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Friday, March 31, 2023

por fim

Quem te dá a mão de verdade quando você está à beira do precipício? 

Quem? 

Muito pouca gente, para não dizer ninguém. 

Quem realmente se importa com a tua dor? 

Quase ninguém. 

Ninguém. 

Até a próxima morte

Como sempre acontece nas últimas décadas, a chuva um pouco mais forte foi suficiente para detonar a cidade e matar pessoas. 

As desculpas são sempre as mesmas: choveu tantos milímetros como nunca, aconteceu o imponderável e outras mentiras estapafúrdias que só convencem os desmemoriados ou desinformados. Ora, se o volume de chuva é grande, o que resolverá? Não é apenas noticiando que choveu demais...

Pouco antes de eu nascer, aconteceu a tempestade de 1966. Durante anos e anos ela foi uma referência de desastre. Aí veio a tempestade de 1988 que parou o Rio por dias e dias - eu era garoto, trabalhei que nem um cão. E depois vieram outras e outras e outras. 

Pouca gente fala, mas a sensação de abandono é tamanha que, ao longo dos tempos, as pessoas passaram a ter medo da chuva no Rio de Janeiro. Basta o céu nublado que as ruas se esvaziam, as pessoas se escondem, compromissos são desmarcados e muitos dias úteis viram ociosos. E é pra ter medo mesmo. A falta de manutenção do sistema elétrico pode te dar um choque mortal, ou você pode ser arrastado pelas águas em plena região urbanizada. Nem é preciso dizer do sofrimento de tanta gente e encostas e lugares de risco. 

Às seis e meia da manhã, o gris do céu tem cheiro de morte. Somado à véspera do aniversário do golpe militar, compõe um conjunto deprimente. Deprimente.

@pauloandel

Wednesday, March 29, 2023

Jesus não tem dentes no país da hipocrisia

Talvez a maior contribuição que as redes sociais tenham prestado ao mundo seja a exibição crua da hipocrisia mundial.

Mundial sim, o problema é universal. 

O caso é que no Brasil parece que há uma faixa bônus, uma perversidade extra.

Sabe aquela garrafa de Coca-Cola 2 litros que vem com um acréscimo no rótulo? Pois bem, é só adaptar para o brasileiro excrot0, que tem um bônus exclusivo, acima da média global. 

Todo mundo aqui conhece alguém que, na internet, arrota discurso progressista, bom-mocismo e ética mas que, na chamada vida pessoal, nem disfarça seu reacionarismo e egoísmo (quase uma redundância), reproduzindo comportamentos que tanto diz combater.

Nas redes, discursa contra a fome. À rua, troca de calçada para não ver gente esfomeada. Ainda tem requintes de crueldade: quando diz "Eu ajudo mas não dou dinheiro de jeito nenhum", pode ter certeza de que não ajuda em porr@ nenhuma... Alguns são capazes de responder com grosseria aos pedintes. "Esse vagabundo fica dormindo na rua", falando de alguém geralmente desmaiado porque não dorme à noite por medo de ser estuprado, incendiado e/ou assassinado. Imagine se uma besta dessas conseguiria passar uma noite sequer dormindo na calçada... 

Se o tema é a desigualdade, textos e textos e textos; agora, se o vizinho, o amigo ou até um parente precisar de socorro, é só fazer  cara de paisagem e ligar o "Ôdracir". Só que a urgência da vida não se resolve com textos de internet, aliás texto algum. 

O racista? "Ah, eu tenho um amigo preto". O homofóbico? "Ah, eu tenho amigos gays". O discípulo do etarismo? "Não, é só para colocar um pouco mais de energia". O neoliberal herdeiro/oportunista? "Ah, você não se esforçou o suficiente...". São muitos os casos, mas quem consegue ser mais excrot0 nesta verdadeira Olimpíada da excrotidã0 é o gordofóbico: "Não estou falando do seu corpo, apenas me preocupo com a sua saúde". Não se preocupa é com porr@ nenhuma, exceto com seu escr0tíssimo senso (?) estético. 

Fique sempre atento aos bacharéis moralistas. São os piores. Cheios de certezas e ditados, adoram terceirizar culpas, geralmente jogando a conta pra Deus. Não cumprimentam nem os funcionários do condomínio e querem falar de pátria. E quando vem aquela esparrela de "família", pode mexer no iPhone ou no computador do desgraçado: você vai achar m3rda com certeza. É batata! De miliciano a vendedor de sentenças, não escapa um! 

A carteira de desculpas e sofismas para tanta excrotidã0 é diversa: o ser humano é complexo, a contradição faz parte da natureza humana e outras retóricas esdrúxulas - no pior estilo auto ajuda - para embrulhar luxuosamente a própria canalhice. Enganar a si mesmo é uma obsessão do hipócrita, mesmo que ele já não consiga enganar mais ninguém. 

Enquanto isso, o ódio aumenta, a miséria sufoca, a intolerância agride e a indiferença mata. Salvo raras exceções, ninguém nasceu mau. A ruindade é uma doença que se adquire pela transmissão humana - para muitos, com gosto. E são exatamente esses que sabotam a tal pátria, ou o país. 

Enquanto as pessoas choram e passam fome, vivem ao relento ou se apavoram com o despejo, choram para ter um emprego de salário mínimo, você liga a TV ou vai ao YouTube e logo aparece um engomadinho oferecendo maneiras de "investir", como se milhões de miseráveis pudessem fazer isso. "Planeje seu futuro",  "administre"... 

A hipocrisia está ligada no volume máximo e, se a gente não se mobilizar, sequer percebe. 

@pauloandel

Sunday, March 26, 2023

Paralamas no Lollapalooza

Deitado em berço esplêndido no calor infernal do Rio de Janeiro, procuro alguma coisa na TV sem o futebol de domingo. Zap dali, zap de lá, e fico sabendo que está para começar o show dos Paralamas do Sucesso no festival Lollapalooza. Uma boa pedida. 

Boa, não: excelente. Escutando e olhando para a telinha, me dei conta que o Paralamas está comigo desde a meninice, quando fui vê-los lançar o compacto de "Vital e sua moto". Faz tempo, senhor: eu tinha catorze anos, debutava no segundo grau e a gente achava o máximo pegar o ônibus circular, de Copacabana até o Jardim Botânico via Leblon, para ir ao Parque Lage só para ver a banda. Menos de dois anos depois, eles explodiram de vez no Rock in Rio e estão aí até hoje. 

Conheço literalmente todo o setlist, uma faixa atrás da outra, e a competência da banda é permanente. Tocam juntos há muitos anos com músicos que nem podem ser chamados de apoio, mas parte da banda moralmente falando. João Fera (teclados), Bidu Cordeiro (trombone) e Monteiro Jr. (saxofone) acompanham os Paralamas nos palcos há décadas, sempre com ótimos resultados artísticos. Nota 10.

A cada sucesso, a garotada do Lollapalooza urra e dança. Quando a maioria nasceu, os Paralamas já eram consagrados, mas estão tocando sob o sol a pino como se fossem iniciantes, de tão entusiasmados. É visível na tela. Então me lembro de uma cena de 1988, no Festival Alternativa Nativa que rolou no Maracanãzinho: eu, Jorge, Henrique e mais alguém, a gente no show dos Paralamas. Herbert Vianna, todo de vermelho, fez embaixadinhas com uma lata ou algo parecido. 

Se os Titãs foram avassaladores com sua mistura de pop e peso na segunda metade dos anos 1980, o Barão Vermelho foi a grande banda de rock puro daquele tempo e a Legião Urbana arrebatou multidões, o papel dos Paralamas do Sucesso não foi menos do que espetacular: além de popularizar os metais latinos no Brasil, a banda continuou rock mas temperada com sabores latino-americanos, caribenhos, jamaicanos e brasileiríssimos, numa mistura que até hoje soa maravilhosamente bem, com frescor de novidade. 

No trio base, Herbert Vianna é um dos melhores guitarristas já surgidos no Brasil, e a cozinha do contrabaixo de Bi Ribeiro com a bateria de João Barone é uma verdadeira máquina de ritmo. Aliás, anos atrás entrevistei Barone em sua casa e ele foi tão simpático que sentei no chão para trabalhar. Foi um barato: falávamos do nosso Fluminense. Barone acabou de fazer sua turnê com o Call The Police, ao lado de Rodrigo Santos e Andy Summers. É um monstro.

Uma horinha de show, todo mundo cantou a valer no Lollapalooza e está na hora do final. Olho para aqueles caras e lembro de quantas vezes os vi no Canecão, no Circo Voador, no Maracanãzinho. Quantas vezes os ouvi, quantas vezes namorei seus LPs sem dinheiro para comprá-los - e quando tive uns trocados, compensei comprando todos os CDs. Quantas vezes não alimentaram meus romances fracassados mas inesquecíveis? 

Uma das grandes bandas do mundo é 100% brasileira, e tenho orgulho de acompanhá-la desde o começo. Os Paralamas tiram é onda! 

Saturday, March 25, 2023

Oração iconoclasta

Por que somos tão escr0t0s?

O que faz a gente ser assim?

Não nós, nem todos nós, mas muitos e muitos de nós.

Por que somos tão hipócritas?

Por que nos doemos somente quando a miséria é do outro lado do mundo, mas a desprezamos em nossa calçada?

Por que em nome de Deus, da pátria e da família, muitos de nós fazem atrocidades inaceitáveis aos olhos do Criador, repulsivas para o Estado e vergonhosas para nossa célula familiar?

Por que somos tão cafonas, antiquados e totalitários, mas vivemos pregando sobre o somos incapazes de realizar?

Por que muitos de nós somos progressistas da boca pra fora, mas no cotidiano agimos igualzinho aos poderosos coronéis que oprimem e humilham?

Por que enchemos a boca para falar de amizade mas, na vida real, não somos nada do que discursamos?


Friday, March 24, 2023

mais do mesmo na cidade indiferente

Reprodução do texto de Leandro Pereira no Facebook. 

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Hoje ocorreu um suicídio no banheiro do Casashopping, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Um segurança atirou na própria cabeça. Ele era jovem e gravou um vídeo de esclarecimento a todos. Algo angustiante aconteceu no maior shopping de decoração da América Latina. Ali é um dos ambientes mais luxuosos no Rio. 

O jovem se dizia uma pessoa triste e infeliz. Disse que fingia ser uma pessoa legal, estava até acontecendo algumas coisas legais na vida dele. Mas ele voltou pra escuridão. 

Lembrei com a minha supervisora um episódio em 2020 quando eu falei com uma moça da limpeza agradecendo a gentileza dela ao liberar o banheiro de manhã. Ela disse "obrigado". Na saída eu perguntei o motivo do agradecimento. E ela disse que se sentia invisível, que ninguém falava com ela.

Não vou postar o vídeo do rapaz porque é de chorar. 

Precisamos urgentemente incluir as pessoas. Precisamos falar sobre suicídio.

Ninguém é feliz o tempo todo.

Peço orações ao Ericles Oliveira. Para que a alma dele encontre conforto, para que Deus tenha piedade dele.

Tuesday, March 21, 2023

escola, escola

Antes de tudo, tudo mesmo, é bom que se diga: escola é fundamental e o único jeito para sairmos do século XIX. Apesar de tudo, tenho sobrevivido bem graças aos estudos. 

Contudo, minha vida escolar não foi nada fácil. Uma verdadeira bagunça. 

Mal havia começado, fui expulso de uma escola pela ditadura. Numa situação extremamente azarada, os militares resolveram descobrir que perigo eu representava para a sociedade aos sete anos de idade. Mandaram a direção me excluir. 

Eu estudei sozinho em casa. Sempre gostei de estudar. Pulei da primeira para a segunda série por nivelamento. Aí, precisamos mudar temporariamente de Copacabana para Vaz Lobo, meu pai estava muito empobrecido. Parei na metade da terceira série. Nesse tempo, que durou pouco mais de um ano, fiquei sem estudar formalmente, mas fazendo exercícios em casa diariamente por conta própria. 

Voltamos para Copacabana no final de 1977 e aí, finalmente, tive estabilidade escolar. Comecei a quarta série em 1978 e fiquei no mesmo colégio até 1980, quando fui dispensado por não poder pagar a mensalidade e ter tido uma nota vermelha em Matemática, a única de todo o meu currículo escolar, que questiono se foi um mau desempenho meu ou uma desculpa para tomarem minha bolsa de estudos. 

Saldo: até os 12 anos de idade, fui expulso de uma escola, perdi a bolsa em outra, praticamente não fiz a primeira série, saltei para a segunda e fiz metade da terceira. Por incrível que pareça, nada disso atrapalhou meu avanço nos estudos. 

Em 1981, fiz a sétima e oitava séries em escola pública, o que continuou no Segundo Grau. 

Trouxe comigo até hoje poucos amigos do primeiro grau e nenhum do segundo, uma pena e uma estranheza também.

Passei por boas escolas, não tenho dúvidas, e tive alguns professores admiráveis, poucos, que realmente me influenciaram. Outros, não: alguns realmente não ensinavam bem e outros eram grosseiros gratuitamente, na verdade estúpidos, estúpidos ao extremo.

Havia também o bullying, que era insuportável em muitas ocasiões. Esse é um assunto muito sério, que faz muitas crianças e adolescentes sofrerem ao extremo, inclusive levando alguns ao suicídio, mas há gente suficientemente ignorante para dizer que é "frescura" ou "babaquice".  Sofri bastante com isso, mas menos do que outros colegas de classe que eram extremamente humilhados pelos alunos que se sentiam "superiores". 

Depois cheguei à universidade. Passei por várias, mas a dona do meu coração é a UERJ. Lá, levei alguns poucos zeros, aprendi com todos eles, também tive grandes professores, outros péssimos, mas já não havia bullying algum e fui muito feliz por lá, talvez feliz como nunca mais voltei a ser em quantidade. 

O diploma de estatístico cancelou aquela nota vermelha em Matemática na sexta série. 

Sunday, March 19, 2023

para o verão que morre

Dois terços de março escorreram num estalar de dedos e pimba: acabou o verão.

Eu gostava mais quando era garoto, entre meus 11 e 17 anos. Não que fosse fácil, porque não era: sofria muito em casa. Porém, quando você mora perto da praia, ela se incorpora à sua vida. Jogar bola, ver a beleza das meninas, o desenho do Atlântico Sul em Copacabana, sentir o enorme silêncio de manhãzinha, a neblina da ganja à noite perto do mar. Dando sorte, você até conversava com ídolos, como me aconteceu certa vez: eu e Xuru saímos da água com nossas pranchas de isopor, quando Orlando Fantoni e Paulo Amaral puxaram papo conosco e nos pagaram picolés de côco. Imagine, eu molequinho e um campeão mundial conversando comigo. 

Minha praia cerrou as portas de vez em 1989. Às vezes eu corria às seis da manhã, voltava em casa para tomar banho e saía correndo, porque o 434 não esperava. Chegava na UERJ elétrico, enquanto o pessoal ainda estava sonado. Uma contusão no tornozelo encerrou minha carreira de atleta, e as aulas cedo mais os estágios resumiram minha Copacabana a um dormitório. O golpe final foi o despejo anos depois, que arrasou toda a minha família. Não é fácil ser humilhado pela pobreza. 

Desde então, lá se foram trinta verões. Eu voltei à praia muitas vezes, à noite, pelo futebol ou para caminhar, fazer algum exercício, namorar. O problema é que a relação de vizinhança se espatifou. Você descia e estava no calçadão em dez minutos a pé, encontrava os amigos. Agora, não. 

O verão era uma promessa. Grandes shows, bares, o amor, roupas leves, sem maiores preocupações. Aí você estuda, começa a trabalhar, passa trinta anos numa baia sem janelas, perde trinta verões e, aos 50, uma mulher hipócrita finge chorar ao te entregar a carta de aviso prévio - tchau. No Brasil dos últimos anos foram milhões, o que fez o Rio sentir o golpe literalmente: a cidade está esvaziada, decadente e triste, cheia de lojas fechadas pelos bairros, com muita gente chorando de fome e sede nas ruas. E então o verão tem a missão de espalhar alegria e encobrir melancolia. O samba, os blocos, o Carnaval, o começo da temporada do futebol, tudo isso serve feito uma deliciosa cachaça para nos entorpecer, até voltarmos aos melhores anos de nossas vidas. 

Bate a realidade. O Carnaval passou, os blocos se despediram, o Campeonato Carioca vai terminando e, com exceção dos sofridos engravatados, a turma começa a sentir que o outono se avizinha. As folhas irão ao chão, a chuva deve aumentar. As águas de março, Tom e Elis. O verão tem uma felicidade gratuita que a sobriedade do outono trata de tirar do caminho. 

Ah, verão: queria ser teu adolescente outra vez. Pobre, choroso, mas com vários momentos desse pequeno bálsamo chamado felicidade. 

Tuesday, March 14, 2023

Titãs, Raimundos, Canisso e Dorsal Atlântica

Eu sou fã dos Titãs, muito fã. Desde que começaram a tocar no rádio, quando isso era um sinal de sucesso à vista. Entre o fim dos anos 1980 e o começo dos 1990, os Titãs eram os reis do Canecão, vi muitos shows por lá. Uma casa histórica, o ingresso barato e a dez minutos da minha casa de ônibus. Logo, logo, você estava diante de Tim Maia, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho e até o Jethro Tull.

Por isso, num domingo à noite em 1992, depois de um campeonato de botão na casa do Luiz, resolvi partir para o Canecão em busca do novo show dos Titãs. Joguei minhas partidas, me despedi do pessoal, desci a Figueiredo Magalhães, peguei o ônibus na Avenida Copacabana e, em minutos, estava na bilheteria comprando meu ingresso titânico, mais uma vez. Cheguei cedo e fiquei sabendo que teria uma banda de abertura, os Raimundos. Ainda com a casa quase vazia, os novatos subiram para o palco. E meia hora depois eu estava impactado por uma verdadeira porradaria sonora, misturando som pesado com ritmos nordestinos e triângulo, além de muitos palavrões. Um negócio sensacional. Pensei na hora: esses caras vão dar liga no rock. Depois vi meu maravilhoso show titânico numa boa, mas os Raimundos foram marcantes demais. 

Pouco tempo depois, deu no que deu: os Raimundos viraram ponta no rock brasileiro, tocaram loucamente, encararam uma legião de fãs e se consagraram. Os primeiros álbuns eram demolidores e deixaram suas marcas. Acompanhei tudo de pertinho. Os anos 1990 tinham bandas brasileiras poderosíssimas surgindo, além dos Raimundos: Planet Hemp, O Rappa, Chico Science e Nação Zumbi, Pato Fu, Skank, uma turma da pesada. 

Anos depois, por vários motivos, acabei me afastando do som dos Raimundos. Fui escutar outras coisas, muitas coisas, a banda mudou de formação etc, mas nunca esqueci daquele começo deles, até por serem apadrinhados pelos Titãs, com quem sempre caminhei. E aí surge o nome do baixista Canisso, porque era o cara mais simpático e articulado da banda, sempre falando na MTV num tempo em que a emissora dava as cartas na cultura nacional.

Lembrar de Canisso e dos Raimundos é automaticamente lembrar de tempos felizes na UERJ, de grandes almoços em restaurantes como o Capelinha em Vila Isabel e o La Monet, no Méier. Grandes amigas, gatas crush. De meus últimos anos como um feliz morador de Copacabana, apesar de tudo. Coisas de 30 anos atrás, quando você é jovem e acredita piamente nos versos da charmosíssima Marina Lima: "o mundo pode ser seu, todinho seu!". Mas aí surgem os versos implacáveis de outro poeta, Cazuza: "o tempo não para". 

Assim, o tempo escorreu e Canisso, ainda tão jovem, morreu na segunda passada aos 57 anos de idade. Mesmo dia do aniversário de Chico Science, se não me engano. A comoção provocada nos fãs e as inúmeras declarações dos colegas de profissão não deixam dúvidas sobre a falta que deixará. 

Há outras histórias, muitas, mas estas eu deixo para depois. Se meu espírito já não era mais próximo aos Raimundos nos dias mais atuais, ele continua se alimentando de rock - e, por isso, encerro estas linhas saudando meu amigo e ídolo Carlos Lopes, referência da música extrema brasileira: viva a Dorsal Atlântica!

Canisso, siga em paz e obrigado por tudo. 

Monday, March 13, 2023

segunda no rio

Meio de março, águas a caminho, as duas prorrogações do Carnaval com seus super blocos já se foram, o verão começa a dar adeus.

A proximidade do outono parece trazer uma espécie de volta à realidade.

Você liga o jornal e a violência é cada vez mais intensa, não apenas dos grupos criminosos de sempre, mas do delinquente ocasional - aquele que nunca roubou uma tampinha de caneta e, de repente, mata alguém. Uma mulher busca uma faca e mata o namorado por ciúmes. Um monstro enche um garotinho de porradas, porque teria maltratado seu cachorro pitbull.

No Riachuelo, tradicional e esquecido bairro carioca, falta água no verão. As pessoas pagam as contas mas são humilhadas e ficam impotentes. Riachuelo, Sampaio, Rocha, Quintino, Água Santa, cheios de gente e problemas, mas completamente desprezados pelos poderes públicos. Geralmente são visitados em época eleitoral, candidatos em busca de votos e só. No fim, as pessoas são muito humilhadas. 

Deve ter briga de torcidas. Clássico no Maracanã logo mais. Tem sido assim há muitos anos. Por que será que a polícia não consegue prender pessoas que matam outras, tendo o pobre futebol como desculpa? Por que será que é tão difícil quanto prender certos traficantes e milicianos? E o que adianta proibir o uso de camisas no Maracanã se as brigas mortais podem acontecer em Madureira, Anchieta, São João de Meriti, Caxias etc? Prevenção ou populismo barato, jogando pra galera sem realmente resolver o problema? 

Ao mesmo tempo, o coração da cidade agoniza em via pública. O Centro, o grande Centro de grandes personagens e histórias de importância nacional, se decompõe a olhos nus. Sem um público circulante de mais de 70 ou 80 mil pessoas, provocado pelos desastres político-econômicos, a pandemia e a especulação imobiliária, o que se vê é um ar de decadência, exceto por situações pontuais específicas - uma bela exposição no CCBB, por exemplos. A Rua da Carioca, símbolo do orgulho carioca, hoje é uma via de passagem de veículos, com 80% de suas lojas fechadas e deserta depois das 17 horas. A Praça Tiradentes está completamente abandonada. Em diversos pontos, dezenas e dezenas de prédios abandonados que jamais serão retrofitados, muitos com apenas um banheiro coletivo por andar. Enquanto isso, a gentrificacão corre solta no Porto Maravilha. "Ah, os pobres… que se danem!". É triste demais. 

Enquanto as zonas norte e oeste vivem o ocaso e o desprezo, a zona sul experimenta a miséria nas ruas como raras vezes se viu. Catete, Flamengo, Botafogo e Copacabana vivem a incoerência de prédios com PIB expressivo abrigando a indigência debaixo de suas marquises garbosas. Famílias inteiras choram e passam fome, mas o dar de ombros é a regra. Há quem lamente que a Covid-19 tenha matado "apenas" um ou dois milhões de pessoas. 


Hoje Antônio Pedro será enterrado e, com ele, vai-se muito do riso carioca que alegrou nossos cinemas, teatros e o imaginário dos velhos botequins. A boemia que, aos poucos, fomos trocando pelo comodismo dos áudios no WhatsApp - porque escrever cansa. 


Segunda no Rio, céu de gris, melancolia. 


Tuesday, March 07, 2023

é difícil ser bicho

Depois de mais de uma noite mal dormida, ligo a TV e me deparo com um caminhão tombado em algum lugar. A carga era um monte de galinhas.

Coitadas. Juntas num bolo que mais parecia um supermercado cheio, paradas, cacarejando sem saber que adiaram a morte. 

Já no take seguinte, como era de se esperar, um monte de gente esfomeada começou a saquear a carga. Para muitas galinhas, a hora da morte sofreu apenas uma vírgula.

É muito duro ser galinha, frango, peixe ou qualquer bicho que faça parte da cadeia alimentar humana. Eu não queria que nenhum bicho morresse, mas o frango, o peixe e o espetinho são deliciosos. É uma contradição que sempre carregarei.

É muito duro ser humano no Rio de Janeiro onde, se você não pertence a um nicho de elite econômica, quase sempre está ameaçado pela violência, despejo, miséria, sofrimento e o pior: com a total indiferença das pessoas em volta. Se alguém para numa janela e ameaça o suicídio, a turma da calçada grita "Pula!". Todo mundo que tem 50 anos ou mais já ouviu algum infeliz dizer "Tem que tacar uma bomba em cima da favela e matar tudo".  Nós, societá, somos muito piores do que parecemos. 

A TV continua. A mãe assassinada, o rapaz morto na briga de torcidas, o assalto na portaria e por aí vai.

Há quem acredite que a solução é só pensar em coisas boas, deixar de lado a má energia. Na prática, fingir que isso tudo não existe e que não fazemos parte desse processo.

Eu, não, mesmo que pareça hipócrita minha solidariedade às galinhas, porque a que dedico aos seres humanos não tem hipocrisia alguma. 

Então desligo a TV, o ventilador super turbo, me preparo para o banho e a saída para o trabalho.

Na cabeça, carrego medo, tristeza, decepção. Já pensei muitas vezes que eu gostaria de ser uma pedra bem grande e ficar na minha num parque qualquer. Quando era pequeno, tinha uma bem grandona no Parque da Cidade. Queria revê-la, nunca mais fui lá.

Bom, pedra bem grande longe de empreiteiros da brita, que fique registrado. 

Bom dia. 



Agora que o ano finalmente começou

Começou o ano de 2023 de fato no Rio. Uma semana depois do fim do Carnaval, os últimos blocos ainda arrastam multidões no Centro da Cidade e, a seguir, ficam para trás as festas, os abraços, os beijos românticos e o frenesi das ruas. Deixa um gosto de quero mais, aguçado por aqui devido à pandemia. Este Carnaval foi além da celebração, servindo também de desafogo contra a opressão que invariavelmente nos cerca. Por isso mesmo, muita gente o viveu ainda mais intensamente, um fato que não deixa de ser absolutamente compreensível.

Depois que as serpentinas foram varridas do chão, vem a realidade e ela não é nada fácil para nós, cariocas, da gema ou não - tanto faz. 

A esperança que já sopra noutros lugares do Brasil, motivada pelo novo governo que, goste-se dele ou não, já dá seus primeiros sinais de ação, ainda é bem rara no Rio. 


Talvez nunca tenhamos sido uma cidade tão partida como agora, onde a questão econômica dói como faca rascante. 


A miséria está estampada a olhos nus, basta um pouquinho de atenção. O tal normal, que viria depois do controle da pandemia, nunca chegou. Salvo o tradicional bolsão elitista da Zona Sul e de outras localidades como a Grande Tijuca, o desemprego sugere a cidade num grande feriadão, vazia. Mesmo em locais de grande circulação comercial como no Méier e em Madureira, a diferença de público circulante é nítida quando comparada ao passado. Ok, o transporte público continua lotado, então como explicar isso? Simples: o sucateamento, a ineficiência e a desorganização. 


O coração do Centro bate descompassado, inchado, com risco de morte. A região continua sofrendo com seu completo esvaziamento. A hora do rush às vezes sugere que você está num feriado, de tão vazia. Com mais de dez mil unidades fechadas, muitas antes da pandemia, o Centro tem uma reação muito lenta com alguns retrofits que mais parecem gentrificacão. Aliás, a própria história do retrofit é bastante imaginativa, porque muitos prédios da região possuem apenas um banheiro por andar, típico de modelos construtivos de outrora. Como transformá-los em habitação? 


O subúrbio mantém sua luta pela sobrevivência e identidade. Cada vez mais as ruas estão vazias, salvo os tradicionais pontos de concentração. Não é surpresa alguma que, se você resolver vir de Cascadura para o Centro às 21 horas, não passe por uma viatura policial sequer. A política comercial está deteriorada. A insegurança é a regra principal. Nossa sorte é que brotam iniciativas populares próprias, como a maravilhosa Livraria Belle Époque no fígado do Méier - cada bairro suburbano precisava ter uma Belle também -, porque a única saída que temos está na conscientização social e ela depende dos livros, dos discos e da arte em geral. É claro que, do calçadão de Madureira à batata frita de Marechal Hermes, o subúrbio carioca nos oferece momentos maravilhosos - o problema é que são para poucos habitantes. 


Que 2023 desafogue o nosso nó na garganta.