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Friday, December 28, 2018

acabou o ano

acabou o ano. contamos, calculamos, renovam-se as esperanças e também as agonias. a maioria apenas sobrevive, a maioria nem percebe que é escravizada. todos ou quase todos vão cantar e celebrar, beber e berrar, extravasar. vem o ano novo, vêm as novas esperanças mesmo que elas não tenham base alguma. vem o escorrer do tempo, o tempo, o inferno disfarçado de vida adulta. todos vão beber e berrar, é preciso entorpecer a alma para aguentar o tranco desta merda toda. não há vagas, não há dinheiro, sobram esperanças. as notícias de repetem, as aberrações andam de mãos dadas com a insensibilidade. vamos ver a bela queima de fogos, vamos nos enganar docemente com o novo tempo enquanto há mortes estúpidas nas esquinas, alamedas e vielas - nenhuma arminha vai resolver nada. alguém fará justiça ao poeta e cantará sobre a estupidez de todas as nações. uns e outros se acham mais importantes do que realmente são, os mais iluminados são os mais humildes. chegou o ano novo, a nova ordem, a nova era, o museu de grandes novidades de outro poeta. entre a obsessão corporativa e a ostentação vulgar, veremos o campeonato de posses entre pessoas jurídicas e físicas. enquanto isso, os trens descem entupidos de corpos vivos, as pessoas estendem seus braços miseráveis implorando por uma moeda e quase são pisoteadas por pessoas superiores em coisa alguma, exceto nas oportunidades. o coração da cidade é uma tristeza, é um velório, é um mar de lágrimas que há de se repetir todas as noites depois da grande queima de fogos, aquela que nos faz sentir que o país pertence ao mundo. tudo é ilusão, aspereza entre irmãos, solidão e dor.

@pauloandel

Saturday, December 22, 2018

exile

exílio

I

no final, tudo é em vão
inútil
efêmero e 
desastradamente
repetido
tudo é perda
exílio
saudade e
distância
no final, tudo é
o tempo 
escorrido
o amor que 
deveria 
ser mais do 
que é
o nunca mais
que atordoa
as reticências do 
que
não foi
o desamparo
o tempo escorrido
o tempo
escorrido
a vida frágil
a saudade inútil
tudo é
exílio

II

Ainda me lembro da noite em que soube da morte de Raul Seixas. Eu estava com Zé Luiz no bar do DCE da UERJ quando alguém na Rádio Fluminense deu a notícia. Por mais que não fosse exatamente uma surpresa, ficamos atônitos. Eu comia um hamburger barato com refresco de cola. O Zé não sabia o que fazer. Nós éramos dois garotos de faculdade, cronicamente pobres, sonhando com migalhas, tudo tão atual. A rádio começou a tocar uma canção de Raul e o bar, quase vazio, ganhou um silêncio profundo que eu nunca mais voltaria a ver por lá. Raul Seixas estava morto, muito mais morto do que hoje, quase trinta anos depois. 

@pauloandel

Tuesday, December 11, 2018

o que nos cabe

três horas da manhã e alguém
ri alto da própria desgraça
enquanto passa ao largo
da praca da cruz vermelha

é apenas uma contestação
sem grandes lamentações
nem palavras de conforto:
ele também ri de todos nós

enquanto as últimas gotas
ou lágrimas deságuam no
ralo da pia de louça branca
- um ano velho escorre ali!

não temos grandes notícias
nem planos ora infalíveis
não há feitos inigualáveis:
resta apenas um sonho em vão

Friday, December 07, 2018

para tom waits

solitário o vagabundo
deitado num colchão de
pedra

dormindo à tarde por medo
de ser incinerado, fuzilado
transformado em sucata
do iml - esquartejado podre

as janelas da vizinhança não
abraçam ninguém

enquanto o cheiro escuro da rua
sobe do asfalto e navega
feito condomínios d'alma

não! ainda não é natal
é só um dezembro de chuva
e triste
eles nos veem como pombos:
merecemos ser exterminados
por causa de migalhas

a fumaça feia e suja entorpece
os pensamentos distraídos:
são tempos modernos, egoístas

e tom waits reza a missa num
radinho velho: estão libertos
todos os miseráveis, bêbados
admiráveis errantes vagando
sem rumo ou justiça rija
sem causa ou obediência
sem amigos falsos também

[espia o céu da Lapa depois
de Jello Biafra
e antes de Mano Negra

[encosta o peito no chão
de pedra e namora
a boa morte sem rancor

[a última dança da bailarina
não guarda aplausos
mas uma paixão tesa

tom waits canta
rói a noite e ladra vil
os mendigos são
romance em pó e vento:
onde mora nick cave?

Thursday, December 06, 2018

o ventre da cidade

debaixo das sombras dos gigantes
do concreto corporativo
driblando um sol de rachar 
lá vou eu: sem grandes ambições
e esperanças modestas 
sem pai nem mãe
sem meu irmão 
meu coração despedaçado
procurando esmolas comerciais
e um lugar bem longe 
do sol de rachar
minhas canções desimportantes
ecoam no imaginário
eu não estou procurando um lugar
ao sol de rachar
o que me basta é abraçar
os que me querem bem
os que cumprem pena de miséria
os esculachados
o meu grande coração machucado
caminha anônimo por entre
os soldados da ditadura industrial
com uniformes beges e neutros
ou tailleurs e conjuntinhos manjados
eu sou uma formiguinha
diante dos grandes prédios
com meus chinelos baratos
uma bermuda esgarçada e rota
e cinco mil poemas
eu não sou nada diante do mundo
talvez um número ou um verso
nada diante da grande fome
e da seca que corrói as vísceras
eu sou a herança do nada 
e com meus passos de formiguinha
em chinelos modestos 
atravesso o ventre da cidade
enquanto homens respeitáveis
com ternos bem cortados vêm e vão
com suas malas importadas
cheias de silenciadores
depois de cinco mil passinhos
eu passo por uma livraria e vejo
de maneira inusitada a mim mesmo
numa capa de papel
depois vou para um restaurante barato
conto histórias e traço planos
sem hora de voltar
eu beijo o ventre da cidade
e penso em versos tortuosos
para o futuro que se avizinha
mas não impede as lágrimas
da saudade desfraldada
onde estão meus mortos? 
meus amigos impossíveis?
onde está o que não foi visto
e o que não se viveu direito? 
eu sou uma formiguinha
e com meus pequenos passos
em chinelos de mocidade
vou atrás de mim mesmo

@pauloandel