monday, June 19, 2006

Saudades da graça

Lá pelos tempos de oitenta e nove, coisa de uns dezessete anos, eu era apenas um rapaz latino-americano, sem parentes importantes e nativo da Nova York brasileira, Copacabana. Uma década antes, eu gargalhava sozinho ao ler os textos de Ivan Lessa no então vivo Pasquim, e sentia-me chateado porque nenhum outro amigo sabia sequer do que eu ria com o jornal de “oposição”, assim falavam. Adorava os palavrões, os insultos aos leitores, tudo coisas que eu não tinha a plena noção, assim como a de que Ivan é um gênio e que, se um dia eu aprender a escrever direito, devo tudo a ele, velho Ivan.

Volto aos oitenta, quase noventa. Uma dureza danada, começo de faculdade, pai contra, dificuldades. Houve um dia em que paralisaram a faculdade, voltei para casa, perto de nove da manhã, resolvi caminhar pela beira do mar em dia nublado. Desci a Figueiredo velha de guerra, rumo ao Sumol, esquina com Barata Ribeiro, Varese em frente, lanchódromo do bairro ao lado de próceres como o Gordon e o popular Cervantes. Provavelmente Ferôncio e Luiz estariam jogando bola, Rubinho ao menos. Antes de pedir meu tradicional eggcheeseburger, vi um carro parado, não sei se uma Brasília, daquelas que os Mamonas iriam imortalizar anos depois. Fato era o de ser um carro da antiga. Quando olho para o motorista, me vem uma sonora gargalhada, uma seqüência delas – o interlocutor, melhor, interobservador retrucou-me com risos idem, e não trocamos uma palavra, até que o carro partiu e eu cheguei ao balcão para pedir o sanduíche.

Era Bussunda.

Não se tratava de uma celebridade televisiva, mas já tinha seu fan club. Ano antes, tinham feito um show histórico no Circo Voador, em campanha para o macaco Tião, hóspede do zoológico e candidato informal a prefeito que conseguiu medalha de prata no pleito – Xuru foi ao show e fez campanha para o Macaco Tião; adorava contar que Bussunda tinha sido jurado em um concurso do qual ele, Xuru, tinha participando como...vocalista da Troncomóvel Band. Redator de um programa de tevê que tinha acabado de alcançar índices alarmantes de audiência, a TV Pirata. Engraçadíssimo, pois. Escrevia também numa revista sensacional, a Casseta Popular, que fez – merecidamente - gato e sapato de Collor. Vendiam camisetas com deboche e cartuns marcantes, frases, comprei duas para Alessandra e uma para Klein.

Tempos depois, fizeram outro show hilário no Teatro Ipanema, todos vestidos de Leopardos, Luizinho me chamou para ir. Bussunda, em certo momento, causava alvoroço de risos na platéia – imitava simplesmente Deus numa parte da peça, caminhando por entre os expectadores, com seu sorriso ímpar, sem dizer uma só palavra.

Universidade do Estado, 1991. Show de Oswaldo Montenegro para a TVE, beta-boca com um aluno, OM irou-se, referência ao fato de Bussunda ter comentado no Salão Carioca de Humor, na Santa Úrsula, que o “Museu do Babaca” ia ser inaugurado no Casseta Shopping Show, simpático bar da rua Paulino Fernandes...com um móbile em tamanho natural do trovador citado, na porta.

Com o passar dos tempos, a turba toda se reuniu, a Casseta Popular, o Planeta Diário – maravilhoso, com suas manchetes surreais. Livros, discos, programa em horário nobre, virou indústria das boas. Fiquei sabendo que alguns dos membros da turma foram estagiários do Pasquim – e conseqüentemente, do Ivan, que muito inspira muito do que fizeram de melhor.

Os veteranos da Uerj que divertiram-se a valer nos folguedos e eventos promovidos pelo alto clero estudantil do Instituto de Matemática deve, em algum momento, ter percebido a influência Bussundiana no grupo. Tivemos um grupo de humoristas famoso por lá, hoje finado, chamado Cecrime e que nada tinha a ver com crime, só com gargalhadas.

Não gostei quando Bussunda resolveu distratar o Fluminense em suas crônicas esportivas – ressalte-se, eu e uns dois milhões de torcedores que muito o xingaram. Pediu desculpas: era craque, percebeu que o humor tinha extrapolado a conta. A vida seguiu, sem mágoas. Bem disse Rinus Michels, também desaparecido, que era e é, sempre, somente mais um jogo de futebol. Enquanto isso, os Cassetas fizeram as turbas rirem e rirem.

Vem uma bobagem e splaft! Tira o Bussunda do caminho. Muito antes dos acréscimos do árbitro. Errradamente. Esse negócio do grande palhaço, do humorista, morrer antes da hora, dá um gosto de cabo de guarda-chuva danado. Parece que a festa não vai ter vela soprada porque o aniversariante não veio.

Eu, sabe-se lá porque, recentemente voltei a ver os Cassetas antes do outro programa de terça, que considero muito bom, coisa deste ano. Dia desses, vi um quadro divertido e fiquei recordando, meus flashbacks imaginários na cachola, dos tempos do Casseta Shopping Show. Tempos do Collor, quando achávamos que a coisa ia dar certo, pobres de nós....Tempos da faculdade, que voam ligeiros e não deixam rastros. Tempos da Alessandra e da Klein.

Luizinho foi embora. Xuru, idem. Cecrime, ausente. Bussunda também.

O Sumol já não é mais o mesmo. Não posso ir mais à praia de manhã. Não tem mais nenhum motorista gargalhando na esquina.

Tenho saudades da graça.
Paulo Roberto Andel, 06/17/06

Thursday, June 08, 2006

Dois edifícios

Caiu uma tarde, coube-me um lanche no décimo-segundo andar de um prédio que tenho freqüentado nos tempos recentes, morador honorário, creio. Arquitetura sessentista, moderna, cinzento.

Em minha mesa, além da solidão inevitável, havia um sanduíche de queijo minas no pão da França, mais um refresco.

O tal prédio da lanchonete esbanja uma vista linda: em frente, o esplendor do desprezado Campo de Santana, tão bonito e abandonado, com o lirismo de seus bichos democraticamente soltos e juntos, entre idosos que praticam a caminhada entre elementos do underground. Noroeste, tem o garboso prédio do Corpo de Bombeiros; nordeste, morro da Providência, berço primeiro do que convencionamos chamar de favela – e se não é bonita como gostaríamos que fosse, cabe lembrar que é casa de gente, por menos que isso agrade a alguns. Perto do Norte, o playground preferido: Maracanã, de Mário Filho e Nelson Rodrigues, que só os desavisados cogitam chamar de ultrapassado ou propenso à demolição. O gigante do futebol é eterno.

Tudo devidamente misturado ao maciço da Tijuca, outros morros, outros verdes. Belo horizonte.

Minha vista enevoada deparou-se com outro edifício, ao longe, tão cinza quanto este meu daqui. Um velho e charmoso prédio, dos tempos da Guanabara. Por um instante, fitei-o como nunca; o cinza e o concreto serviram de combustível para minhas lembranças, minhas melhores lembranças e saudades. Foi naquele prédio que eu pude, em muitas vezes, me confortar das tempestades; não foram poucas as vezes que, junto de amigos, mal possuíamos o dinheiro para o biscoito ou o refrigerante, mas tínhamos o mundo sob nossos pés e todo um caminho de suposta felicidade a ser ainda trilhado. Lá, aprendi muito e talvez tenha ensinado alguma coisa; ri e chorei, gritei e calei, amei e odiei. Meus companheiros de trajetória forjaram laços comigo nos corredores daquele prédio. Eu amei três mulheres na vida, e beijei duas exatamente naquele poente da minha vista. Minha política, minhas palavras, meus pensamentos, tudo num momento parecia ter o sabor daquela construção. E tem. Terá.

Soube que querem derrubar meu velho prédio. Ambições desmedidas, demagogias, peitos sem corações. Não acontecerá, por mais que poderosos queiram.

E eu, com o sanduíche na mão e o refresco em espera, reparei que agora, hoje, moro em outro prédio. Outro condomínio, outro pavilhão.

Meus vizinhos daqui são outros, algumas vizinhas continuam lindas. Klein, já tem; Serra Costa, também; Alessandra, ainda não. Importante, porém, é reconhecer que os sonhos estão encurtados, já que falta tempo. Não há mais Guanabara, nem trote, nem tardes vadias para vivenciar as melhores prosas, os mais honestos sorrisos, os beijos mais suaves.

Hoje é futuro. Diferenças.

Minha mente estalou seus dedos secretos; daí, percebi uma fina ironia.

Olhar o que melhor me abrigou no passado, aquele velho, soberano e inesquecível prédio, não seria um presságio, uma promessa de grandes dias neste novo condomínio? Serei quase feliz aqui?

A vista de um é a promessa do outro? Como saber.

Acabei o sanduíche, cumprimentei a turma da lanchonete e espiei pela última vez os cento e oitenta graus de imagens, com o velho prédio, sempre ele. A escada me chamou, desci calmamente, saboreando todas as imagens na memória.

Do futuro, nunca se sabe.

Do passado, belíssimo, dos anos incríveis, acabou de bater à minha porta pelo método menos convencional: através de uma janela, beijada ao chão pelo verde da esperança que esparrama-se pela Praça da República.



Paulo Roberto Andel 08/06/06









Espelho meu

Meu espelho não me reflete
É nele que mergulho
Navego
Traço rotas imprecisas
Para te procurar

Meu espelho não tem sombras
Nem jogos
É reflexo na cidade de luzes
Cores
Matizes
O arco-íris de teu brilho maior

Cores
Todas as cores
Todos os tons
Em meu espelho és impecável
Formosa
Brilhante de ágata
Semente eterna de calor no coração

Sofreguidão

Meu espelho é dobra de sinos
Cântico de paz
Belo horizonte
E logo ali defronte
Há um inenarrável sorriso
Que não ouso decifrar
Mas causa-me bem estar
Brilha em minhas retinas
Aquece minhas almas
Tira-me da tempestade
A mocidade
Traz-me ao pantheon
O som

Onde mora minha alegria
Minha vista
Meu paladar
Perfume de conquista
Ametista
Pedra preciosa de tanto encanto

Meu espelho mora em ti
Por fim

Monday, June 05, 2006

Das mãos

Quando eu provei tuas mãos
Pétalas de rosas beijaram as palmas
Minhas palmas
Rosas, flores vivas
De brilhante gracejo
E poesia lunar

Quanto eu toquei tuas mãos
Teu calor me atravessou
Na lida, por dias
E me trouxe um suspiro
De beleza letal
Meridional

Fulminante
Ardente
Doce nave a me transportar
Pelos novos planetas
Todo o Sistema Solar
De sonhos límpidos
Tão claros, precisos
Nada indecisos
Teu mel em pleno cais

Quando tuas mãos foram minhas
Não estavam decerto sozinhas
Trouxeram em si toda minha felicidade
Toda a mocidade
E o afeto que me reside e te procura

Ávido
Necessário
Cálido

Brilhante feito o pôr do sol
Sereno feito leve tom
Imagem de Arpoador
Teu melhor amor
Meu maior clamor

Iluminado

Definitivo

Tuesday, May 30, 2006

Gotham City, por um triz

Noite de outono gelada, éramos eu e Max a caminhar pelo negrume da Gomes Freire, avenida que já fez os encantos da capital e hoje, embebeda-se de nostalgias, decadências e um futuro que pode tanto ser de samba quanto de réquiem. E nossas vizinhas, lindas? Não pudemos avistar, dado o adiantado da hora. Silêncio perene da rua, nada de carros a não ser nos motéis da região. Pedestres? Quais?

Veio a delegacia. Uma viatura estacionada e, dela, surgiu um policial com seu fuzil à nossa esquerda. Levei breve susto; afinal, nós, cariocas, por mais que vivamos uma guerra civil silenciosa que alguns insistem em esconder, ainda não estamos acostumados a fitar fuzis com naturalidade, feito fossem o chope dourado da felicidade ou a mulher amada. Outro policial, outro fuzil. Atento para a saída do terceiro homem, um talvez meliante, de olhos assustados e punhos algemados. Era um preto novo, de seus poucos vinte. Parecia aterrorizado. Não saberia dizer se era um assassino, um ladrão, um golpista ou mesmo um preto – que, nesta terra, ainda é motivo para quase prisão, mesmo que tentemos veladamente ocultar o assunto, para não revelarmos nossa mais áspera face, a de sociedade perversa, fria, cínica, despreocupada com a grande maioria das gentes, preconceituosa e racista, pois. Os homens da lei também eram pretos, ou negros se o racismo inverso assim exigir; contudo, pretos diferentes, pretos em defesa da lei. E mesmo que estivessem mais do que certos, capturando um perigoso bandido, passou-me pela cabeça uma das cenas típicas de outro século, a do preto fugido, quando era reconduzido pelo capitão-do-mato ao seu dono. Não seria analogia barata, há resquícios de coisas assim em todas as terras que percorremos nesta capitania, como se eternamente estivéssemos condenados a viver como se fosse naquele modelo.

O horror foi de um instante, um triz, uma vírgula. Logo viria a próxima esquina.

Ledo engano.

Eram sons de sirenes. Ambulâncias vermelhas.

Demo-nos por conta, havia um sujeito no último andaime de uma obra abandonada na rua da Relação. Um candidato à morte voluntária, tal como eu fui um dia, feito cada um de nós por quase um segundo. Dezenas de pessoas ocupavam a rua, havia engarrafamento, confusão. Um sujeito perto de nós contou uma história, a de que seria um moço sem casa que, acolhido pelo pastor de uma igreja, roubou-a com um comparsa que foi preso – denunciado, ameaçou acabar com a própria vida. Verdade ou não, eu e Max aceitamos a premissa.

Houve quem gargalhasse com a possibilidade da queda do sujeito, mais do que real. Alguns gritavam de perto da portaria virtual, pediam que pulasse – e não arredavam pé dali, donde desconfiei que eram pouco afeitos às leis da física, na condição de potenciais vítimas terrestres de um suicida.

Nós fitávamos tudo de certa distância. Logo ao lado, o “Caveirão”, veículo de combate que, teoricamente, é um instrumento de paz para populações carentes vitimadas pelo tráfico vizinho. Controvérsias à vista, creio.

Outro triz surgiu em minha vista. Eu lembrei do dia em que, ainda menino, vi corpos voarem em chamas do edifício Andorinha, o mesmo que hoje dá bons dividendos ao meu amigo de arquibancada, Max. Eu era um garoto e vi as mortes pulsando a todo instante. Recordei meses antes, quando três mulheres dependuradas por uma mangueira de incêndio, em um prédio da Senador Vergueiro, não resistiram e espatifaram seus sonhos no asfalta, tudo por obra de um louco incendiário.

Não havia fogo. Gelo, sim. Frieza, necessária quando a vida está no limite.

Enquanto o pastor e amigos subiram nos escombros para tentar dissuadir o possível suicida, um bombeiro subiu lentamente os andaimes. A lentidão de quem tem certeza da vitória, mesmo num momento como aquele, onde tudo parecia féretro. Houve um golpe, o bombeiro imobilizou o sujeito, os dois com a vida em risco. Uma vida foi salva, mesmo que efemeramente. Por mais estranho que pudesse parecer, e é, os mesmos que gritavam ao desesperado para que pulasse, aplaudiram o salvamento. Eu compreendo, pois rezo a cartilha de Enrico Bianco, onde só o que realmente importa no homem é a contradição.

Quando o espetáculo trágico se desfez, sem o final talvez esperado de maneira mórbida, os populares começaram a retirar-se. Max me disse do brilhantismo do homem, daquele que pôs a cabeça em prêmio para salvar o desconhecido: não sabíamos dizer quanto ganhava por mês, se tinha filhos, se a esposa em casa sabia que ele atrasara-se para o jantar para resolver um pequeno pepino profissional. Em seguida, o amigo se foi para sua Barra, sua Beverly Hills carioca sem suingue sangue bom, contrariado.

Eu desci a rua. Sozinho. Não havia mais risco. O preto novo foi encarcerado, o quase morto renasceu. Foi tudo por um triz.

A morte, sempre tão sombria e certa de sua vitória, ali naufragou.

Um ou outro bobo, quase todos devem ter ido para o bar, fazendo pilhéria do caso.

Meu silêncio tomou-me de assalto. Era tudo Gotham City, sem Batman, Comissário Gordon e nem mesmo a espetacular Mulher-Gato.

Só.


Paulo Roberto Andel

Rio, 42º

Sete horas (PM.) e a cidade ainda arde.

A tarde resiste bravamente e retarda a chegada da noite.

A cidade é um labirinto onde eu ando e sinto em cada rua, em cada esquina que dobro, o calor (também da sua alma, da sua gente).

Caminho por entre as ruas fechadas pelos arranha-céus e preso a essa geometria reta, esbarro nos vértices e arestas que desenham sua assustadora beleza. Verticais edifícios que quase tocam o céu, que recortam e cobrem o céu azul, com suas paredes, misto de vidro, concreto e ferro, parecem esmagar as pessoas apressadas.

Procuro o infinito e não encontro, tudo é extremamente finito.

Numa rua longa, meus olhos quase colados pela poeira e suor, descobrem um atalho e enxergam numa fresta de céu, a figura esférica da lua, que surge repousando sobre um prédio, cheia e ainda amarela. Parece guardar um pouco do mel que roubou do sol que ainda há pouco clareava e aquecia o dia.

À medida que caminho, olho fixamente pra lua que vai se escondendo atrás do prédio como que inibida, e olho, e caminho em direção a ela, que se esconde totalmente.

Agora estou no meio da cidade e não existem mais atalhos.

O céu agora só existe sobre minha cabeça.

A cidade ainda é linda e já esfria. A cidade é absolutamente encantadora em sua capacidade de mistura do antigo com o moderno, do asfalto com o morro, na mistura das raças, do executivo com o ambulante, etc. E as mulheres? Ah, as mulheres... ! (isso merecia várias linhas a mais)

E o cafezinho carioca? E o chope?

O dia teimoso cedeu enfim lugar à noite.

Meu corpo, já cansado do calor e do suor do longo dia precisa dormir... Acho que só resisti aos 42º devido à beleza que vi e vivi.


Por Jocemar Barros, 30/05/06

Monday, May 22, 2006

O invencível verão

Sobraram ainda, creio, alguns momentos a serem usados nos próximos vinte dias, bem como alguns últimos momentos divertidos. Mas o verão começa a dar o ar de sua despedida, começa a dizer um "até breve" que não chega a soar como "adeus". As estações são assim, passam velozes em nossas vidas e, se não estamos devidamente atentos, podem escapar pelos dedos. Todas têm o seu importante valor; contudo, o verão é bem lembrado pelo seu brilho, pela sua perseverança, pelo azul sorridente de seus dias.

Imagino e espero que o verão tenha sido bom para você. Para nós, não foi intenso como outros; para mim, foi pouco e escasso. O verdadeiro verão deve ter crianças nas praças sem grades, moças lindas a desfilar nas orlas claras, gente feliz nas tabernas entre conversas fiadas e chopes dourados da felicidade. É preciso ver as pipas avoarem em ventos ligeiros dos bairros da Central. Urge que espalhem a fraternidade, ternura, carinho e esperança pelas esquinas, calçadas e travessas, pelas alamedas e vielas. As vilas e os condomínios ficam mais próximos do que o normal. Os poetas devem deixar fluir a sua verve, tão verve quanto dos escultores e pintores, dos homens de cinema e teatro, dos artistas do futebol. O bom verão toma emprestadas as flores da primavera e as refresca com alguns dias do outono, tudo para temperar o amor que surge de um beijo à beira-mar, no portão da casa ou na piscina. Esperamos do verão o rigor da paixão, a disciplina do caráter, a firmeza do excelente humor, o clarão da luz que acompanha os homens de bem, tudo temperado pelo balanço que os pianistas impregnam o samba - sim, o samba bom, o samba que aquece os corações perfeitos.

O verão, este que já despede-se, foi escasso para mim. Não tenho mais tempo para viver intensamente as coisas que disse antes nestas linhas. Não tenho mais tempo para as pipas nem para a verve, chopes não são mais freqüentes à minha mesa. Moro longe das praças queridas e meu amor desapareceu feito certa brisa leve. Devo ser ranzinza, posso ser mesquinho, tendo à mediocridade; entretanto, nada disso abala minha saudade do bom verão, um verão pomposo e metropolitano, cheio de promessas e tentativas que pudessem um dia dar certo. Queria a criança chamada eu de volta, para que me guiasse pelo pensamento de que somos nós mesmos que construímos as estações e, por isso, podemos transformar cada estação a nosso bel prazer, de acordo com nosso espírito livre. Queria por que não tenho, mentiu quem disse que querer é poder: na verdade, antecipo-me ao outono que já vai chegar, trazendo folhas ao chão e mocidades independentes para ocupar os espaços urbanos, prateados com pitadas de chumbo.

Daqui a vinte dias o verão será a saudade de todos os que o viveram bem e foram felizes - estes dele falarão aos quatro cantos e à rosa dos ventos. Para mim não sobrou nada, passou e senti um vazio por não vivê-lo como deveria e poderia.
Cabe-me contar as folhas do chão, as nuvens de chuva e as flores que surgirem até que surja um novo verão, uma nova promessa, um novo nascente que me faça sonhar. Como todos aqueles que, neste, tiveram um invencível verão.
Paulo Roberto Andel

Réquiem para o inimigo


Ouvia um disco de orquestra e admirava o cartão postal que se desenhava em sua janela, numa tardinha de céu brilhante aos pés do Cristo Redentor: ao largo, uma jovem babá cuidava de um bebê feliz, homens de bem faziam trovas de verbo no bar ameno de esquina, uma mulher doce e de melenas alouradas passeava em sua bicicleta e, incrivelmente para os dias de hoje, meninos jogavam botão na calçada. Eis que tocou o telefone, e a voz embargada tinha algo de soturno a dizer:

"- Ele morreu, amigo. Sei de suas desavenças, mas era preciso que você soubesse mesmo vocês sendo inimigos. Ele morreu há cerca de duas horas; não estava doente e parece-me ter sido algum mal fulminante. De qualquer forma, quando tiver notícias sobre o funeral eu lhe passo. Congratulações e uma boa tarde."

Dizem que mau presságio em telefone só vem de madrugada e você sabe que não é bem assim. Ele também: embora fossem inimigos de morte, ficou em silêncio de limbo durante alguns instantes e interrompeu o bom andamento da orquestra na vitrola eletrônica. Pensou no inimigo e, mais ainda, no tempo em que o julgava ser seu amigo. Afinal, conviveram juntos por várias temporadas, atravessaram mares e tinham sempre suas imagens associadas por muitos da comunidade. É certo que tinham divergências e pensamentos diferentes, mas tornaram-se próximos talvez pelo bom-humor, pela velocidade de raciocínio, pela vizinhança e por mais uma série de características que permitia a terceiros concluírem, com rigor, que tinham muito mais semelhanças do que talvez pudessem gostar. Lideraram viagens, foram a casas de tolerância, duelaram garbosamente em tabernas, contestaram gêneros musicais e partidos políticos, viram os sóis de Ipanema e - há quem ainda diga - dividiram ao menos uma vez as mesmas mulheres, em carreira solo. Não se alinhavam, enfim, mas estavam perto. Certo dia brigaram para sempre e alguém desconfiou de traição da suposta amizade, mas o motivo verdadeiro era um punhado de tostões. Tostões que não resolveriam a vida de um ser humano, tostões que não permitiriam entender o pôr-do-sol ao lado da doce e desejada mulher amada, tostões que não pagariam muitas contas nas tabernas onde o chope dourado da felicidade é farto. Foram adversários fatais para sempre, e por motivo torpe. Fizeram os piores papéis que os homens podem prestar-se: trocaram ameaças, apontaram defeitos um do outro pela primeira vez, praticaram baixeza por moedas baixas. Nunca mais se viram e, a partir da despedida de instantes antes, a reconciliação tornara-se impossível.

Devolveu a música para a sala. Sentou-se e olhou para o teto brilhante. O inimigo veio-lhe à tona: parecia estar no sofá, na mesa de jacarandá ou na varandinha, dizendo velhas bravatas, rindo e celebrando um brinde. Só que não estava, e isso lhe trouxe um momento de grande desconforto: a morte em si tinha deixado um triste; contudo, mais ainda foi a certeza do nunca mais, a constatação de que as armas nunca mais seriam baixadas mesmo tendo a guerra terminado. Outra dor que lhe veio foi ter-se arrependido do que não disse, pois era - e é - pessoa de altivez consagrada, donde deveria ter partido uma reflexão mais profunda para que, se não voltassem à suposta amizade dos tempos de outrora, pelo menos jogassem a belicosidade no mar salgado. Num suspiro, percebeu o quanto é tola e rude a falta de fraternidade que, ali, fazia-o de alvo doloroso. Por que briga, por que ódio, por que desamor? A vida é mais do que isso, muito mais e sempre.

Caminhou lentamente para a varanda, e reviu os trovadores do bar bem como os meninos do jogo de botão. Admirou outra menina bonita que passava ostentando sua beleza estrangeira. Silenciou-se ao som do piano que surgia do disco, em contrapartida à orquestra de antes. Quis que sua mulher amada adentrasse o apartamento e lhe desse um beijo como antes, e ela não o faria porque dorme noutro lar que não lhe pertence. Virou-se para o lado e viu na outra esquina sinais de mocidade, feito a que tinha nos tempos em que o inimigo agora morto era apenas um rapaz de bem.
Pensou nas suas certezas e, sob a desolação dos constrangidos, atestou para si próprio um lema triste: de certo por ali, apenas o nunca mais.

Friday, May 19, 2006

Grandes avenidas

Temo as grandes avenidas.
Reconheço suas imponências diante de nós, pobres humanos que a elas servimos feito um enfeite de bolo. Entendo suas existências, tão necessárias para que o dinheiro faça da cidade a sua célula-mater. Sei de suas importâncias para o dia-a-dia de muitos que vivem pelas peripécias desta Guanabara tingida por sacrifícios. Mas eu não gosto das grandes avenidas.
Tenho motivos.
Um deles é o de que grandes avenidas não pedem passagem, simplesmente fincam base numa região e pronto: que o digam os moradores de uma favela erguida aos pés da Presidente Vargas, ali estabelecidos há quatro ou cinco gerações - e nunca receberam um tostão pela cessão de suas casas. Outro é de que grandes avenidas não importam-se com seus moradores ou ocupantes, principalmente aqueles que têm apenas a marquise como condomínio e abrigo: passam-se as décadas e lá estão os mesmos braços estendidos em busca de migalhas para a sobrevida infame, ora jovens, ora envelhecidos pelas mazelas da rua.
Grandes avenidas não comovem seus transeuntes a ponto de cativar-lhes em prol de solidariedade: basta que alguém tenha um mal súbito e caia no chão; todos param, observam a dor humana, a tragédia, a prévia da morte, tudo como se estivessem diante de um filme de terror - exceto um ou outro desavisado que burla as leis do cão.
Grandes avenidas estão cheias de pessoas apressadas, engravatadas, sedentas pela corrida do tempo, várias vezes com muito a fazer e muito pouco a produzir, trôpegas pelos restaurantes e lanchonetes onde raros são os que têm a ousadia de conversar com o próximo.
Grandes avenidas atraem grandes carros em grandes velocidades, e isso rima com tragédia em alguns momentos de semanas atarefadíssimas. Os motoristas precisam chegar rápido, embora não se saiba exatamente para quê; os pedestres também correm em concorrência. Todos correm muito e vivem pouco: a vida já é tão rápida e curta, para que encurtá-la com economias inúteis?
Grandes avenidas têm vendedores humildes, camelôs, engraxates de todas as idades, jovens secretárias, mensageiros, auxiliares, executivos, professoras de sexo, malandros sórdidos, gazeteiros e mais um batalhão de humanos: porque não interagem feito a sociedade que devia ser construída no século XIX e hoje, já no XXI, ainda não está firmada?
Grandes avenidas estão cheias de sirenes a tocar, assustando os calmos.
Grandes avenidas sufocam os que precisam chegar e sair dos lugares em horários padronizados pelos dinheiros.
Grandes avenidas incentivam o asfixiante e gélido transporte subterrâneo sem paisagens, sem árvores, sem elementos, sem vida, apenas tons de preto a fazer as janelas de féretro.
Grandes avenidas só passam por praças gradeadas e proibidas.
Grandes avenidas não ecoam as canções de Dorival ou João, nem de Hermeto ou do Maestro Jobim; por isso, reservo-lhes respeito, amor nunca. Afinal, nas grandes avenidas sobressaem os pequenos personagens.

A madrugada precoce

Chove.

Este lugar é de um silêncio enorme, talvez imaginariamente entrecortado por canções de ouvir Carole King ou Marina Lima, ambas campeãs de execução radiofônica nos programas de música soft que aconteciam nas rádios de freqüência modulada, basicamente por volta das dezoito horas. Carole e Marina são cantoras da chuva, dos tempos nublados, do tempo ameno e da atenção a melodias doces. Agora, pela noite, o verde escuríssimo das cortinas entreabertas serve de tensa moldura do céu azulado de Copacabana, o mesmo céu que excita gentes à beira-mar, traz força a fé dos que rezam em janelas e que serve de telhado vazado para indigentes – hoje, mais tristes pelo molhado.

O silêncio é democrático, ressalte-se. Há barulho. Pouco, baixo, mas suficiente para ocupar o ambiente cheio de luzes apagadas. Na sala, quadros bonitos expressando uma arte que eu não sei explicar. Todos estão próximos de livros, muitos livros. Parecem viver todos ali em plena harmonia, feito um só conjunto. Tem também uma vitrola antiga acoplada à outra que foi moderna até outro dia, discos ao redor em profusão. Discos, livros, pensamentos.

Já que tenho a liberdade de escolher um, ei-lo. Dave Brubeck, o lendário jazzman ainda vivo e perto dos noventa, primeiro branco a liderar a parada de jazz na história, contraponto ao racismo convencional. Louve-se o seu preciso piano contrapondo ao sax inacreditável de Paul Desmond. A capa é coloridíssima e, sem querer fica em contraste com beleza turva do conjunto de cortinas, decorações e o céu.

Não é tão tarde, mas foram todos embora. No quarto, Teresa dorme o sono dos justos, que acomoda as pálpebras que agora escondem aqueles olhos incríveis. Queria dizer-lhe algo quente e especial mas não sei bem ao certo, desisto temporariamente; queria ter continuado continuado o sexo e gasto mais horas em beijos no ventre, cansou. Teresa está cansada, esgotada. Talvez fosse importante que descêssemos e caminhássemos um pouco na calçada larga, acompanhando aquele zig-zag fantástico que consagrou Copacabana para o mundo, as pedras portuguesas que fazem ondas aos pés da areia. Talvez fosse saboroso que encontrássemos o pessoal no Gordon, rir do enorme Canguru em sua porta. Mas nada faremos, pois Teresa dorme e eu vivo.

Os discos e os livros são herança de Dona Marília. Foi embora antes do tempo, muito antes do devido, desesperançada pelo fim do Seu Marcos – que também retirou-se de forma um tanto quanto apressada e inesperada. Marcos filho já não mora mais aqui, desde que se enlaçou com Fernanda há uns três anos.

Engana-se quem acredita que a tristeza é hóspede permanente da casa; no máximo, entre uma e outra lembrança física da morte, descrita num velho som ou texto, o restante é contente. A juventude da turba da Santa Úrsula ajuda a trazer alegria. Eles gostam de carteados, de jogos de tabuleiro, de bebidas ligeiras; riem e contam boas histórias, sabem línguas e autores, cidades e hábitos. Não gosto quando fazem a sala de Amsterdam barata, mas é deles mesmo. Creio que não façam por mal, é coisa de jovem. Desconfio que não gosto apenas desse único momento, o resto é de uma tranqüilidade acolhedora. Simpatizo com eles, suponho que me achem um mais velho, experiente, acreditam ingenuamente que tenho muito a lhes contar, vã esperança. Ainda não sabem que aprendemos truques todos os dias e nunca é tarde.

Tudo ao mesmo tempo agora. Penso em Teresa. Penso em seus sonhos e poesias. Penso em oferecer-lhe alegria, contar-lhe uma história especial, beijar-lhe a mão e também entregar uma rosa. Penso em levá-la para uma viagem, cobri-la de carinhos, sexo, companhia, aventura. Penso em tratá-la permanentemente como mulher e não uma oportunidade ocasional. Gostaria de amá-la mais do que posso. Gostaria de ser somente dela. Era indispensável namora-la, cativá-la, dar-lhe todo amor que houvesse pelas esquinas, tabernas, a praia, o parque e o cinema.

Ouço o jazz ecoando pela casa e buscando as janelas, como se quisesse multiplicar-se pelos arredores. Há um Brubeck e um Desmond fazendo contrapondo com os vestígios noturnos da Atlântica. Alguns notívagos desfilam na avenida, devagar e suavemente. Teresa dorme e tenho remorso. Eu preciso dar-lhe o dia e a noite, o céu e o mar, o verde da esperança e o branco da paz celestial, o sorvete e o uísque, as vitaminas e a erva. Eu preciso dar-lhe o amor do qual carece injustamente. Não tenho nada de sobra, nada de útil que fosse digno de olhos tão brilhantes. Preciso aprender como fazer música doce a tilintar em seus ouvidos. Remorso é ver seu repouso tranqüilo, suave, sereno.

Deitada em berço esplêndido, onde dorme Teresa agora?

Cansada, repousada, esplendidamente nua, o que imagina Teresa em seus sonhos mais íntimos?

Tenho um gole de bebida fina à minha disposição. Um silêncio cortado por jazz. Pensamentos nublados sob um céu que promete dias de brilho.

Teresa dorme.

Está nua e cativante. Pele clara e fresca. Seios lisos e cabelo solto. Pés recolhidos.

Ao fundo, o piano é denso, o saxofone é cortante. No imaginário, crio um trio com Carole e Marina.

Reflito sob o luar. Teresa tem beleza e poesia, ambas profissionais. Eu sou um amador.

Chove.

Conversa de botequim

Houve uma quarta-feira de azul turvo, aquela nem tão recente em que nós, sempre nós, em nosso refúgio fincado na mesa de bar, havíamos elegido para desafogar mazelas, culpas, medos e até sorrisos, perante a vida soturna que levamos na condição de brasileiros. Nós, brasileiros e pensativos, brasileiros e pobres, brasileiros e com dificuldades, brasileiros alegres.

Nossa mesa oficial era no segundo andar do bar, tanto por ser mais perto dos banheiros quanto por permitir o doce balanço das jovens estudantes de Direito, que iam e vinham a todo instante. Nada provocativo ou insinuante por parte delas, nenhuma abordagem de nossa parte, apenas vistas e curvas encontrando-se no ar. Nada que causasse fúria em alguma namorada, esposa ou equivalente masculino. Ao chegarem os drinques, celebramos vida, saúde, gentes e, cada um intimamente, o fato de podermos ainda brindar vivos feito como se estivéssemos numa taberna de outros séculos e lugares. Brindes e brindes.

Por mais que tenhamos ao longo destes anos forçado a máxima atualização possível, procurando sempre viver de presente e não de passado, em eventos desta natureza sempre acontece alguma louvação a nostalgias, saudades, coisas que ficaram para trás e não necessariamente precisavam ter sido perdidas para o sempre, com exceção das memórias. Daí que alguém recordou dos “trotes”, talvez o Claudionor. Sim, os trotes. Hoje em dia, vem um noticiário qualquer e mostra que, numa festinha de “trote”, alguém morreu ou aconteceu algum estupro. Nossas festas eram de diversão pura, tranqüila e serena. É claro que ninguém gosta de ser pintado com tinta verde e rosa se não for Mangueira de coração ou punk de atitude; assim, compreendo eventuais rusgas e desconfortos de outrora. Agora, bater, matar, estuprar? Inviável aos nossos corações. No máximo, beijar alguma garota não tão abençoada pelo esplendor da natureza, tudo bem escondido – e assim, evitar seis meses de gozações dos colegas. Amigos, o mundo mudou. Depois, com a justa função, em algumas instituições de ensinos, criaram o “trote ecológico”, o “trote social” e mais uma saraivada – outro na mesa, talvez o Zé, falou disso como uma bonita atitude para tirar a “lama” dos veteranos das faculdades mas, por outro lado, soava como uma clara brecha para mostrar que nós, brasileiros e trabalhadores, brasileiros e pobres, dependemos sempre de um esforço ou indicação para agir em prol do “ecológico” ou “social”. Dito e feito.

E o dinheiro? Ah, o dinheiro. Quantos tempos um dia empenhamos em estudos, livros, calculadoras, provas e papéis almaço? Tudo pelo bendito dinheiro, o dinheiro de comprar um apartamento, de pagar um veraneio, de trocar uma tevê antiga, as responsabilidades que aumentam à medida em que “amadurecemos” e nos tornamos “adultos”. Dinheiro para juntar, dinheiro para casar, e mais dinheiro ainda para se separar. O Paulo lembrou de que este mundo onde vivemos não era o que nos prometeram um dia, cheio de parcelamentos automáticos em contas de banco, prestações com juros sempre superiores do que as registradas nas máquinas de somar, produtos cada vez menores nas prateleiras dos supermercados - disfarçando a velha hipocrisia de “não” se aumentar preço mas “adaptar” as quantidades. Quando começamos a estudar, queríamos também dinheiro, mas satisfação também. Não éramos um bando de lunáticos capitalistas sonhando com Wall Street; bastava-nos a construção de um modesto patrimônio para viver, ajudar os pais, ter algum filho e uma esposa amorosa. Falavam que era “importante ter faculdade”, poderia ser garantia de um bom emprego – o que, infelizmente, todos os institutos de pesquisas governamentais ou privados sabem desmentir com muita facilidade. Nós, garotos, brasileiros e quase estudiosos, brasileiros e pobres, quando chegamos à nossa casa de estudos, mal tínhamos um tostão furado nos bolsos. Um conhecido nosso comprou um jaleco de escola técnica para poder ir de ônibus diariamente sem o pesado fardo do preço abusivo das passagens, o que deu certo e eu apoiei, digamos, como uma “contravenção positiva”, se me permitem a licença. Éramos uns pobretões, mas ríamos de tudo, divertíamo-nos a valer e quase estudávamos, tudo coisa de outro dia e, de repente, ali estávamos nós a divagar sobre a importância daqueles tais dinheiros. Continuamos pobretões? De certa forma, sim.

Do lado de fora, o céu de azul enegrecido com suspeita de chuva a caminho dava um tom de Gotham City ao centro da cidade, com seus prédios gigantescos, suas gentes apressadas, seus meios e fins.

Pedimos a pizza de sempre, grande e barata, cheia de queijo e rodelas de tomates. O Zé bradou sobre futebol, contra o Flamengo, contra a saudável “ditadura da maioria”, que é mesmo verdadeira quando se trata do esporte bretão. O Flamengo tem mais torcedores por todo o Brasil; conseqüentemente, tem mais simpatizantes entre jornalistas esportivos e, em certos casos, a paixão supera a razão, criando times fantásticos mediante contratações improváveis e revelações juvenis inexistentes. Eu entendi, mas achei que não era coisa do Flamengo, não, e sim do Brasil. Creio que alguns de nós, brasileiros e sofridos, brasileiros e enganados, somos sempre movidos a vãs esperanças: a política, a faculdade que pode garantir um bom emprego, o Flamengo. É um conjunto, não um fato isolado. No meio do caminho, gritamos sobre gols roubados, cartolas funestos e campeonatos onde impera a bagunça – ou seja, amenidades brasileiras.

O Márcio contou da experiência que teve ao se apaixonar por uma garota seguidora do Evangelho. Desaprovava por completo as normas da igreja que passou a freqüentar por intervenção da namorada, mas estava num dilema: ou continuava o romance que tanto lhe deixava feliz, ou terminava de vez. A condição da amada e dos pais era ser membro da mesma igreja. Terrível. Eu pensei com meus botões de plástico, que não morrem, porque o amor tem que enfrentar revezes absurdos, beirando o universo kafkiano. E nós, na velha mesa, vivendo hoje os momentos felizes de ontem, contando algumas lamúrias do agora e, feito quase todos nessa terra, desejando remoçar quinze anos, mais ou menos. Foi bom saber que Márcio é forte, é lúcido e saberá lidar com essa intempérie conforme o passar do tempo; que o Deus dele permita-lhe conduzir sua fé sem abdicar de seu amor.

Amor?

Sim, o amor aconteceu. Breve e efêmero. Amor de vista. De repente, pela escada do bar, subiu uma morena. Mas não era uma morena qualquer, daquelas que nós, brasileiros e chauvinistas, brasileiros e machos, por vezes apreciamos em rápido olhar numa rua, numa fila ou banca de jornais. Era uma morena estonteante, alucinante, alucinógena. Branca de pele, preta de vestido, mais preto de olhos e óculos. Lábios visivelmente colossais em batom róseo, altura em torno de metro e setenta, palpito. Calamo-nos. Fomos silenciosos por um instante, um silêncio de amém, de vivacidade e típico do visitante de museu quando se depara com a obra de arte.

Uma belezoca.

Não teve jeito. Com aquela bela mulher de seus vinte e pouquíssimos anos adoçando as vistas, um soco golpeou nossos crânios e balançou nossas cabeças, fazendo-nos voltar no tempo, o tempo de nossas divas da academia. É, “amadurecemos” mesmo. Vários nomes. Carla “Coelhinha”, Valéria, Lavínia, Luciene, Ana Paula. Claudionor fez uma pergunta que me fez pensar, algo sobre quem seria os jovens enfeitiçados de hoje pela morena que subiu a escada, assim como fomos um dia pelas divas dos tempos idos? Imaginei que, exceto um ou outro de gosto à frente de seu tempo, poderiam ser todos. Pedimos mais chope e pães de alho, para deleite de Márcio e desespero de Zé. Na hora do oitavo brinde, a moça voltou ao salão, rumo à descida da escada. Nunca é demais ressaltar que se tratava de um colosso, com o devido respeito. Brindamos e suspiramos, brindamos e fitamos, brindamos e a admiramos enquanto ela desceu para o sempre. A posteriori, mergulhamos em vários assuntos: texto, museus, política, cinema, puteiros. Como em toda conversa excelente, não chegamos à qualquer conclusão unânime que fosse.

O Paulo, preocupado com o andar da hora, confirmou que tudo estava maravilhoso e que poderíamos ficar ali bebericando o tempo que fosse preciso, não houvessem compromissos de todas as naturezas possíveis para cada um de nós: pais, filhos, mulheres, amantes, chefes, jogos na tevê, noticiários pessimistas, filmes baratos. Portanto, pedir a conta era preciso, o pior momento de uma saudável noite de bar. Concordamos e aclamamos, Severino desceu e nos garantiu mais quinze minutos de conversa fiada. Tudo o que é bom passa rápido, a papeleta chegou. Colocamos os tostões à mesa, Álvaro fez câmbio com os dinheiros em espécie, um total de cento e pouco reais, mais de cinqüenta dólares. Rimos e rimos. Nos arredores, nenhuma morena em especial cruzando o salão. Chegou a hora da nossa descida pela escada, assim o fizemos e assim chegamos à rua. Do lado de fora, mesas brancas de plástico que não morre, todas ocupadas por um batalhão de estranhos: executivos, estudantes, profissionais, uma Babilônia humana e divertida, gentes buscando sexo, gentes buscando amizade, gentes à procura do nada. Despedimo-nos fraternalmente, especulando um novo encontro; alguns indo para um lado da cidade, outros na direção oposta.

Eu segui com meu grupo e desci a São José no sentido Rio Branco; de repente, ouvindo algumas baboseiras, olhei para o alto e vi a lua cheia, límpida, sem as ameaçadoras nuvens de chuva, impecavelmente em contraste com o céu de Gotham City. Não localizei o bat-sinal e muito menos o Batman. Havia, sim, um silêncio de mistério, encravado nesta pontinha do Brasil, cheia de brasileiros estudiosos e pobres, honestos e pobres, envolvendo o belo luar e me chamando a atenção para algumas coisas: a vida é breve, a alegria é pouca e rápida, o melhor a fazer é viver cada segundo e, se possível, na companhia de grandes amigos numa mesa minúscula de bar, entre goles e tragos - nem que seja para se lembrar de um passado simpático que, de certa forma, é o eterno presente em que vivemos.

Das mãos

Quando eu provei tuas mãos

Pétalas de rosas beijaram minhas palmas

Rosas, flores vivas

De brilhante gracejo

E poesia lunar

Quanto eu toquei tuas mãos

Teu calor me atravessou

Na lida, por dias

E me trouxe um suspiro

De beleza letal

Fulminante

Ardente

Doce nave a me transportar

Pelos novos planetas

Todo o Sistema Solar

De sonhos límpidos

Tão claros, precisos

Nada indecisos

Teu mel em pleno cais

Quando tuas mãos foram minhas

Não estavam decerto sozinhas

Trouxeram em si toda minha felicidade

Toda a mocidade

E o afeto que me reside e te procura

Ávido

Necessário

Cálido

Brilhante feito o pôr do sol

Sereno feito leve tom

Imagem de Arpoador

Teu melhor amor

Meu maior clamor

Iluminado

Definitivo

Salve(m) São Paulo...

São Paulo, a terra da garoa, com sua permanente nuvem cinzenta sobre os arranha-céus na vista de quem chega ao garboso estádio do Canindé, nas imediações da Rodoviária.

São Paulo, que recebe gente do Brasil inteiro sob a égide da fraternidade para alocar ora nos trabalho braçais, ora nas favelas horizontais e, se ainda sobrar mais alguém, nos presídios ou casas de detenção, isso se nenhum Fleury mandar passar fogo no melhor estilo Bushiano - desde que os traficantes não ordenem chacinas primeiramente.

São Paulo, das “mina” e dos “mano”, sempre na necessidade impávida de se criar onda explorando o melhor da língua mal-dita e mal-escrita.

São Paulo, sempre com a inflamada necessidade de posicionar-se perante o Brasil Na condição de Estado-Maior por força do dinheiro, como se ele fosse capaz de comprar tradição, cultura, classe e beleza natural.

São Paulo que tenta impor ao Brasil a diversão amena da vida caótica em shopping centers, sem árvores, sem mar, sem gente falando de poesia em beleza em mesa de bar. Pelo caminho, tome Daniel, Bruno e Marrone, Chitõezinhos, tudo no volume máximo porque se é pra esculhambar o ouvido, que se faça de uma vez.

São Paulo das meninas bonitas que não sorriem em seus ônibus e metropolitanos, suas ruas e grandes avenidas, cheias de gente orgulhosa do dinheiro que não tem mas que é incapaz de distinguir o próprio MASP (este sim, um oásis perdido em pleno deserto da cafonice) de um observatório da NASA.

São Paulo, com a face calhorda de Paulo Maluf, defendido por Dona Hebe Camargo às segundas-feiras na tevê, representando o que há de pior e mais atrasado na vida brasileira: a defesa da improbidade, o chacoalhar de jóias entre caros vestidos e paetês prateados misturados ao abóbora.

São Paulo, que ignora seu Arrigo Barnabé mas cultua seu Netinho. Que abandonou Itamar Assumpção mas enaltece Vavá. São Paulo, que não assiste a TV Cultura mas enche de brios o jabá dos cantores no Raul Gil.

Um dia, houve uma São Paulo grande e digna. A São Paulo de Adoniram Barbosa, de Noite Ilustrada, de Mário de Andrade, de Haroldo de Campos, de Zé Celso Martinez Corrêa, de Plínio Marcos, de Paulinho Nogueira, de Paulo Vanzolini. Esta, tinha futuro.

Ocorreu que os paulistanos estavam muito ocupados com seus jogos de futebol às onze da manhã, seus maiôs obsoletos perfilados na Rua Javari, sua ojeriza aos “baianos”, suas horas intermináveis com o campeonato mundial de lavegem de viaturas particulares, o Domingo Legal com as esquisitices homoeróticas de Gugu Liberato – cujo nome já é um trocadilho para tal. Por isso e muito, muito mais, não prestaram atenção ao redor do mundo e perderam o fio.

Acreditaram na bobagem de que tendo dinheiro, o resto se resolve. Charme não se vende no Morumbi Shopping, não se transfere nem personalidade nem elegância de uma hora para outra num banco qualquer da Avenida Paulista, um desses bancos que, volta e meia, lemos nos jornais como “quebrados”.

Simplesmente, não dá.

O dinheiro é muito importante para muitas coisas, mas para outras é de uma inutilidade enorme. Presença, beleza, poesia, charme, charme, como comprar isso? Ou você tem ou aplaude a quem tem, isso se não tiver eu teu coração um poço de mágoas – que dá câncer.

As pessoas caminhando nas ruas apressadamente, sem sorriso, tensas, ora fingindo estarem com pressa de algo muito importante a fazer, como se pelas ruas, esquinas e vielas também não caminhasse a desesperança de milhões de desempregados.

A tensão dos rostos tem motivos.

Olhar para o lado e saber que nem 450 anos e nem todo o dinheiro do mundo compram a sutileza, a categoria.

Escassez de berço, estampa, carisma.

Mas nem tudo está perdido.

Taí a boa e velha ponte aérea que não nos deixa mentir.

Cinqüenta minutos de avião que valem uma vida.

Ressalte-se que não se pode ouvir Chitãozinho, Giovanni ou Salgadinho. Pra chegar no Rio, ouve-se de Tom Jobim pra cima, já que o céu talvez seja limite, pois.

Memorial da adolescência

Num dia do nosso tempo, o velho Xuru de guerra me levou até a casa de outro grande camarada nosso, também velho de guerra e chamado Henrique. Era dia de conversa fiada da boa.

Nos conhecemos nos acolhedores e socializantes anos da juventude e, entre idas e vindas, fomos nos perpetuando até este novo tempo, agressivo e individualista por hoje. Acampamos por um bilhão de vezes juntos e, em cada um deles, tínhamos roteiro para redigir odisséias. Entretanto, marcante mesmo para mim é a enciclopédia de eternidades que escrevemos na casa de veraneio do Henrique, em Arraial do Cabo - que era um arraial de verdade, não esse de hoje, recheado de lutadores empenhados em humilhar ao próximo.

Arraial tinha lá as suas precariedades: luz e água, tais quais nos dias de hoje, eram mais do escassas. Porém, a cidade era habitável, silenciosa e romântica. O Carnaval abalava suas estruturas sempre, mas era de outro jeito. E viajar para lá em longa temporada, preferencialmente na baixa estação, era garantia de provar o gosto do paraíso: foi naquele maravilhoso lugar que comemorei a minha dispensa do exército depois de treze meses (mais tempo do que se leva servindo, eta), e que também serviu de pré-temporada para uma faculdade que haveria de ser bem longa, após quinze revitalizantes dias de folga. Dali também recordo que, noutros anos, ao falar da querida casa para uma linda mulher com quem caminhava pelas ruas de pedra, passei pela porta do inesquecível teatro; no muro da casa, tão amado e já corroído, tive um dos melhores beijos de amor da minha vida - e que fique por aqui o assunto, já que a respeitável senhorinha tem um matrimônio feliz com um conhecido que se julga o senhor exclusivo da situação.

E, como o maldito tempo insiste em não parar, passaram-se treze, quatorze anos e hoje estamos em outra casa do Henrique, em Laranjeiras. Assistimos um show de rock, igualzinho como naqueles tempos, exceto o fato de que antes era ao vivo e agora é pela televisão. Mudamos, claro. Somos quase jovens. Gastamos quilos e quilos de prosas e, num determinado momento falamos da casa, a velha geradora de grandes encontros e alegrias, que está a pique pela deterioração. Vive fechada em função de acordos familiares, desde a passagem da dona Maria, mãe do Henrique. Seria bom ter dinheiro, o velho vil metal que é tão sonhado e consagrado de tantos, só para arrematar a casa. Enquanto isso não acontece, a casinha querida fica por lá à deriva, perdida nas memórias e à espera de que seus heróis juvenis tenham um futuro a lhe reservar. Aqueles segundos são carregados de empolgação ao falarmos do quartel-general dos melhores dias de nossas vidas. As frases rápidas são incapazes de ignorar a felicidade que aquela velha gigante de pedra nos desperta.

Subitamente, uma pergunta corrói meu pensamento, feito um raio num campo limpo em dia de tempestade: "Quanto custa em dinheiro o memorial de nossas adolescências, dos melhores anos de nossas vidas?"

Os verões do Leme

É bonito ver o jovem casalzinho no banco de praia, aos pés da orla e perto daquele Forte inesquecível. Crianças ainda, devem estar perto dos seus quinze, dezesseis anos - a mesma idade que eu tinha quando voltava dali diariamente para minha querida casa, onde um delicioso almoço preparado por minha mãe me esperava. Jogava bola no Forte, corria, brincava e ria; depois ganhava até um beijo de Vera, o que bastava para voltar feliz pelo calçadão, mesmo que perto dos quarenta graus a enfrentar com a companhia de um mísero - e delicioso - picolé "Dragão Chinês". Depois tinha o danado do colégio, mas só de noite, bem mais tarde e com tempo limitado: afinal, a rodada de carteado no Gordon era vital e não podia esperar. Sabores de adolescência.

Não afasto meu olhar daquele amor.

Bonito o carinho daqueles jovens, com jeito de segundo grau e cursinho de inglês, em plena vivência do melhor de suas vidas sob a tarde do Leme. Amor de beira-mar, de chinelos e bermudas, de camisetas e pele beijada de sol. Bonito é o que o menino deve dizer, ao mesmo tempo em que toca uma das mãos da bela moça; é de se perceber que o texto dito suavemente, ao pé do ouvido, provoca-lhe um sorriso arrebatador, daqueles que só entendem os que já viveram as nuances de uma paixão. A outra mão do rapaz carrega um pequeno embrulho, um suposto presente trazido especialmente para aquele instante de paz. Instante de felicidade, onde rostos encostam-se delicadamente como se, na suavidade do toque, fossem capazes de tornar-se como um só. As mochilas ao lado servem de testemunhas fraternas, de companheiras sagazes que apóiam e apreciam aquele amor - que não precisa durar para sempre afim de alcançar a eternidade e que, se também não durar, já terá valido por toda uma vida permanentemente guardada num canto do coração. Com o amor que testemunho, basta-me ficar perdido pela vista de um céu límpido, em perfeita harmonia com o brilho do sol vespertino; poucos são os que ali aproveitam esta hora, preferindo resguardar-se para os encantos da noite que há de se aproximar. Mas esperar o escurecer é bobagem perante a paz que emana do abraço daquele casal de namorados, em próxima sinceridade e íntima admiração.

Beijam-se. Riem. Vivem o que lhes cabe naquela bela imagem emoldurada em minha vista do Atlântico. São jovens: não precisam discutir relações, planejar racionamentos, evitar viagens, pagar prestações, economizar em cartões. Tampouco é necessário pensar em ciúmes, em traições baratas, em distâncias ao lado, nada disso: a eles basta o roçar de rostos, o sorriso, o entrelaçar de mãos, o aconchego que um corpo propicia ao outro servindo-lhe de poltrona para apreciar o mar e o caminho dos pescadores rumo aos azuis do horizonte. Quem sabe se o amor há de prorrogar-se num cinema que ainda vive esperançoso em Copacabana? Quem sabe se o casal rumará ainda em tempo para a discoteca? Pode ser que visitem os amigos para uma jogatina de tabuleiros antigos ou distraiam-se numa partida de vôlei noturno. E daí? Seja qual for, o evento é o que menos interessa; tudo é pouco importante durante a vivência daquela paixão numa tarde do Leme, o mundo está de férias perto daquela linda menina loura que beija ardentemente o garoto moreno - e não somente com seus lábios de sonho, mas também com o olhar cintilante. Um olhar de querer bem, de querer ao lado, de espantar os males para respirar desejos e imaginar suaves carinhos. Tudo como ordena um doce amor num cantinho do litoral, abençoado por uma rosa e tendo o sol como guia do horizonte, que poderia abençoar qualquer casal em Arraial do Cabo, em Porto Seguro ou na Prainha mas que, pela magia daquele momento saboroso, é coroado pelo eterno mar de Copacabana.

É bonito ver o casalzinho no esplendor da juventude num intenso amor à beira-mar. E são bonitos os verões do Leme, sempre, causando-me a doce e fugaz ilusão de que a vida é sempre bela.


O supersônico

Um dia comum, uma manhã comum, eu e minha bola oficial de futebol em jornada pela Figueiredo Magalhães, uma passada na casa de Buja para convidá-lo a comparecer ao match – que nada mais seria do que dois garotos em ação esportiva, um chutando a gol e outro defendendo, com direito a revezamento.

Entrei na portaria e lá estava Aílton, o porteiro do edifício de Buja, irmão de Agnaldo, ex-porteiro de meu prédio. Era a única relação de nações amigas no caso: Aílton vivia nos perseguindo no condomínio, ora por causa das peladas de futebol em pleno corredor, ora porque uma ou outra amiga brincava conosco na escada sem a distância regulamentar. Anos depois, passamos a compreender seu honrado dever de repreensão ao nosso arsenal de molecagens. O elevador demorava uma eternidade para descer naquele dia e, sabe-se lá porque, Aílton saiu do prédio, talvez tivesse ido buscar um café; enquanto isso, eu tornava-me ali um terrorista em potencial, tanto quanto qualquer garoto de quatorze anos que tenha uma bola de futebol ao alcance, para desespero de qualquer objeto quebrável como espelhos, jarras e coisas mais. Talvez alguém por perto estivesse me vigiando e, por isso, mantive-me imóvel enquanto o elevador insistentemente continuava parado no distante décimo andar. E, subitamente, o inferno chegou:

“- TREAAAAAAAAAAAAAAAAAFFFFFFFFHHHHHSSSSSSSSHHHHHH!”

Eu imóvel, nem respirava. Nada de errado à minha frente, imóveis estavam o espelho e as duas portas de elevador. À esquerda, a portaria principal intacta. Havia algo destruído ali, mas eu nem tinha coragem de me mexer: a bola oficial estava em minhas mãos e eu não tinha feito nada, não tinha quebrado nada, não chutei nada. Só pensei por alguns segundos na vã justiça dos homens que, com absoluta certeza, me condenaria pela quebra de algo certamente feito de vidro. Lágrimas vieram ao meu coração: não ia ter futebol, voltaria para casa triste e teria que pedir dinheiro à minha sacrificada mãe, tudo seria cruel. Sei de um estrondo e algo que se quebrou em seguida, nada mais.

Virei para a esquerda. Era ela: a porta dos fundos, estilhaçada por nada, de cima a baixo; sem um toque, pancada ou chute, simplesmente nada. E eu ali sozinho, único culpado sem álibi de nada.

Certamente pálido, mirei o que restou da porta. E, para minha surpresa, quem já tinha dado a volta no prédio e estava ali constatando a desgraça era Aílton, o porteiro, o algoz de todos nós que, um dia, naquele prédio, insistimos em viver como garotos de nosso tempo. Mais surpreendentemente ainda, tinha visto tudo o que aconteceu e – pasmem – era testemunha de que eu não tinha feito nada!

“- Não se preocupe, Paulinho, aconteceu alguma coisa que estraçalhou o vidro, outras lojas aqui estão com vidros quebrados, Deus nos livre.”

Abandonei um quilo de suor frio na portaria e, ainda quase trêmulo, peguei o elevador rumo à casa de Buja. Lá chegando, encontrei-o vendo televisão e o noticiário indicava que aviões tinham quebrado a barreira do som no Rio de Janeiro, coisa da guerra das Malvinas – um confronto pra lá de esquisito em tudo o que se possa dele analisar. Em suma, com a quebra da barreira, não ficou vidro sobre vidro na cidade – e daí ocorreu, como em tantos outros lugares, a destruição da porta de vidro na portaria.

Fiquei sem vontade de ir para a praia. Buja entendeu naturalmente e ficamos na janela da sala espiando o que ocorria na rua, tudo enquanto jogávamos conversa fora: não faltavam vizinhos em outras janelas também, alguns esperando o apocalipse, outros uma chuva de dinheiro. Era apenas guerra, senhores, guerra pura e barata. Guerra incapaz de fazer entender a aflição de um menino quando pode ser acusado da quebra de um vidro na rua, ou mesmo da necessidade de chegada ao campo de futebol e exercer a “pelada” na sua essência, na melhor virtude.

Veio a discreta tardinha, carente de sol mas ainda que repleta de brisa, desci sem Buja mas acompanhado de minha bola oficial. Enquanto isso, o mundo de Copacabana respirava guerra. Homens e mulheres atônitos nada entendiam, eu pouco sabia: falar em guerra e conflitos militares não era o forte nos colégios. Perdi o futebol do dia, mas resolvi ir à praia só para ver o mar de perto; afinal, quem saberia dizer se por lá haveria uma Vera ou uma Isaura só para mim? Desci a rua impávido, sereno, ciente da minha imponência de atleta do esporte bretão, tendo em meu braço o escorte da “oficial dente-de-leite”. Senti-me livre, sem ter feito mal a ninguém, aliviado por não ter destruído a portaria sem querer.

E, de mais a mais, um menino a caminho da praia com uma bola de futebol não podia mesmo ser ameaça para ninguém. Perigo mesmo estava nos homens que matavam e morriam logo ali ao lado, carregando mazelas dos poderosos na fria Antártica.