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Tuesday, December 21, 2021

oh, então é Natal

Ah, então é Natal e o verão é uma realidade, mas todo cuidado é pouco: já pensou em todos os seus atos neste ano? 

Foi indiferente? Fez a tradicional cara de paisagem? Omitiu-se quando poderia ter agido? Tudo isso pode levar à morte de terceiros - depressão - suicídios - sofrimento.

E o cuidado com as palavras? Escritas e faladas. Tem praticado? Palavras mal utilizadas podem destruir bons sentimentos.

Tenha certeza: fazer o bem é bem mais importante do que ser bom. Muita gente fica mais preocupada em parecer boa do que qualquer outra coisa, e o bem fica de lado. 

Pedir desculpas e tentar reparar erros não é humilhação, mas grandeza. Medíocres ficam remoendo as desculpas; os grandes a praticam. A arrogância e a empáfia são defeitos que levam à estupidez, é preciso cuidado. 

Eis o planeta Terra, um lugar onde muita gente sofre e a maioria absoluta das pessoas não tem direito a nada. São milhões de crianças e adultos morrendo de fome e de sede, muitas vezes jogados em calçadas para a lenta morte com as mãos estendidas em vão. 

Já falou com seu amor hoje? Seus amores? Lembrou a todos do seu amor? Nunca é tarde para se fazer isso. O amor que não se expressa não resiste. 

É Natal, é verão e se tenta passar uma felicidade que, sinceramente, não existe. Nossa realidade é a dor, o sofrimento e a depressão. Lembre-se disso antes de priorizar seu mundinho particular acima de tudo. O único sentido da vida é ter boas companhias, fazer o bem, ter algum conforto e fazer as coisas com amor. 

Se não puder fazer o bem pelo próximo, tenha pelo menos alguma solidariedade. Não chegamos a esse caos à toa: foi um longo processo de involução, ignorância e egoísmo. O resultado aí está e é trágico. 

É Natal, mas está faltando humanidade nas esquinas.

Pode não parecer, mas ter cuidado com o outro é ter cuidado consigo mesmo. 

@p.r.andel

Tuesday, December 14, 2021

brand new day

hoje eu tenho a madrugada longa e quente, solitária estrela no céu

mais um ventilador que lembra a turbina de um avião e silêncios quase imaginários

eu tenho um dia novinho em folha

cheio de medos razoáveis, inseguranças e natural descrença no projeto do ser humano - eu tenho um lindo dia novo em folha

ao longe, ouço vozes chorosas e sofridas e recados sonoros de violência crua no asfalto que os carros abandonaram  pouco antes das três da manhã: descansa em paz um dia novo em folha

penso na beleza do cinema, o rio e nas mãos dadas que me desprezam e nos abraços mortos que me desprezam

- foi-se embora uma segunda-feira tensa

e daqui a pouco terei um dia novo em folha

uau! o shopping center abarrotado que parece até outro planeta até encontrar um menino negro à porta com sua caixa de doces e um recado:

"senhor, como podemos ser tão estúpidos?"

e o vento quente corta pesadelos, parece um cutucão dizendo "fique atento, pois você tem na mão um dia novo em folha"

[os minutos correm como se aqui fosse o inferno

[eu tenho um punhado de paixões soterradas e amores sob os escombros de um desabamento admirável, mas e daí? ninguém liga

minha cabeça dói feito um berço esplêndido ou meu sobrenome desimportante

todos estão dormindo ou surdos

a cidade é um templo dos cemitérios

eu tenho um dia novinho em folha e nenhum futuro me aguarda na sala ao lado

esqueça qualquer final feliz: é apenas um novo dia que se abre pelo azul escuro do céu

um dia novinho, novinho em folha

feito um lindo filme à beira da lagoa


(livre adaptação sobre a poesia de Sting)


@pauloandel.

Saturday, December 11, 2021

monarco

Por mais que o tempo não pare, com Monarco isso parecia acontecer no melhor sentido. Ele era a perenidade e a elegância do samba numa só pessoa. 

Sua morte é também a morte de parte da cidade, a cidade de raízes profundas no samba de classe, no querido America; na cidade de antigamente que, rapidamente postada às nossas vistas, resgata o que já tivemos de melhor. 

Não é exagero dizer que a morte de Monarco está para o samba como a de Miles Davis para o jazz ou John Lee Hooker para o blues, só para falar de três homens negros do tamanho do mundo, grandiosos, definitivos. 

Desde criança eu o conhecia de casa, pelos sons de meu pai, portanto nunca soube o que é a vida sem ouvi-lo. Tudo nele era coisa de elegante, de lorde: o vestir, o falar e o cantar. Felizmente, ainda muito vivo, teve em Zeca Pagodinho - outro monstro - um intérprete de primeira, que espalhou sua música por todo o Brasil. 

Tudo tem seu tempo e infelizmente chegou o dia. Contudo, ao contrário do maravilhoso samba de Paulinho da Viola - outro monstro -, não se trata de um rio que passou em nossas vidas. A arte de Monarco permanece: ela é rio de margens e profundeza colossais. 

@pauloandel

Monday, December 06, 2021

a semana campeã de audiência

Mais um dia de péssimo sono para começar a semana. À toa. Por que apenas uma dezena de problemas, a tristeza e a depressão deveriam atrapalhar o ato de dormir, não é mesmo? Vai começar um lindo dia de mais uma semana brasileira, com a cara do fracasso, mas precisamos ser altivos, imponentes e dizer que está tudo às mil maravilhas. No Brasil não pega bem você dizer que está triste consigo mesmo e com os outros - é que as pessoas precisam pular, rir, gritar uhu e esquecer de si mesmas. Neste exato momento eu sou um privilegiado por não ter que me esmagar no transporte coletivo que humilha o povo, nem levo duas horas para chegar ao trabalho extenuante e mal remunerado. Eu sou um privilegiado porque tenho dinheiro para tomar café, almoçar e jantar, ou ainda porque parece que terei vários anos de vida à frente com alguma saúde, mas tem alguma coisa que me incomoda agora com o dia clareando, já que não dormi e essa dívida permanecerá me cutucando no ombro. Tudo vai passar rápido, logo as pessoas vão se abraçar nas festas de Natal e Ano Novo, a TV já começou a colocar seus jingles de festa mas... será que a gente deveria comemorar alguma coisa? Me perdoem se sou do contra, mas esta bela manhã que nasce não me comove. Ainda tenho na mente o choro dos desesperados, as pessoas correndo para se abrigar da chuva, as pessoas revirando ossos com fome, as pessoas que andam sem rumo nem futuro. São cinco e meia da manhã, ainda é muito cedo para qualquer coisa, muito cedo para ser ouvido ou abraçado, ninguém tem tempo agora. Vem aí mais uma semana campeã de audiência, uhu!

Saturday, December 04, 2021

sócrates, dez anos depois da morte

Em fins dos anos 1970, o Brasil ainda tinha boa parte dos melhores jogadores do mundo, e todos eles jogavam aqui. São muitos nomes, desde os óbvios até os mais alternativos, mas um deles se destacava pelo estilo único: Sócrates. 

Eu me lembro que ele fazia golaços e sequer comemorava, como se as obras de arte fossem triviais. Logo chegou à Seleção e marcou época. Iniciado no Botafogo de Ribeirão Preto, virou a eminência do Corinthians. Outro golaço: cortando para a direita e matando o goleiro Jagger, do time holandês Ajax. 

Ao lado de outros próceres, Sócrates reconduziu o futebol brasileiro ao estrelato. A excursão brasileira à Europa em 1981 colocou o Brasil como favorito à Copa da Espanha, e não era para menos: ganhamos Alemanha, Inglaterra e França em seus domínios, com autoridade. No ano seguinte, embora a Seleção jamais tenha repetido na Copa as brilhantes atuações que ofereceu por dois anos seguidos, Sócrates foi importante do começo ao fim, do golaço contra a URSS ao empate contra a Itália no primeiro tempo. 

Não lhe bastou ser um craque imortal. Foi um líder, uma referência, uma presença inesquecível. Na Democracia Corintiana, que subvertia o totalitarismo no futebol, até sua luta pelas Diretas Já - cogitando até mesmo não deixar o país caso as eleições para presidente voltassem à pauta - , Sócrates marcou o país mais além de suas jogadas brilhantes e de seus gols arrebatadores, como um cidadão engajado. A seguir, ganhou e perdeu, jogou mais uma Copa e saiu invicto, trocou de clubes mas sempre deixou sua assinatura, mesmo quando o corpo já não obedecia à cabeça em campo. Quem o viu de perto em seu auge sabe que ele foi um monstro, dos maiores de todos os tempos. 

Dez anos depois de sua morte, Sócrates é a maior referência de cidadania na história do esporte brasileiro. Para ele, o país merecia a mesma felicidade que as tantas arquibancadas servidas com seus espetáculos. É duro saber que partiu tão cedo, porque o Brasil precisava muito dele, mas talvez ele tenha sido poupado de tanta mediocridade e manipulação que o país tem sofrido, com sucessivos golpes dentro e fora dos gramados. 

Sócrates, o craque, o médico formado, o cidadão, o militante político. Ele foi muitos grandes homens num só. Às vezes o vejo no YouTube e penso que ele está vivo. Quando me lembro de que jogadores não devem ser pessoas alienadas, desinteressadas de seu povo, eu penso em Sócrates. Quando penso em elegância e passes fantásticos de calcanhar, eu lembro de Sócrates. Quando me tornei um garoto apaixonado por futebol, foi porque vi gênios como Sócrates. E se agora me emociono no fechamento destas palavras, é porque mesmo vivo nas imagens, frases e histórias, ele deixou uma lacuna que não cabe preenchimento. 

@pauloandel

Friday, December 03, 2021

dezembro

CAMINHEI com meu amigo Leo, que não via há tempos, e descemos a Carioca rumo à Leiteria Mineira para o café. Ele surgiu subitamente com uma bela doação de CDs para o X, mas logo precisava voltar para Recife. 

Dez da manhã, carros velozes, calçada vazia e lojas fechadas. Desolação. Tristeza. A palavra exata é essa: tristeza, temida e evitada, mas pura realidade. 

Quatrocentos metros depois, a lendária Leiteria nos abrigou por duas horas. Eu lembrei de quantas vezes estive ali, bem como dos intelectuais nos arredores. Então conversamos sobre vida e morte, dramas e alegrias, lindas garotas do passado e jovens senhoras. Tristes.  Falamos de pessoas boas e más, generosas ou falsas, as que nos cercam e as que já se foram. Algum sentido de religião. Um país em destroços. 

Minha fome era tanta que pedi dois americanos. Serviram como refeição de todo o dia. 

Como o que é bom dura pouco, a conversa evaporou porque a vida é assim: precisamos viajar, morar longe, trabalhar, cuidar de problemas, de mágoas, da tristeza - não adianta fugir, ela está no meio de nós - e, quando vemos, lá se foram dez ou vinte anos, trinta anos, os sinos tocam pelos nossos mortos e falamos pelos cotovelos dos melhores anos de nossas vidas. Brigamos para pagar a conta, o garçom ria e, por alguns minutos, nos sentimos num Rio de antigamente, que parece cada vez mais distante. 

Trocamos um abraço, que nunca sabemos ser o último ou não, mesmo esperando naturalmente que não seja. Leo foi para o metrô da Carioca, eu fui para o VLT que tem sido uma das minhas únicas diversões - brincar de passear pela cidade estuprada e sonhar que tudo vai dar certo, mesmo que os dados digam o contrário. Num segundo, eu estava sozinho de novo num vagão confortável para descer na próxima estação e fazer uma breve baldeação. Para fugir da tristeza, fui para o sebo na folga e trabalhei até cansar. Fizemos as contas e não tínhamos metade do que precisávamos. Agora é compensar na próxima semana. 

No fim do dia, era a vez do Jocemar ir para o VLT. Eu o acompanhei. Quando foi embora, entrei no mercadinho e comprei pão, queijo, guaraná, sardinha, salame, Toddy e uma caixinha de leite condensado, além de três sacolas plásticas. Guardei meu CD de música cubana junto e desisti de passear, não só pelo cansaço mas também pela tristeza que acampa em cada calçada ou debaixo de cada marquises. Resolvi caminhar para casa. 

Perto da interdição da Gomes Freire, vi sujeitos balbuciando com olhares tristes. Depois,  na delegacia, uma moça humilde falando perto da grade com um detento. 

Na rua da Relação e na Henrique Valadares, vi algumas poucas pessoas, alguns tomando cerveja, outros passando rápido, alguns esmolando. Cada um tinha um ofício, mas não havia um único semblante alegre. A tristeza é a tônica das ruas. Não adianta fingir, porque a realidade é cristalina. Dezembro tem dessas coisas: o ímpeto consumista num país miserável, a indiferença de alguns, a dor de muitos e uma tristeza indisfarçável. Nós já fomos muito pobres; a diferença é que havia futuro. 

@pauloandel

Monday, November 15, 2021

república

república. hum, ahn, bom, ninguém falou da república hoje. talvez seja porque ela só exista em poucos corações fraternos, bem poucos. quando era criança, meu ideal de república era ninguém passar fome nem dormir na rua, o que eu achava fácil porque produzimos muita comida e temos muita terra, mas não é assim que as coisas funcionam. depois cresci, fiquei adulto, envelheci e a cada hora que passa estou mais longe da minha república. o que me sobrou foi um punhado de boas conversas com camaradas, tentar salvar alguém dos escombros, salvar a mim mesmo do delírio suicida. o que sobrou foi quase nada. a república não pode prosperar com crianças famintas sem carinho de pai e mãe, não pode prosperar em cantos de loucura da cidade em nuvens de crack, não pode prosperar com um homem se arrastando num vagão do metrô enquanto vinte e cinco pessoas olham para seus smartphones como se nada estivesse acontecendo. a república é minha lágrima silenciosa no escuro do quarto antes das onze da noite. a república é a caixinha de mentos da moça solitária tentando vender na porta do restaurante, onde cem gramas custam mais de duas caixinhas de mentos. a república caminha tristonha por entre os grandes prédios de sua antiga capital, cheios de lembranças, tingidos com melancolia e quase desertos de corações em paz. a república é a fresta da cortina azul por onde entra a réstia de luz às cinco da manhã para mais um dia em vão. somos quase todos desprezados e caminhamos firmes a caminho da morte, a nossa única certeza, até que nos enterrem e dentro de duas semanas apenas nossos parentes lembrem-se de nós. eu escrevi cinco mil páginas, escrevi outras dez mil fazendo contas, escrevi cartas de amor inúteis, parabéns esquecidos e abraços sem retorno. a república, ainda não. não, ainda não.

Wednesday, October 27, 2021

nuova normalità

antigamente eu gostava de ir à padaria. era a celebração de um novo dia. agora não é mais. deixa pra lá. 

desci e usei minha rua como pequena amostra. ela é uma importante via de corte do centro e acesso à zona sul. 

o novo normal: apesar do preço estúpido da gasolina, o número de carros tem aumentado no trânsito. carros. praticamente não há ônibus. o ponto está vazio. no máximo algumas bicicletas do itaú e grandes caixas de comida a domicílio. praticamente só.

na lateral da cruz vermelha, o velho cheiro insuportável de urina coletiva, porque a população em situação de rua não tem qualquer direito, imagine um banheiro. por isso o fedor é para todos. viva o neoliberalismo.

cem metros depois, a padaria. os frios são ruins. o pão é bom. as atendentes são atenciosas. sete pães, um sonho de creme, uma qualy pequena, uma coca-cola, vinte e seis reais.

desvio do fedor. há um silêncio constrangedor de rua triste. o brasil está muito triste, mas os carros não vão parar. não há ônibus porque não há trabalhadores. agora é falar com a turma na portaria, tentar rir de alguma coisa, ligar o computador, trabalhar, vender, escrever, ficar mais triste pela morte do tio do amigo e espiar a réstia nublada que escapa pelo pedacinho da cortina. 

ah, e tomar café. ainda há um sonho, nem que seja de creme. novo normal. novo normal. que merda: não era isso que o verão de 1988 prometia para tanto tempo depois. 

@p.r.andel

Tuesday, October 26, 2021

suddenly

O que eu fazia quando tinha dezessete anos? Procurava emprego que nem um louco em vão, tomando todas as portas possíveis na cara. Ficava apaixonado, desapontado e desapaixonava. Sofria todo dia por ver meu pai triste e bêbado. Minha alegria era o meu time, os acampamentos, as conversas na casa do Fred ou na calçada de casa, os sons do mar sentado na areia da praia, o rádio cheio de boas músicas, o jogo de botão. Era uma vida dura como a de hoje, descontadas as vantagens inevitáveis: eu ainda tinha todo o tempo do mundo pela frente, tinha minha família e achava que tinha amigos - de onde foi que eu tirei isso, senhor? E andava pelas ruas do meu bairro, o mesmo que os imbecis chamam de elite zona sul porque não conhecem suas vielas, suas quitinetes miseráveis, seus botequins cheios de mágoa e tristeza, suas favelas escondidas atrás de prédios belos e sujos, seus garotos pobres cheios de sonhos sentados na areia vendo o movimento da beira-mar. E chorava ao ver o sofrimento das pessoas debaixo das marquises - o que nunca mais passou. E sonhava em ter um emprego que permitisse que minha mãe nunca mais chorasse com medo do despejo. Eu me sentia feliz quando podia lanchar na rua um hamburguer e uma fatia de pizza. O vestibular, senhor, o que ia ser de mim? Vinte, trinta, cinquenta candidatos por vaga, eu não tenho chance, eu não fiz cursinho, eu não vou passar. Passei. Depois eu continuei pobre, beijei garotas lindas, senti um suicida bater em minha mão antes do corte final, corri muitas milhas, vi os veteranos chamando uns aos outros de maconheiros, aprendi coisas incríveis e fiz inimigos para sempre. Desde então, perdi todos os meus vínculos, nunca mais encontrei minha casa, minha família, meu amor e deixei que o tempo escorresse, porque não somos donos de nada, não temos controle sobre nada e não somos os autores do livro dos dias, no máximo personagens. Tenho ouvido vozes há muito tempo que gritam em inglês "doesn't have to be serious" ou "even better than the real thing". Muitas vezes me perguntei: será que um dia serei um escritor publicado? E será que vou ver um livro meu em prateleiras de livrarias? Nunca se sabe.

Thursday, October 14, 2021

cachorro-quente

Eu gosto muito de cachorro-quente. Sempre gostei, desde criança. Não precisava de nada especial: pão, salsicha, catchup e mostarda. Um gole de coca. Cachorro-quente de festa infantil, pequenininho. E um cachorro que sempre será especial para mim: o do Maracanã. 

Nos anos 1990 e 2000 eu e Bola comemos muitos. Na Afonso Pena, em Madureira e em Niterói. Eram tempos legais. Nos encontrávamos para conversar e rir. 

Muitas vezes fiz cachorros bem legais para meus pais e meu irmão. Todo mundo gostava. Eram pequenos momentos de felicidade que tínhamos. 

Atualmente há uma hamburgueria aqui perto de casa que tem um cachorro ótimo e simples, simples: pão, salsicha, mostarda e catchup, bem do jeito que eu sempre curti. Acabei de pedir dois, bem gostosos. Me senti 35 ou 40 anos mais jovem, lembrando de noites em Cascadura, Copacabana e Vaz Lobo. Lembrei de pessoas queridas que o tempo levou. Também senti tristeza porque sei que, neste exato momento, há centenas de crianças nas ruas do Rio de Janeiro, sem comida, sem casa e esperança. É algo inaceitável. 

Lanchando meus sanduíches, vendo o que restou do noticiário, pensando no descanso antes de ir trabalhar, sonhando com uma noite de paz, torcendo pelos meus amigos em apuros. Tudo isso sem a menor vontade de formar opinião, influenciar quem quer que seja ou ter "seguidores". 

Basta apenas um lanchinho de paz, em respeito à criança esperançosa que fui.

Monday, October 11, 2021

cinco da manhã no meio da guanabara

Cinco da manhã bem no meio da Guanabara, chove e faz frio. Os trabalhadores vêm de longe em transportes precários que os desrespeitam. Muitos são informais, sem direitos nem garantias. Pelo longo caminho dos trens e ônibus, há muitas e muitas luzinhas de barracos, ocupações e drama. Pelo mesmo longo caminho o que não falta é gente sem rumo nem chão, abandonada pelo que se chama sociedade. Cinco da manhã de segunda-feira, na véspera do feriado do Dia das Crianças. Há frio e dor para quem pensa no próximo, há uma cidade devastada e também idiotas que romantizam a situação, acreditando ser autênticos quando não passam de otários. Esta é uma cidade cheia de talhos sem pontos, de cortes profundos, de opressão. Ainda no azul quase escuro do céu, as gentes que ainda podem se deslocar caminham para a sobrevivência diária, às vezes sem saber se haverá jantar ou amanhã. Tudo indica uma segunda-feira cinzenta e chuvosa, fazendo sofrer ainda mais quem está ao relento - e são milhares, milhares. O poder público oferece respostas lacônicas e programadas, os poderes particulares celebram a cidade devastada e rachada, os imbecis comemoram a rachadura para se sentir mais importantes - mas não são nada. Marmitas tilintam nas mochilas e bolsas, míseros trocados ocupam os bolsos, a fé preenche os discursos para os corações sofridos, mas a verdade é que nunca fomos tão infelizes, nunca a indiferença foi tão grande, nunca o ódio foi tão dantesco. Daqui a pouco a TV transmitirá as próximas vítimas de balas perdidas, os novos desaparecidos, os novos presos por erro de quem prendeu, os esquartejamentos, as novas notícias violentíssimas. Resta uma bala de hortelã para distrair o amargo da boca. Cinco horas e vinte e cinco minutos numa cidade cheia de histórias tristes, mas que ainda guarda beleza em todos os seus recantos, embora esteja em dívida permanente com seus cidadãos. É segunda-feira, começa uma nova semana, os corações solitários carregam para si o gris da paisagem, há muita luta e sacrifício, há fome e cansaço, há a certeza de que as ações precisam superar discursos ocos, tudo enquanto o grande silêncio das ruas tristes ainda é o maior vitorioso.

Sunday, October 10, 2021

hits

Vendo o show do Leo Jaime no CCBB, bem divertido pela TV. Banda azeitadíssima e ele faz uma mistura do próprio repertório com covers bem legais. Apesar da chuva, o pessoal deve estar se divertindo com a apresentação. Outra coisa que é um barato: o Leo não está nem aí para aparência, sendo que foi um dos grandes dons juans daquela época. 

Gosto de ver mas carrego comigo um misto de sentimentos. A música é forte e te teletransporta. Aquele período que vai de 1985 até 1991, 1992, foi uma turbulência na minha vida. Tudo era difícil, mesmo que agora seja pior. E para mim mistura tudo: momentos bem legais com outros tristíssimos. Eu queria ter de volta as pessoas que se foram, o que é impossível, mas não exatamente voltar no tempo. 

Tinha escotismo, muita música, a casa do Fredão, a UERJ maravilhosa, corrida na praia, mas também a luta para trabalhar, a pobreza, o alcoolismo em casa, uma pressão enorme que, no fim das contas, até hoje não passou direito. Uma vida louca de Copacabana a Jacarepaguá, passando em Irajá, Madureira e Méier. Tudo de ônibus, claro. 

Naquele tempo eu já escrevia mas tinha vergonha de mostrar para os outros. Demorou muito até eu conseguir ser publicado, mas aconteceu e dali em diante não parou mais. 

Agora o Leo canta Legião. Dá para ouvir e lembrar das pessoas, dos amigos, seus risos e roupas. A gente comprava pão para lanchar com Alouette de ervas finas, e depois jogar cartas enquanto ouvia LPs. Quando sobrava um trocado, passeávamos de jardineira pela orla. O pessoal gostava de ir para a Zoom escutar o que o Gustavo tocava, mas eu não gostava de boate e danceteria - às vezes ficava sentado na areia sozinho, olhando para o horizonte do Atlântico Sul e pensando o que seria da minha vida, uma resposta que até hoje eu não tenho. 

Entre a saudade e a melancolia, é incrível como um set de músicas faz você voltar 35 anos como se fosse algo da semana passada. Tinha tristeza lá, tem tristeza aqui. Pouca gente sobrou para contar a história - essas linhas não falam de 0,001% do que aconteceu. 

"Fórmula do amor". O que será isso? 

Será que é o fim do domingo frio e tristonho que sugere uma aula na escola pela manhã? Ou uma corrida para o aeroporto rumo a Brasília? Tudo isso já era. 

Sobrou um monte de gente sofrendo, chorando, morrendo ao vivo. Tem muita dor e sofrimento. Tem também um monte de gente recalcada e infeliz com o pequenino sucesso de quem quer que seja, mas não se pode ser injusto: tem uma galera gigantesca que torce muito, joga junto, vibra e agradece. É isso que, dentro ou fora desta rede social, chamamos "vida".

Sunday, October 03, 2021

short cuts

Pegamos um táxi para o Humaitá, não havia Uber - o número de carros diminuiu drasticamente graças à economia bozista. Há muito tempo não íamos ao Restaurante A Mineira.

O carro desceu pela Avenida Chile e o motorista alertou "Na Senador Dantas tem manifestação do PT". Deu bandeira mas de resto foi afável, sem problemas. Aproveitamos para ver a militância e também a paisagem do sábado com solzinho. 

Com a pista livre, descemos a Rui Barbosa e rapidamente chegamos a Botafogo. De cara uma tristeza: Catarina fechada para sempre, no pé da Senador Vergueiro. Salgados imperdíveis, cheguei a lanchar com Leo algumas vezes. A crise, a maldição, o fim.  

Dez minutos depois, nossos planos foram frustrados. A Mineira fechada para sempre. A linda casa com entulho na entrada. Inacreditável. Quantas vezes rimos naquele lugar? Restou dar meia volta e buscar um refúgio seguro: kaftas e esfihas no Largo do Machado. 

Antes disso, na Voluntários da Pátria, bem na nossa frente, um ônibus 410 dá uma fechada tão grande em outro, da mesma linha, que este sobe a calçada e quase bate numa pequena árvore. Poderia ter matado alguém. Nos metros seguintes, o ônibus fechado perseguindo o fechador até que, perto do cinema, acontece o esperado: o motorista indignado põe o ônibus atravessado no meio da rua e vai tomar satisfações com o "colega" de trabalho. Este, por sua vez, foge num espaço mínimo de asfalto, avança dois sinais vermelhos e foge pela Praia de Botafogo. É claro que um policial bonachão viu tudo e nada fez. 

Metros antes de chegarmos à Galeria Condor, um caminhão tenta entrar em marcha a ré na garagem, sobe a calçada e quase esmaga uma banquinha de bijouterias.  As pessoas andam descontroladas demais. 

Saltamos, agradecemos o motorista e partimos para o almoço. Já que a Rotisseria estava lotada, comemos em pé mesmo. Marina ficou contente com as kaftas, o mate estava delicioso. Apesar das derrotas, ainda tem Rio.

Thursday, September 30, 2021

É preciso acabar com o America!

Recebi o texto abaixo, de autor desconhecido, via WhatsApp. 

Tomei a liberdade de reproduzi-lo aqui, pois estou escrevendo um livro sobre o America com o jornalista André Luiz Pereira Nunes, e o escrito me tocou profundamente, a ponto de pensar em respondê-lo, sendo que compreendo a dor profunda nele expressa. 

O America não pode morrer. 

Não pode. 

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Por Geraldaves de Almeida

É preciso acabar com o America!

É preciso acabar com o America. O time para o qual torci não mais existe. Trata-se de um arremedo, uma cópia mal feita. A camisa, outrora rubra, se misturou ao anêmico sangue dos botinudos que ora a envergam. Alex, Edu, Bráulio e Luisinho ficaram definitivamente na memória dos tolos saudosistas.

É preciso acabar com o America. Urge que o façam logo. Meu time agoniza lentamente em meio a um limbo em forma de espiral. É um cenário perfeito para um portador de labirintite.

O agora ex-America necessita de uma morte digna, pois seus dirigentes o tem infestado a cada ano com refugos e velharias. No início da temporada o elenco contava com 6 goleiros, vejam só, 6 goleiros! O principal, contundido, não atuou em nenhum prélio destes certames de segundo escalão que o ex-America insiste em atuar sem obter qualquer êxito. 

É preciso que algum corajoso aperte logo este botão. O antigo America necessita ser eutanasiado, pois merece uma morte indolor em respeito às suas glórias, restritas a um passado cada vez mais longínquo.

Os jovens de hoje não conhecem o America. Nunca ouviram falar. É o Mineiro, o de Natal? O clube estranhamente desapareceu do noticiário. Seu nome não aparece sequer nas páginas policiais, sinal claro de que o doente terminal necessita urgentemente do direito à inexistência oficial. 

O ex-America possuía a sede mais moderna e charmosa da América Latina. Mas o espaço veio ao chão. Dizem que no lugar erguerão um shopping center e no playground ficará acomodado o ex-America. Que triste fim! Será que ao menos a diretoria passará a emitir boletos?

A culpa de toda essa decadência seria da CBF e do famigerado Clube dos Treze, alegam alguns insistentes torcedores. Mas isso não é verdade. A culpa é do futebol moderno que preza pela elitização e a existência dos clubes de massa em detrimento da pluralidade saudável e necessária. Money, my friend!

Não há mais espaço para meu ex-time. Em lugar de vê-lo sujo, mal ajambrado e descolorido, prefiro torcer por um fóssil.

Por favor, desliguem os aparelhos e deixem o meu America morrer em paz!

Wednesday, September 29, 2021

mumm-ra

Em algum dia de setembro de 1988, eu estava na UERJ assistindo uma bela aula de Cálculo com Coscarelli, grande professor, quando Mumm-Ra me chamou para lanchar na rua ao término. Manhã bem quente. 

Seu nome era Renato, rapaz alto, bem mais alto do que eu, lembrava alguma coisa do Negrete da Legião. Gente boa. Calouro. Acho que não estava confortável no curso, estava sempre falando de fazer prova para a AMAN. 

As garotas, lindas, ficaram no hall. Descemos e fomos para a São Francisco Xavier. Na verdade, nem havia um motivo especial para isso. Grana não foi: as cantinas da UERJ eram baratíssimas. Sei lá, vai ver que queríamos ir à rua.

Paramos numa padaria, talvez perto da Santa Luiza e que não existe mais. Pedimos café e pão de queijo. E falamos de futebol e mais futebol. E que Luciene era linda. E do calor, que seria muito pior em dezembro, o que eu viria a testemunhar pelos anos seguintes. Mais futebol, era nossa vida. 

Ainda lembro de minha alegria juvenil ao atravessar de novo a São Francisco Xavier rumo ao portão principal. Ao contrário do que o Renato parecia sentir, eu tinha uma mistura enorme de orgulho com alegria em estar ali. Foi um dos poucos sonhos que concretizei de ponta a ponta, pouco importando os muitos que ficaram pelo caminho. O Ministro da Educação é um completo idiota quando diz que a universidade deve ser para poucos - na verdade tinha era que ser para todos - como eu aprendi naqueles dias!

Pegamos o elevador e voltamos para o sexto andar. Havia um intervalo grande para a outra aula. Parei no hall. O Renato seguiu para a sala, bem lá no fundo, perto da varandinha de onde se via o Maracanã e que às vezes servia para namoros inesquecíveis. Nem tudo era fácil: suicídios também. 

Aquele foi meu único café com pão de queijo fora do prédio da UERJ. Mumm-Ra era um apelido de trote, porque ele foi todo enfaixado com papel higiênico. Trinta e três anos depois, ele faz parte daqueles colegas efêmeros que o caminho nos separou. Tomara que esteja bem e não seja negacionista. Tomara que esteja razoavelmente feliz. 

Tinha uma turma da pesada lá que sumiu. Alexandre Gomes, Joaquim, Alexandre Baixinho, o Mário, gente boa e divertida que, de uma hora para outra, a gente percebe que simplesmente sumiu sem deixar rastro. Não tinha rede social, nem Whatsapp. Os encontros e as despedidas eram definitivos. 


@pauloandel

Thursday, September 23, 2021

os sinos da igreja de santo antônio

Perto do fim do expediente, eu olhava o gris no horizonte do Porto Maravilha, o vazio decadente da Praça Tiradentes, a agonia do Rio quando chegou uma mensagem no WhatsApp, dizendo que morreu o pai do meu amigo.

Nós, minúsculas bolas de água e carne que andam por esse mundo mas pensam no próximo, sentimos o soco no queixo. Em segundos, voltei a 2008 e vi meu pai morto, sereno, dois minutos depois de ter pago um empréstimo que fiz. Ou minha mãe morta, linda, durante o sono, depois de uma vida de muito sofrimento mas risos também. 

Então me lembro de que serei órfão até o fim, e que não tive filhos por decisão pessoal, depois repartida com minha companheira. E daí que tenho mais de cinquenta anos? Eu ainda choro quase todos os dias, porque meus pais foram embora muito mais cedo do que o razoável. Não viram nada do que escrevi, o que provavelmente lhes deixaria muito orgulhosos. Mas tudo isso é pequeno diante da dor do meu amigo e que também é minha, porque sou amigo e porque conheço essa facada na alma. 

Fecho a loja, ando pela calçada vazia com exceção das pessoas em situação de rua, sofrendo até não aguentar mais. São poucos carros, muito silêncio e algum frio, até chegar na Rua do Lavradio e tudo estar fechado - a economia está se reabilitando, segundo o escroque que nos envergonha na ONU. 

[eu sou uma bola com bastante água, bastante carne e não significo absolutamente nada diante do mundo. 

Olho para o alto, vejo grandes edifícios e tenho certeza da minha pequenez no mundo - somos formiguinhas deslumbradas em meio a uma grande fábrica de açúcar. 

No Armazém Senado, alguns homens aliviam suas almas com cachaça e sambas da antiga. Na outra esquina, dobram os sinos da Igreja de Santo Antônio. 

Passo pelo prédio da Polícia e não vejo a mendiga que vive ali há pelo menos vinte anos, falando sozinha, às vezes agressivamente. 

[vejo tudo ao redor para ocupar a mente e disfarçar minha insignificância diante do mundo. só os insignificantes são solidários de verdade, mesmo que não tenham nada além do pensamento para oferecer.

O prédio do DOPS é aterrorizante, mas hoje o vejo com frieza. Ali prenderam meu pai e ensurdeceram meu tio. Ali sofreram muitas pessoas. Torturados e algozes, quase todos estão mortos. Tudo é inútil, exceto os bons sentimentos, a ajuda, a honestidade, a alegria, o amor e as conversas fraternas. 

[nada tira da minha cabeça que o pai do meu amigo morreu, e com isso eu tenho morrido um pouco também. Todo dia eu morro um pouco, seja pela saudade, pela solidão, pelo Brasil, pelo Fluminense - que tem me matado bastante - pelo Rio de silêncios e sofrimento em suas calçadas escuras e desertas. 

Na última quadra antes de chegar em casa, paro no quiosque, compro dois sanduíches, sinto-me privilegiado porque cem milhões de brasileiros passam fome, mas nada tira da cabeça que, se o pai do meu amigo morreu, eu também morri um pouco porque esse é o dever dos amigos nesta terra injusta, cheia de gente indiferente que não quer saber da vida e da morte de ninguém. Mas nós somos diferentes, não por nada especial, mas porque conseguimos preservar um bem raro, chamado humanidade.

Estúpido é aquele que ridiculariza quem sofre a dor do outro. Nos últimos anos, a cada má notícia nova, meus pais morreram de novo e de novo, mas destas dores quero fazer abraços e encontros. O meu amigo sente o que eu já senti e sinto. É uma noite triste, mas tudo isso era abraçar o meu amigo com palavras para que ele soubesse da minha solidariedade. Hoje somos minúsculos mas um dia seremos a maioria, mesmo quando não estivermos mais aqui. De toda forma, há muito a ser feito, com três cores ou mais. 

Para Edgard, 

@pauloandel

Monday, September 06, 2021

trinta anos depois

Onde eu estava há trinta anos? Em Copacabana e na UERJ. Tinha o Maracanã também. Tudo isso era importante para mim, mas não significa exatamente saudade, exceto ter meus pais e o Fluminense. Depois de alguns tropeços, lutava para estabilizar as matérias (o que nem sempre era fácil pelas condições precárias em que vivia) e sonhava com um estágio que pagasse pelo menos a passagem e a conta de luz. Em casa nada era fácil, nada, nem mesmo quando eu só ia para dormir. Na UERJ era bom, tinha os colegas e toda aquela efervescência da vida universitária. Estágio era algo mais difícil do que algo que preste vindo do Bozo: esmagados pela era Collor, sem grandes perspectivas. Pelo menos consegui comprar uma calculadora científica. 

O Fluminense não ganhava nada há seis anos, mas como era bom ir ao Maracanã e às Laranjeiras. Ao contrário do que muitos pensam, embora estivesse há tempos sem um título, o Fluminense os disputava e era um protagonista, não um figurante. Tínhamos um bandeirão, a torcida era linda e não havia os pelassacos da internet. Quarta e domingo estávamos lá, mesmo com o dinheirinho contado. Eu descia com meu caderno preso numa prancheta de acrílico laranja, atravessava a rua, comprava um suculento ingresso de geral e pronto. Meu time, meu amor. 

Estudar de manhã e de noite não era fácil. Procurar emprego, idem. Quando dava uma folga, jogar botão ou uma dupla de praia. Eu tinha deixado os escoteiros e me afastei de vários colegas. Bom, compensava no fim de semana com ótimos shows gratuitos no Parque Garota de Ipanema. Passou uma turma da pesada por lá. 

Se não voltasse para casa de tarde, a saída era almoçar no restaurante de comida vegetariana na Sousa Franco (delicioso e barato, mas você ficava com fone de novo uma hora depois) e dar uma de Ivan Lessa: seguir cachorros pelas ruas de Vila Isabel. Espiar as ruas, as casas restantes, passar no que sobrou do campo do America. Gatas indo e vindo do prédio da Medicina. Não era fácil, mas tínhamos dois componentes essenciais a nosso favor: o futuro e a esperança. De manhã, matando alguma aula ou com falta mesmo, não podíamos reclamar: nossas amigas eram lindas, sempre havia um colo amigo num par de coxas estonteantes e, de certa forma, a retribuição era com as risadas que provocávamos no meio da conversa.

São cinco da manhã, eu só dormi de meia noite às duas, eu preciso falar com a Marina, eu preciso transcrever vinte minutos de um vídeo, eu preciso pagar contas e vender discos, vender livros, vender. Hoje eu sei quem eu era há trinta anos, mas não sei se saberei daqui a trinta anos sobre o agora. Não é saudade, mas reconhecer que é justo revisitar nossos momentos mais divertidos, enquanto lá fora vozes ameaçadoras cortam o silêncio da alvorada que se avizinha. 

Eu devia estar contente porque estou trabalhando mais, porque lentamente os resultados estão vindo, porque há luz no fim da estação de trem. Mas não estou. Provavelmente é porque vejo gente sofrendo demais, demais. Na verdade são cinco e vinte. 

@pauloandel.

Tuesday, August 31, 2021

Any colour you like

Sete e meia da manhã na escola, 1977. Terceira série. Éramos eu, minha lancheira e minha mochilinha. Eu não lembro da turma, dos alunos, mas lembro do Seu Zé na portaria. Estudou comigo um menino de sobrenome Calegari. A professora se chamava Élida - me reservo ao direito de não chamá-la de "tia". Por alguma razão que não sei dizer, faz tempo demais, de repente ela começou a gritar na sala. Aquilo me apavorou, porque remetia imediatamente aos gritos de meu pai por embriaguez. Então chorei. 

Para quê? Eu no fundo da sala e a professora num acesso de fúria, dizendo que detestava crianças choronas e mimadas, que não aceitava aquilo. Eu tinha oito anos de idade. Foi minha última aula com Élida, felizmente: troquei de turma, na verdade pulei de turma, e também de endereço: a escola era a mesma, mas em vez da Rua Tonelero passei para a Rua Tenreiro Aranha. Muitos anos depois é que percebi não ter feito a primeira e a terceira séries, cursando apenas um bimestre da segunda. Precisei sair e voltar da escola, eu estudava sozinho. 

Desde criança chorei muito e quase diariamente. Geralmente sozinho, sem incomodar ninguém. Onze anos depois do faniquito de Élida, 1988, chorei de alegria pela primeira vez quando vi meu número cheio de algarismos no Jornal dos Sports, em março de 1988. Finalmente eu chegava à UERJ. Foi uma dureza: sem dinheiro, sem cursinho, sem trabalho, passei na prova e anularam o vestibular por fraude. Refiz e passei de novo. Meu choro foi na antiga sede do grupo de escoteiros, ao lado da Paróquia de Santa Cruz de Copacabana. Ia ter um almoço com bingo lá. Minha mãe apareceu, nos abraçamos e senti um orgulho enorme. Foi um domingo feliz e cheio de esperanças pelo que viria. 

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Mais de quarenta anos depois, quem se lembra da escola? Difícil dizer. Os garotos viraram cinquentões, os quarentões têm quase 90. 

O prédio de três andares teve outras finalidades e, mais recentemente, abrigou um hostel. Sobrou a fachada colorida, que lembra a capa de um livro meu, e uma faixa de anúncio comercial. E só. 

Ao lado, parece ser o Edifício Brilhante. Se for, ali morou a Gisela, que era uma graça. Na esquina tem o Big Bi, que sucedeu um pé sujo e a Casa do Pão de Queijo, inaugurada por Georgia Wortmann, musa do bairro e das passarelas. 

Uma da manhã de quarta. Se quiser, posso chorar à vontade. Tomei um milk shake de Ovomaltine, trabalhei até meia noite. Estou cansado. Bem cansado, mas o sol nascerá. 

Ao longe, estouram fogos em Santa Teresa 

@pauloandel

Friday, August 27, 2021

Aeroporto 19h

Jocemar Barros foi na direção das barcas e resolvi dar uma volta rápida. Parei no VLT da Carioca, vi que o cartão tinha um saldo favorável - pelo menos esse - e embarquei no sentido Santos Dumont, depois de ter desistido de ir ao Boulevard Olímpico. É um passeio maravilhoso. Meu ídolo Fausto Fawcett odeia o VLT mas eu amo de coração, falei disso hoje com o Lucas Bueno - você navega a cidade com todo o conforto, limpeza e um visual fantástico, exceto pelas lojas fechadas no Centro, imunes às pantomimas de recuperação sem um plano de emprego e renda. 

O SDU é ideal para pessoas como eu, que gostam de lugares vazios e pouca gente. Bom, na verdade tem muita gente mas desembarcando e se mandando, muitos aliviados porque têm dinheiro na conta mas passaram uma semana dos diabos na escrotidão lancinante do mundo corporativo. Sei do que falo: estive nele e algumas das pessoas mais falsas e abomináveis que conheci na vida estavam lá, às vezes rindo na sala ao lado. Que morram. Antigamente eu andava ali cheio de tensão, com medo de perder o voo, indo para reuniões nem sempre produtivas, com dor na coluna da viagem bate-e-volta. Perdi dinheiro mas ganhei minha liberdade, o que não tem preço. 

Já que não tem discos e livros, fui para a praça de alimentação deserta. Pensei em comer num restaurante a quilo, muito bom, mas a força do hamburguer me atraiu. Parei no caixa e vi que não havia funcionários, era interagir com o computador e fazer o pedido. Menos postos de trabalho, a apoteose da impessoalidade. A máquina pediu que colocasse meu nome e, por ele, aí sim uma funcionária me chamaria para entregar o lanche.

Minutos depois, "Paulo Roberto". Eu não pareço com um passageiro de voo. Ando de chinelos, bermudão velho, camisa preta rasgada e carrego dois pacotes de plástico preto. É divertido: ninguém imagina quem sou pelo que aparento. Pego a bandeja com o sanduíche, a batata frita e o copo para que eu mesmo pegue minha Pepsi. Sou um vitorioso: mesmo pobre, posso garantir meu lanche noturno num país onde  cento e dez milhões de pessoas provavelmente estão com fome agora à noite, o que é inaceitável exceto para alienados que ainda acham que está tudo bem. Inaceitável. 

Na mesa à noroeste, quatro caras bebem chope no quiosque da Brahma e ajeitam suas malas de rodinha, provavelmente se mandando do Rio no fim de semana, talvez voltando no próximo dia útil

Na mesa quase noroeste, uma garota tão bonita que me lembra Juliana, ou Larissa, que faz aniversário hoje. Bom, essas duas não se parecem em nada, exceto pelas belezas diferentes.

No balcão da lanchonete, a jovem bonita e com certo ar triste, que talvez seja cansaço pela maldita exploração capitalista. 

Lancho, vejo mensagens, fico feliz com comentários e olho para a frente. Quatro caras, uma garota e um vazio enorme. Gasto dez minutos e resolvo partir para o Uber Lounge. Esqueci de jogar na Loteria e perdi o horário, droga. 

Marina sai do trabalho cansada, trocamos mensagens, quero que ela chegue bem à casa da mãe. Eu a amo. Será um longo percurso. Queria que ela estivesse no lanche. Precisamos ter paciência. 

No meio do caminho até a saída, um garotinho bem pequeninho correndo, as irmãs um pouco mais velhas vindo atrás, ele cai no chão, ri e o pai logo o pega no colo, aí ele ri mais. As crianças nem sabem o bem que fazem a desconhecidos que nunca mais irão vê-las, só pela paz e felicidade que emanam. 

O Uber Lounge está lotado, cheio de gente impaciente. Não há carros disponíveis. A estupidez da inflação da gasolina está quebrando muitos motoristas. Tento por dez minutos e não consigo, então desisto e resolvo sair de VLT. Delícia. Uma breve corrida até a Carioca, salto e vejo a inacreditável loja da lanchonete na esquina de Almirante Barroso com Rio Branco fechada. Bom, do outro lado saiu a Caixa, é inacreditável. Antes disso, a dor é ver a Cinelândia às escuras, só o Verdinho funcionando, uma dor no peito ver o Amarelinho de portas cerradas. Parece o fim de uma era. Outro dia mesmo estávamos vendo filmes no Odeon e agora tudo é miséria. 

No ponto do táxi, um dos motoristas mais simpáticos de todos os tempos. Na breve corrida até a Cruz Vermelha, ele fala de sua jovem esposa, de não trabalhar mais no final de semana por cansaço e, apesar da aparência jovial para cerca de 60 anos, ele pretende aplicar botox em breve. Trabalhou na área de cosméticos por muitos anos. Me mostra uma foto com a esposa. Ela é bonita. Agradeço a viagem, um taxista realmente diferente. 

Na portaria converso com Davi, sempre educado. Pego o elevador vermelho, o mesmo em que desceram um dia os corpos de meus pais, mas nem ligo porque eles estão comigo de alguma forma. Mais mensagens da Marina, do Catalano, da turma tricolor. Por dez segundos, penso nas contas atrasadas e mando-as à merda: meus ídolos também estão duros. Acho que vou ler alguma coisa, porque ninguém pode levar a sério um escritor que não seja um leitor caudaloso. 

Oitavo andar, dez passos até a porta, silêncio pleno, estou em casa. 

@pauloandel.

Monday, August 23, 2021

Charlie, o mercenário da praia

Ele devia ter uns sessenta anos em meados da década de 1980. Ficou conhecido no Bar Sniff's do Shopping dos Antiquários, onde não ficava muito tempo no balcão, mas fazia graça com os clientes, especialmente os escoteiros, que ele de longe chamava com seu vozeirão e sotaque estadunidense temperado por soul e blues: "OHHH, SCOUTEIRSSSS". 

Talvez um metro e sessenta, boné e óculos escuros permanentes, barba às vezes. Camisa social, sunga e chinelos de dedo sempre. Rádio na mão para ouvir à beira-mar. Era um entusiasta da new wave do pagode: Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Fundo de Quintal.

Charlie sem dúvidas era um ser da praia. Seu ritual era diário: invariavelmente passava com sua cadeira perto de uma da tarde, voltando perto de oito da noite. Mantinha o bronze permanente na pele. Volta e meia era visto com garotas, muitas vezes negras fantásticas com vinte e poucos anos de idade, geralmente no Rondinella, esquina de Siqueira Campos com Atlântica, cujo dono era o ator Percy Aires, com muito sucesso na época. Enfim, um bom vivant. Sua vida praiana não indicava que tivesse algum emprego regular. 

Guardava um enigma: a cada três ou quatro meses, viajava para o Paraguai e voltava. Nunca falou nada sobre as viagens. É claro que os roteiristas do botequim já viram Charlie como um mercenário ou algo ligado ao "Guarani Way of Life". A grana vinha de algum lugar para tanta cerveja, praia, mulheres apetitosas e viagens. Alguém sugeriu que fosse um traficante de armas ou pedras preciosas, mas não dava pra levar a sério o coroa queimadaço de sol, apenas com camisa de botão e sunga diários, enfurnado em altos crimes. Ele ia e vinha, sempre pela Siqueira Campos, onde também sentava praça na areia.

Jamais falava de política, de suas viagens ou das maravilhosas garotas. Vinha, fazia uma piada, ria, bebia uma cerveja e se mandava. Na única vez em que se manifestou num debate político no Sniff's, deu pinta sobre as suspeitas no Paraguai; enquanto a turma do bar queria a cabeça do então presidente José Sarney, esperou os ânimos se acalmarem e cunhou sua frase definitiva quebrando o silêncio: "Sárnei is bon pessoa". Sabe-se lá o que quis dizer com isso. 

No bar e em toda a Siqueira Campos, ninguém sabia dizer como Charlie surgiu, e o mesmo aconteceu quando ele simplesmente sumiu. Nenhuma das garotas fantásticas reclamou nada. Muitos acharam que ele foi para o Paraguai de vez, sem qualquer comprovação. Mais de trinta anos depois, sua figura ainda é muito lembrada.

eus

eu mil vezes eu andando pelos escombros da cidade eu chorando pelos que choram e rindo muito sozinho eu sem grandes nostalgias mas vivendo o passado que vale eu com meus músicos muito mortos artistas e escritores muito mortos homens do jazz e do blues eu que não tenho grandes títulos nem patrimônios nem grande fama ou notoriedade mas vou me escorando ao lado das veias de asfalto cheias de automóveis eu que sou copacabana e centro sou candelária madureira eu sou 434 e 521 eu sou fawcett e caymmi e peter gabriel e bjork eu mil vezes eu do parque guinle ao parque lage do bangu shopping à orensana eu que escrevo versos tortos e desconhecidos e livros desordenados eu que gritei com rush rolling stones e joe cocker e paul eu cansado estropiado apaixonado pela mesma esposa há oito anos eu com meus discos e livros o resto não importa eu de agosto abril e qualquer mês eu de amor

@pauloandel

Sunday, August 22, 2021

Inca

Entre maio de 2004 e abril de 2005, estive diariamente no INCA como visitante, acompanhando meu amigo Xuru. Não foram dias fáceis, mas deixaram algumas lembranças alegres e tristes. 

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Alicia (pseudônimo) era enfermeira do Russo. Uma gatona: baixinha, morena, aparelho nos dentes, cabelos pretos longos. Ela vinha e já tinha graça do Xuru: "Ahhh, Alicia, se terminar esse noivado eu te peço em casamento" (ele era casado). Ela ria muito. 

Numa noite chego em cima da hora dos acompanhantes (consegui um crachá especial). Era tão em cima da hora que resolvi subir as escadas até o quarto do Xuru, em vez de esperar o elevador. Logo na segunda virada para o segundo andar, involuntariamente corto uma tremenda pegação perto da porta que levava ao corredor. Alicia, linda, com um dos médicos que atendia meu amigo mas não sei dizer o nome. Dei boa noite e tchau. 

Chegando ao quarto, contei o acontecido. Franquinho, o Xuru só riu e disse "Peço em casamento assim mesmo". Era linda a Alicia. Continuou como uma excelente enfermeira. Sorria para mim nas visitas, com a devida distância regulamentar. 

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Visitar a UTI do INCA é uma experiência forte, que exige frieza. Pior de tudo era ouvir o médico dizendo antes "Vocês, que são parentes, precisam ter todas as agilidades funerárias à mão". 

Entrei. No box ao lado do Xuru, havia uma mulher linda, cheia de aparelhos ao corpo que faziam a contradição de seu lindo rosto. Algo terrível. 

Entrei no box e, sei lá como, o Xuru me disse "Que chato a gatona aqui do lado". Se ele estava no leito e não levantava, como conseguiu vê-la? Ou se baseou em relatos de visitas? Não sei dizer. 

No dia seguinte, o box ao lado estava vazio. O ballet da morte já tinha se apresentado. Conversei com o Xuru, mas não falamos disso. 

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Certa vez, o Xuru parecia melhor e ficamos andando pelo andar, até entramos em um espaço que dava para a varanda - e de lá víamos toda a praça da Cruz Vermelha e arredores. 

De cima, com o belo desenho circular e à distância da sofrida população de rua, tinhamos uma vista inédita muito bonita e rara. 

Xuru vibrou com aquele panorama. E fazia doces planos de alta que nos ajudaram a sonhar por algumas semanas. Do alto, navegamos.

Tuesday, August 17, 2021

copacabana no elevador

Quinta-feira, talvez perto das 15h. Bloco E, Shopping de Copacabana, aka Shopping dos Antiquários

Você abre a porta e dá de cara com um paletó de lantejoulas azuis, uma cabeleira black e o bigode que, juntos, formam uma das estampas mais famosas do Brasil: a de Cauby Peixoto. Então dá boa tarde, recebe a réplica em voz de trovão e finge que está tudo bem porque em Copacabana ninguém se emociona com celebridades - só louvam Clóvis Bornay e Rogéria nesta terra. Fica em silêncio, o grande cantor não diz nada também porque não puxaria conversa com um garoto de catorze anos. Dois minutos depois, o elevador está no térreo, vocês saltam, Cauby passa na porta dos famosos Supermercados Leão e ninguém fala nada também (embora, claro, todos estejam diante de uma lenda da música popular brasileiras - e com um paletó de lantejoulas azuis!

Qualquer noite, depois das 23h

Você espera o elevador no térreo e, de repente, está a seu lado um dos grandes jogadores do futebol brasileiro: Rodrigues Neto, Flamengo, Fluminense, Botafogo, internacional, Seleção Brasileira, também no Ferrocarril Oeste da Argentina, onde ganhou o apelido de "El Negro Neto". 

Abre a porta e ele faz um cumprimento respeitoso sem dizer nada. Só que o cheiro não engana ninguém: rolou um pileque poderoso. Rodrigues Neto tem encarado dias difíceis: além de jogar, é o treinador da famosa Cooperativa do São Cristóvão. Deve ter afogado às mágoas porque não está fácil para ninguém. 

Quarta-feira, 11 da manhã 

Desce Dona Estela. Una oitenta anos talvez, com seu marido de uns trinta e cinco, Marcos. Um amor daqueles que não tinha tanta probabilidade assim. Ela vai lentamente a caminho dos Supermercados Leão, ele fica na portaria. 

O porteiro não perdoa: "Seu Marcos, a Dona Estela já ficou viúva sete vezes. O senhor não tem medo não?"

"Não, cada um tem um destino".

[mentira, tá se cagando de medo

Marcos dá tchau, vai para a Siqueira Campos e se manda. Por via das dúvidas, pegou o contato de uma mãe de santo, para calcular os novos tempos e, no pior cenário, fica de olho nas proximidades e desdobramentos plausíveis.

O GRANDE ATOR, 23:45h de qualquer noite

Carregando uma sacola de compras das Casas da Banha, jornais e um livro, o ator Walmor Chagas entra no elevador do Bloco E e sobe tranquilo para o 13° andar, sozinho e anônimo porque o porteiro, embora o conheça há tempos do prédio, não tem a menor ideia de quem se trata. 

Página eterna do cinema, teatro e TV, ali Walmor é apenas um condômino chegando em casa, num andar que possui 16 apartamentos. Cada um deles possui histórias, dramas, loucuras e contradições que cabem em Copacabana, porque é no bairro que tudo se mistura e contradiz o tempo inteiro. Walmor se alimenta delas para oferecer a sua grande arte aos brasileiros. 

O ator abre a porta do terceiro apartamento à esquerda do hall dos elevadores, larga as coisas em cima do sofá e vai para a janela. Vê a igreja em forma de cúpula lunar no terceiro andar do shopping, o quartel da PM e o posto de saúde. Carros passam em alta velocidade na Rua Tonelero, um ou outro 433, com certeza um 415, todos a caminho da beleza da Lagoa Rodrigo de Freitas. Há quase silêncio no bairro que nunca se cala.

Sunday, August 15, 2021

Copacabana Mon Amour 1998

2:25 p.m: no Sindicato do Leme em tarde nublada, alguns nacionais bebem chope pacificamente. Numa das mesas, Bolinha fica encantado com a beleza de Aline. No fundo do bar, em pé, encolhido com sua tulipa à mão, está um vizinho da casa: Zeca Pagodinho. 

4:15 p.m: o bicho pega no clássico de futebol de areia da Figueiredo Magalhães: Juventus e Bairro Peixoto jogam pelo campeonato com casa cheia no calçadão. Júnior, craque consagrado e símbolo do Juventus, acompanha o jogo e ouve piadinhas de torcedores do Bairro, cujas cores remetem ao Fluminense, amor do ex-jogador na juventude. 

6:30 p.m: uma turma conversa na areia perto da rede de vôlei no Othon, quando alguém recorda do frenesi na praia por causa do verão da lata - as pessoas loucas para conseguir o fumo do bom, algumas recorrendo até a olheiros para localizar as latas de ganja boiando no mar do Posto Seis. 

9:15 p.m: Xuru e Cler estão num carro nas imediações da praia com a Souza Lima, quando trocam ideias com Sharon, uma gata travesti do trottoir. A negociação parece que vai dar pé. Cler está confiante no amor de ocasião, a ser executado num muquifo qualquer da região. 

11:30 p.m: numa bela e espaçosa sala de jantar de um prédio garboso da Avenida Atlântica, o uruguaio Molina aprecia a vista da praia de Copacabana, mas sente certa melancolia porque lhe vem à mente a filha desaparecida anos atrás, depois de uma doença súbita e inesperada.

01:15 a.m: a vinte metros do grande apartamento de Molina, Ciano se vira como pode no banco de praça do calçadão. Está  em situação de rua. Não conheceu seu pai e sua mãe morreu quando ele tinha dez anos de idade. É uma vida de extremo sofrimento, que humilha, agride e dói. A madrugada é fria e cruel. Copacabana é um peito que precisa de muito, mas muito leite para resgatar sua enorme contradição entre o luxo e a miséria.

Saturday, August 07, 2021

copacabana é um peito

Cinco para as duas da manhã de domingo do Dia dos Pais e faz um frio do caralho já no Túnel Novo, preparando o viajante para ingressar na máquina do tempo e cair dentro de Copacabana. É impossível virar pela diagonal à direita e, na esquina, sacar o Cervantes fechado - ninguém em pé tomando chope ou comendo sanduíches honrados. Não se sabe quando, mas o Cervantes precisa voltar porque é um patrimônio não apenas do bairro, mas do país. 

Quem seguiu em frente pela Barata Ribeiro não se tocou em passar pelo espólio erótico da Prado Júnior, que mantém sua luta pela sobrevivência num mundo cada vez mais retrógrado. O certo é que, numa das quadras da Barata está Katia França, eterno símbolo de beleza do bairro, provavelmente fazendo nebulização devido ao frio barra pesada. Katia, que não é Kátia Flávia e nem precisava ser, imperou nas ruas de Copacabana entre os anos 1990 a 2000 - agora está em casa descansando e se recuperando. 

Perto dela, outra referência de Copacabana está em casa porque os heróis do bairro agora não estão mais nas ruas, mas sim fazendo arte em iPhones respeitáveis. Fausto Fawcett, o Fausto Borel, poeta maior do pedaço e tradutor da língua downbeat copacabanense - ou seria cobacabanista? Nense no sufixo, é Fawcett, é Fluminense das três cores imortais cheirando as veias de asfalto de Copacabana. Fausto disse recentemente numa live que entende a saudável decadência de Copacabana, mas que ela jamais superará a vocação multifacetada do bairro - e, lógico, ele tem sempre razão. 

Passa Katia e passa Fausto, perto da esquina com a Rodolfo Dantas - será? - ou era Ronald de Carvalho? - ninguém vai se lembrar da maravilhosa pizza Capri. Faz quase cinquenta anos, assim como do outro lado ninguém vai se lembrar de que o famoso Edifício 200 agora - melhor, há muito tempo! - é 194 e ninguém vê mais seringas nas calçadas em tempos de festinhas down by law. Tudo mudou. 

Um único botequim solitário com a TV ligada e os sobreviventes da boemia gelada esticam seus pescoços, torcendo pelo Brasil na final olímpica de vôlei feminino, enquanto os EUA nos castigam mas nós temos Fernanda Garay, gata negra voando e batendo incessantemente - Garay tem o quê das gatas das redes da praia de Copacabana de alguma forma. 

Seguindo em frente, depois do deserto da praça Cardeal Arcoverde, uma família inteira deitada na rua com um frio do cacete perto da Caixa Econômica Federal. As ruas de Copacabana têm a dolorosa verdade crua da escrotidão social, cuja equação nunca fecha. 

Três quadras depois, os moderninhos ocupam a esquina da Hilário de Gouveia no complexo etílico Pavão Azul, com suas pataniscas imperdíveis, chopes de alívio e a pequena sensação de que a vida pode ser melhor. Ok, estão indevidamente aglomerados, sabemos o que isso significa. Vamos em frente. 

Barata Ribeiro, 450, Parada de Copa. Os funcionários do Cervantes fazem os sanduíches viverem ali. São iguaizinhos. Se a entrada de Copacabana agora causa tristeza imediata com o bar fechado, pelo menos o lanche é capaz de resgatar a identidade da parada. 

Depois da esquina com a Figueiredo Magalhães, alguém é capaz de jurar que tem um carro parado com som alto, tocando "Babilônia Rock", o clássico de Lincoln Olivetti e Robson Jorge na trilha do filme "Rio Babilônia", também uma representação do bairro. O roteiro do filme é do escritor João Carlos Rodrigues, também uma cobra criada da Avenida Copacabana. Tudo em "Rio Babilônia" tem um certo aroma mofado e duradouro de Copacabana. Mesmo que o som do carro fosse apenas um exercício de imaginação ou sonho, não importa: ele é possível, porque mesmo que Copacabana viva a decadência, ela jamais será capaz de superar a tradição de bares e lojas que já morreram, de gente que deu o fora e de histórias que são muito maiores do que seus personagens. 

Então aparece na tela a Galeria Menescal dormindo em silêncio no primeiro sábado de agosto, bem gelado e, do outro lado da rua, os mais jovens sequer desconfiam o que foram ali a Modern Sound, a Billboard e o Bruno Copacabana. Uma quadra de sons e imagens que se perdeu. Não se pode vencer todas, talvez nem a metade.

Numa janelinha de apartamento quase na Santa Clara, o Brasil continua brigando com os EUA pela medalha de ouro no vôlei feminino. Estamos perdendo por dois a zero. Na quadra toca Kiss, com "I was made for loving you" e, se alguns cinquentões estiverem atentos, podem se lembrar do show que sacudiu o Maracanã em 1983 e que, claro, na saída lotou todos os poros notívagos de Copacabana. Afinal, o Kiss é a cara da Prado Júnior. 

Cinco a quatro para o Brasil no terceiro set. O pulso ainda pulsa. Agora vem a esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro, o cadáver insepulto da Sorveteria Bolonha, nenhum resto mortal da Farmácia Piauí e nenhum vestígio na calçada elevada de um dos personagens mais famosos do bairro: o mendigo Mister Éter. Quinze para as três da manhã, Dia dos Pais, as gatas do vôlei seguem na luta, Copacabana é um peito. 

Wednesday, August 04, 2021

5:40 da manhã

eu poderia ligar a TV e ver as olimpíadas ou completar meu texto no livro sobre Copacabana. finalizar o da Portuguesa, assim espero logo. mas a verdade é que eu não tou a fim de nada, praticamente nada, exceto ouvir canções no YouTube e respirar bem baixinho aqui para não romper o silêncio das quinze para as seis da manhã. 

eu poderia dizer que estou nervoso, triste, chateado, preocupado, ansioso, esperançoso e muito mais, mas estou é insone mesmo, ouvindo músicas de trinta anos atrás, pensando nas pessoas maravilhosas com quem convivi, em outras palavras, outro Rio, outro Fluminense, outras tantas coisas. tudo é rápido demais. 

eu gostaria de ligar o rádio, mas só tem a Cidade na internet agora. ou de pegar um livro do Ivan Lessa ou do Carlito Azevedo para ler, só que isso destruiria qualquer possibilidade de sono, com a luz em riste. 

em algum lugar de 1989, exatamente à essa hora, eu estava correndo do banho para o ponto do 434 na Figueiredo Magalhães, de modo a chegar às sete da manhã na UERJ - e nem sei porque a pressa, já que nunca tive uma aula por lá começando às sete, exceto com o saudoso professor Moisés - que adorava as garotas e dava aula em ponto falando e escrevendo sozinho, acreditem. nossas amigas eram lindas e a gente ria o tempo todo sem um tostão furado no bolso. hoje só restou o furo. 

em algum lugar entre 2008 e 2018 eu poderia estar suando frio porque precisava pegar um avião para Brasília, São Paulo ou Belo Horizonte, mas odiava fazer isso obrigado com todas as minhas forças. hoje iria tranquilo, mas não é algo que me apeteça. 

em algum lugar do começo ou suposto meio da Pandemia, eu estaria desesperado  porque estava trancado em casa e os dias pareciam pena privativa de liberdade. agora estou só preocupado. 

[ajeitar o tempo todo o carregador do celular para que cumpra sua função

talvez seja o seguinte: sinto saudade de coisas e pessoas que já não existem em meu cotidiano - embora as ame -, com saudade de um bairro que já não existe e, ainda por cima, com a covardia de sonhar aos 53 anos com o tempo dos 23. ou tudo isso só seja o pavor do silêncio lá fora em pleno início de dia sem pregar os olhos. ok, eu cochilei até umas três, mas foi pouco. 

também penso no quanto estamos mal parados: Sarney e Collor eram muito menos piores do que esse bosta que aí está, e isso é incrível. 

seis da manhã, quatro de agosto, bora ligar a TV e saber do museu de grandes novidades. julho já era, gastei doente. as contas estão arrombadas, as pessoas estão distantes demais, o velho boa noite foi trocado por um polegar desenhado. 

justiça seja feita: essa quarta-feira precisa fazer jus a um de nossos maiores medalhistas da história. Mutley, o fantástico assistente de Dick Vigarista. é um injustiçado. 

@pauloandel

Tuesday, July 06, 2021

COPACABANA 129 ANOS

Somente duas coisas têm a vocação da eternidade: o Fluminense, que faz aniversário no próximo dia 21 de julho, 119 anos, e Copacabana, que completa 129 anos nessa discreta terça-feira fria. O Flu vai chegar lá, mesmo com dirigentes atrapalhando, e Copa também, apesar dos políticos. 

O bairro que nunca termina, e que é conhecido no mundo inteiro pelo seu verão, faz aniversário em pleno inverso. Parece deboche, mas na verdade é um retrato da pluralidade da região sagrada mundialmente. 

Falando nisso, acabou de ter uma coletiva do governador bem em frente a um dos símbolos do bairro. Cláudio Castro, uma espécie de revival de Nelson Gonçalves - cantor e gago - sem a mesma extensão vocal, lá esteve para prometer a retomada das obras do MIS, o maravilhoso Museu da Imagem e do Som, visando inaugurar o prédio em 2023, depois de longo impasse. CC aproveitou e se vacinou no Corpo de Bombeiros da Xavier da Silveira, palco de grandes peladas de futebol de salão nos anos 1980 que não voltam mais: a quadra de esportes virou estacionamento de caminhões para salvar a vida dos cariocas, quando necessário. 

O prédio do MIS é cercado por certa urucubaca e talvez o governador, um fervoroso evangélico, possa desfazer o ebó lá estabelecido quando a physys de Copacabana foi vilipendiada exatamente no terreno do Museu. Afinal, por muitos anos ali nasceu e viveu a legendária Help, a princípio uma inocente danceteria para adolescentes ávidos por Big Mag e McGiver, para depois se tornar a maior casa de tolerância do Brasil, com seu exército de bem fornidas garotas de programa. Por quase duas décadas ali se estabeleceu o Maracanã do sexo com dez Copas do Mundo diárias, mas aí o poder público quebrou a firma na Justiça e tchoinghsrs: o sonho acabou. As garotas revoaram em bandos para o outro lado da praia, na Balcony do Lido, mas aí foi a vez de Duda Paes, chegado a um choque de ordem, detonar o novo estádio do amor de ocasião em Copacabana. A praia ficou sem uma referência oficial de putaria discreta, romântica e de acordo com as tradições da família brasileira. O fato é que o MIS tá cercado pela maldição erótica, mas todos precisam torcer para que dê certo. Deixem o mito musical trabalhar. 

Quem se lembra da Boite Bolero? 

Sinceramente, a julgar por quantas celebridades, acontecimentos e convivências Copacabana reúne, é certo que hoje deveria ser feriado nacional no bairro. Claro, não será possível por vários motivos, mas o principal deles é que todo mundo está duro e não dá para parar. Mesmo assim, o que não falta em Copacabana são lojas, salas e apartamentos fechados, muitos. Outra contradição para o bairro que já foi o conceito superlativo de população. Ok, a pandemia está sendo cruel, dizimando patrimônios como a maravilhosa Sorveteria Bolonha, o antológico Bar Sniff's e paralisando catedrais como o Cervantes, mas antes disso Copa vinha sofrendo na pele as perdas da Suprema, do Cirandinha e da Bella Blú, um verdadeiro clássico da Siqueira Campos - por lá, nos anos 1980, italianos com vistosas camisas vermelhas e verdes discutiam negócios em voz alta, brindando taças de vinho, mas nunca se desconfiou de que fosse a Máfia. 

Um dia, Copacabana foi um arealzinho que depois se encheu de casinhas e, no meio delas, surgiu a imponência alva do Copacabana Palace. Ele continua lá. Bem perto, o Beco das Garrafas espera sobreviver. 

Fausto Fawcett, o embaixador literário do bairro, sabe que Copa encaretou: as ruas estão mais vazias à noite, os batalhões de velhinhos estão vendo o Jornal da Record e a velha Prado Júnior luta contra a morte da alegria das boates. Contudo, o escritor vê no bairro a capacidade de reinvenção.

Seus prédios abrigam anônimos e famosos, humildes e celebridades, gente de todo jeito entre quitinetes, palacetes, barracos e marquises. Paredes que já abrigaram os Rolling Stones, Dorival Caymmi, Bob Dylan, Madonna, Naomi Campbell, Cat Stevens e George Michael. Telê Santana e Zeca Pagodinho também. Carlos Alberto Torres. Eliana Pittmann e Terezinha Sodré continuam por lá, felizmente. Fernando Reski também. O espírito de Nelson Rodrigues sobrevoa Copacabana e se materializa numa estátua na Inhangá. Carlos Drummond de Andrade fica no Posto Seis. 

As ruas estão barra pesada com o crack. É preciso atenção. 

Na altura da rua Francisco Sá, poucos jovens desconfiam da efervescência da Galeria Alaska, o Maracanã gay dos anos 1950 a 1990. Não há um único vestígio daqueles tempos de glamour e glória, com exceção do Bar Bico na esquina. Os devotos do trottoir homoerótico devem ir à esquina da Souza Lima com Atlântica, onde a volúpia das travestis é recomendada até por um policial civil que mantém um casamento de fachada, frequentador da região há quase 30 anos. 

Falando em travestis, uma delas pode estar neste momento num elevador do bairro, celebrando a vitória do Fluminense no Fla x Flu de domingo passado com seu vizinho, coronel reformado do Exército. Chegando à portaria, a dupla zoa os funcionários e vai à rua, quando o funcionário da banca de jornais da esquina - e que realmente vende jornais - comenta "Sai pra lá! Aqui é Botafogo! Nilton Santos vinha aqui" e alguém ao lado balança a cabeça em tom de concordância, porque é tudo verdade. 

@pauloandel

Friday, July 02, 2021

RUIVA (ou o Fry Chicken em chamas)

Ela era linda. Volta e meia estava de vestido curto preto, que contrastava com sua pele clara e os cabelos from hell - as mulheres são belas de todos os jeitos, mas as ruivas têm um charme à parte. 

Era batata. Mesmo. Frita. O bar ficava na Siqueira Campos, embaixo da casa de um amigo meu da faculdade, então volta e meia marcávamos lá para comer e beber algo, às vezes voltando da aula. Chamava-se Fry Chicken e, de acordo com o nome, sua especialidade era frango frito - delicioso, aliás. Ótimo atendimento, preço justo. Ali perto ficava o Let It Be, lendário bar de shows da Copacabana mais underground, digamos assim, quase na esquina com a Travessa Santa Margarida. 

Quando o amigo marcava para que eu o esperasse lá, invariavelmente eu chegava e lá estava a ruiva dos sonhos. Isso aconteceu muitas vezes e ela estava sempre sozinha à mesa, algo não tão comum no começo dos anos 1990. 

Ai, minha maldita timidez: às vezes parecia que ela olhava para a gente ou para mim, mas até aí nenhuma surpresa porque o bar estava quase sempre vazio, embora fosse ótimo. Claro que eu jamais iria à sua mesa: perdi a conta das garotas que me beijaram e depois me perguntaram porque eu não tinha tomado a iniciativa. Bom, o que importa é que ela era linda demais, charmosa demais e misteriosa. Vinha, sentava, bebia um pouco, quase não comia. Em algumas ocasiões escutava o walkman - que sons a encantavam? Naquele tempo eu ouvia de tudo, feito hoje: Alice in Chains, Stone Temple Pilots, Tom Jobim, Candeia. 

É, é verdade: ela olhava sim, mas acho que era por curiosidade em saber quem estava na outra mesa. Nunca sorria. O ar severo deixava seu rosto delicado ainda mais belo. Frequentemente parecia escrever coisas. 

Na outra mesa, eu falava bobagens desinteressantes por meses com meu amigo ou ficava mudo, sozinho. Sonhando com a carteira assinada no estágio e o diploma ainda distante - dois anos depois ele veio. 

Depois de umas vinte vezes, o platonismo acabou: parei de frequentar o bar porque me mudei, ele próprio fechou depois de algum tempo - uma tremenda injustiça, porque era ótimo - e ficou por isso mesmo. Anos depois, meu amigo fez chacota: "Lembra daquela gata que ficava te olhando? Agora está na novela". Fez sucesso, ficou mais linda, continua por aí. O tempo só lhe fez bem. 

Oh, bares de Copacabana onde um jovem e desconhecido candidato a cronista admirava uma linda jovem branquinha de cabelos cor de fogo, num vestidinho preto - ou de camiseta branca simples - enquanto ela parecia fitar o horizonte enquanto ouvia sons secretos e escrevia num diário. Era o começo dos anos 1990, onde os jovens de vinte e poucos anos de idade sentiam-se invencíveis, mas na verdade eram mesmo uns românticos enrustidos. 

Se fosse hoje, chamariam a linda jovem ruiva de crush. 

@pauloandel

Wednesday, June 30, 2021

PIB x DESEMPREGO, UMA CONTRADIÇÃO?

Não. 

Mais uma lenda vai ao chão. 

A soma das riquezas do Brasil é também fruto de grandes conglomerados que proporcionalmente contratam poucos trabalhadores, ou já os demitiram em massa. Ou ainda os que simplesmente não precisam deles, caso do mercado financeiro. 

Para as finalidades matemáticas e contas nacionais, o PIB reage e oferece uma luz no fim do túnel. Para a realidade prática, a tal luz não existe hoje. 

As micro e pequenas empresas são responsáveis por mais de 95% do volume de negócios do país. Em geral, elas criam em torno de 70 a 75% dos empregos formais. Hoje, ou melhor, há anos, mas especialmente a partir deste desgoverno, elas estão esmigalhadas. Muitas foram fechadas e não vão reabrir. Outras operam com nenhum funcionário contratado ou muito poucos, e aí está o problema: o dinheiro se concentra na elite e não circula. Se você tem renda de 10 mil reais e eu nenhuma, a nossa renda per capita é de 5 mil reais, mas eu continuo passando fome. Multiplique esse cálculo por milhões e aí se entende o drama. 

Nada é feito no Brasil em termos de geração de emprego e renda reais. Com e sem pandemia, o Governo Federal vai terminar o terceiro ano em total estagnação sobre a questão do emprego, repetindo falácias tão estúpidas e mentirosas como as célebres "a reforma trabalhista vai gerar mais empregos" ou "a reforma da previdência vai gerar mais empregos". O máximo que o desgoverno produziu foi jogar para a informalidade milhões de pessoas em aplicativos de entrega e transporte, sem garantias, com imensas jornadas de trabalho e cada vez mais longe de seus trabalhos e formações de origem, em muitos casos. 

É claro que a crise energética tende a piorar as coisas, com a população economicamente enforcada tendo que pagar tarifas cada vez mais altas de luz.

Bem-vindos a 1921.

@pauloandel 

Nota: Informação da jornalista Miriam Leitão aponta que, apesar do empate percentual de 14,7% no gráfico abaixo, o desemprego aumentou em mais de 500 mil postos na última medição...

Friday, June 25, 2021

SDU

Acabou o expediente, a teórica semana útil e fomos para a Pastelaria Chic's lanchar pastéis com laranjada. Eu já tinha almoçado muito bem com a turma e Seu Jurandir, que agora é meu amigo e personagem de meu novo livro, incrível. 

Tivemos um bom dia de trabalho. 

Antes de chegar à Chic's, passamos no Guedes e pegamos alguns discos. Ele mesmo disse que já havia tomado uns tragos, mas que voltássemos na segunda para encontrar grandes CDs - não nos basta vender, nós colecionamos e municiamos colecionadores, então a arte do garimpo é interminável.

Pastelaria Chic's, 51 anos de vida, nasceu em pleno Médici, um desafio. Estive lá pela primeira vez em 1973, quando meu pai me puxava pela mão e um copinho de 300 ml parecia um balde. O ambiente é simples, pequeno e come-se velozmente em pé, mas uma coisa é certa: é o melhor pastel de toda a cidade. Seco, sequíssimo. A laranjada é alucinante.

Lanchamos, nos sentimos bem e fomos caminhando até o Largo da Carioca, onde CH pegou o metrô, Jocemar foi para as barcas e então fiquei só, na velha Avenida Central. 

Em vez de me trancar em casa, resolvi pegar o VLT. Sou fã do veículo, ao contrário de meu ídolo Fausto Fawcett. Rapidamente embarquei na Carioca e fui para o Santos Dumont.

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Poderia lanchar alguma coisa - eu estou sempre lanchando - eu tenho fome -, sacar dinheiro, tentar jogar na loteria ou utilizar ótimos banheiros, mas queria mesmo era fazer um breve passeio e espiar o que resiste da minha linda cidade. 

Se você nunca andou de VLT, vá. É um passeio maravilhoso pelo coração do Rio, um metrô com paisagens maravilhosas. 

Saltei no SDU, entrei no aeroporto e logo me deparei com o ir e vir de gentes, a maioria chegando apressada, louca para se  mandar pra casa. Eu, não: não estou indo nem vindo, apenas flanando num lugar bonito do Rio. Paro no corredor, há uma cadeira confortável e espeto o carregador no celular. Então Catalano me manda mensagens pelo WhatsApp e falamos de criaturas grotescas. O corredor está bem vazio. 

Descanso alguns minutos e vou para o Uber Lounge. As pessoas estão sempre apressadas mas ali tem uma das vistas mais bonitas do Brasil - e os aviões saem de um jeito que dá até medo, mas tudo dá certo.

Adoro exibir o meu lado punk nessas ocasiões: pessoas com roupas e malas de grife, falando em iPhones e desfilo com minha camisa preta rasgada, chinelos e bermuda batidíssima. Sempre me olham, esperando que eu peça alguma esmola e rio de tanta ignorância estampada nos olhares. 

Pertinho, um funcionário do local fala com sotaque nordestino carregadíssimo e rápido com seu filho pequeno, que diz ter apanhado de alguém na cara em cada. Nervoso, o pai começa a falar cada vez mais rápido, speed metal. Paro de prestar atenção, mas ele interrompe a ligação e repete "Gordim" dez vezes, até que um segurança lhe dá atenção. 

Antônio chega com seu carro para me levar para casa. Quando faz a curva perto da estação do VLT, a imagem é belíssima: os grandes prédios da Cinelândia e Glória, os da Avenida Beira Mar, elegância e mistério nas ruas silenciosas, luzes ao longe e tudo aquilo me remete a mais de quarenta anos, quando eu e Adão Lamenza Salama éramos levados pela Dona Célia de Copacabana até o Aterro do Flamengo para lanchar cachorro quente. 

O Rio sofre, tem varizes e cicatrizes, mas é bonito pacarai. 

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Araújo Porto Alegre deserta, o maravilhoso prédio da ABI vazio. Por enquanto. Ali é uma casa de lutas. 

Olhar a Cinelândia e sonhar com a volta do Amarelinho. Na outra quadra, o breve sonho da Livraria Cultura que se desfez. Muita injustiça. Nunca mais vi o Matheus, que me atendia muito bem por lá. Uma menina, acho que Natália, linda. 

Logo aparecem os Arcos da Lapa, iluminados com belas cores. O entorno está vazio porque não há Circo Voador nem Fundição, mas as barraquinhas de petiscos e bebidas seguem na luta. E depois dos Arcos os bares tentam reagir. Há movimento, claro. Não como antes, mas há. Parece até que dá uma pontinha de esperança e até o velho Capela tem gente entrando. Fui feliz ali muitas vezes, noutras muito admirei. Distraído que sou, certa vez cedi meu lugar no lavabo para uma gata sorridente e, só depois que ela saiu e riu de novo, é que percebi se tratar de Alessandra Negrini. Almocei lá com Elika e uma turma da pesada há uns dois anos, o Zê também estava, a Socialista Morena idem. 

Quando o carro passa da Inválidos, pelo menos os bares perto da minha casa sobrevivem: Galeto, Bar das Quengas, Gambino. Algumas pessoas nas mesas. É uma promessa. Na esquina, a Droga Raia melhorou a quadra, ficou mais espaçosa, limpa. Antônio fala alguma coisa do tempo que não para, do qual somos reféns e ele tem toda razão. Somos pedacinhos de água e carne indo e vindo na mão do tempo - arrogância para quê? 

Metros depois, me despeço do Antônio, prometo postar cinco estrelas para ele, leio boas mensagens da Marina, pego o elevador vermelho vazio, me dou conta que faço isso há mais de vinte anos. Foi outro dia, quando nem sonhava em publicar um livro. Vamos ao banho, à janta, a algum trabalho e a colocar sentido neste eterno presente em que vivemos. 

@pauloandel

Wednesday, June 23, 2021

João do Rio, 100 anos depois

Gomes Freire, Lavradio, Inválidos e arredores, duas da tarde de quarta-feira. Há exatos cem anos, esta região e a capital da República pararam, porque morrera João do Rio enquanto as ruas fervilhavam pela perda. Hoje, o Centro mal tem trânsito, as lojas morreram pela decadência econômica que já vinha antes da covid19 e piorou. Outro brilhante escritor, Jack Kerouac, veria aqui o mesmo cheiro de rua triste que encontrou ao escrever "Cenas de Nova York". 

Pelas ruas do Centro, o progresso e a miséria se esbarravam naquele tempo. Os cafés abarrotados, o ir e vir das gentes, enquanto ao largo dos caminhos os excluídos pediam socorro. A história se repete em 2021, mas não se sabe ainda do progresso que abraçará o Rio devastado. Acabaram de votar o projeto que faria o Centro renascer, mas por enquanto é só um disfarce para que as construtoras possam operar de novo em Copacabana, Ipanema e Tijuca. 

João do Rio viveu apenas 39 anos, mas que valeram por 80. De forma avassaladora, ele não apenas inventou o jornalismo formal carioca, mas foi o grande cronista fotográfico da cidade, do céu ao inferno, escrevendo de forma avassaladora e perene - seus textos continuam atualíssimos . E foi ele quem abriu o mundo para Ipanema numa crônica (que pode ter sido encomendada) sobre as maravilhas lunares do então areal. Como se sabe, deu certo. 

Estima-se que a morte de João do Rio tenha levado mais de 100 mil pessoas às ruas para seu cortejo fúnebre. Até hoje está no rol das grandes comoções cariocas, só não batendo a do Barão do Rio Branco, ocorrida antes. O próprio Barão vetou as pretensões de João do Rio em integrar a diplomacia, pois o candidato incorporava três vertentes que o preconceito não perdoa: obeso, negro e homossexual. Todas continuam em voga, horrorizado e humilhando a alma brasileira, mas os planos do Barão em ter um corpo diplomático 100% heterossexual já foram abaixo há tempos...

Ao mesmo tempo, não há como não pensar: há cem anos, um homem gordo, negro e gay parou a capital do Brasil pela força de sua importância, de seu talento, independentemente de suas relações com o poder constituído. João do Rio ganhou o país com seu texto e, depois deles, muitos foram os craques que se consagraram por seus escritos em jornais. Ok, nenhum deles teve um velório com cem mil pessoas, mas não se pode ganhar todas. 

Cem anos depois, o Rio agoniza e estende as mãos nas calçadas, dorme debaixo das marquises e revira latas vazias de lixo desesperadamente. Não há vagas. Os ricos estão mais ricos, enquanto os pobres estão cada vez mais humilhados. A busca pelas manchetes nas bancas foi trocada por vídeos de dancinhas no celular. Ainda estão rolando os dados, mas é difícil crer que todos caiam com a face seis para cima. Resta sonhar com uma reconstrução que não faz parte dos planos do empresariado, mais preocupado com o próprio bolso. 

Em algum lugar do imaginário, João do Rio desce a Gomes Freire saudando os transeuntes. Depois vira na Senado e, a seguir, na Lavradio, onde para para almoçar no Mangue Seco lotado, cheio de cavalheiros e damas elegantes, que ele aprecia de esguelha. Quando terminar a refeição, ele caminhará pela Praça Tiradentes em busca do esplendor perdido da região, aproveitando para pescar alguns livros nos sebos da região e especialmente  em um, que funciona no Edifício Riqueza e é cheio de livros sobre a cidade. No sexto andar há uma loja pequenina, humílima e abarrotada, onde ele pode tomar um café, conversar com os livreiros, apreciar a chegada de um famoso cineasta, escutar a fala rouca de um jornalista e, finalmente, ficar a par das novidades musicais pós-Pixinguinha, tudo enquanto espia a bela vista da praça à janela. Estamos em 2021, o que nos resta é sonhar.

@pauloandel

Wednesday, June 02, 2021

cuidado com as palavras

cuidado com as palavras. muito cuidado. 

as palavras são cristal: uma vez espatifadas, não são recuperadas. 

cuidado com as palavras que você escreve e diz. nada a ver com grafias e eventuais equívocos, pois o que importa é a qualidade da mensagem, mas com o teor delas. não perca seu tempo com a perfeição gramatical acima do que realmente importa. 

palavras podem destruir sentimentos. destruir amizades. afastar pessoas para sempre. 

palavras mal empregadas podem humilhar, deprimir, criminalizar e até levar ao suicídio. podem levar à morte, ao caos. 

não entender o significado das palavras, também. 

as palavras surgiram da necessidade de entender o outro e descrever o mundo. 

cuidado com as palavras. com o outro, com o próximo. todo mundo merece palavras dignas. 

ah, que ninguém se confunda: boas palavras não andam de mãos dadas com falso moralismo. palavrões podem ser muito mais saborosos do que formalismos flácidos.

essa terra já está lotada de gente que despreza o outro, o próximo. isso vai contra os princípios da humanidade elementar. as palavras podem ajudar na aproximação das pessoas, talvez colaborando para que os seres voltem a ser humanos coletivamente falando. 

cuidado com as palavras é cuidado com o próximo, com a vida, com o mundo. 

veemência não precisa ser truculência. incisivo não quer ser estúpido. firme não precisa ser escroto. energia não deve significar grosseria. elegância não é falsidade. 

se nada disso tiver utilidade, talvez uma breve reflexão a tenha: quando alguém usa palavras agressivas, dificilmente deixa de se incomodar quando elas voltam contra si. 

cuidar das palavras é combater a cólera, o ódio, a injustiça, a desigualdade. tentar deixar essa terra um pouco melhor antes de morrer. 

só. 

@pauloandel

Thursday, May 27, 2021

Seu Nelson Sargento

Entre 2002 e 2004, invariavelmente eu conversava com Seu Nelson. À época, eu tinha um sebo de CDs e LPs chamado Seboteca, que funcionava numa galeria da rua Gomes Carneiro, bem em frente ao edifício Majestic, onde um dia moraram Ivan Lessa e Lila Bôscoli - se você não sabe quem são, é melhor procurar saber. 

Na galeria funcionava uma videolocadora badaladíssima. Um dos entregadores tinha o apelido de Tim Maia. Uma funcionária chamada Patrícia, gata fofinha, causava suspiros no corredor. Seu Nelson estava lá sempre em busca de filmes. Na volta, vinha à Seboteca e conversávamos sobre muitas coisas, até samba. 

Certa vez, ele lamentou comigo por ter centenas de LPs em casa de um mesmo álbum. Ele não sabia como distribuir, a gravadora deu como pagamento, peguei uns poucos, minha loja era pequena. Era um assunto recorrente. 

Pintura, cinema, teatro, Seu Nelson era uma potência. Às vésperas de viajar para a cerimônia do Grammy, ele apareceu na loja e brincamos: "Agora o caixa tá cheio".

- Meu filho, só deram a passagem e a estadia. Lá não tem churrasco nem feijoada. 

Rimos. 

O que nunca vou esquecer é de um dia em que ele entrou na loja quando eu ouvia o álbum clássico de Dave Brubeck, "Time Out". Seu Nelson vibrou, começou a contar a história da arte na capa e daí passamos a falar sobre Paul Desmond e Joe Morello. Desse dia em diante, em pelo menos uma dezena de sábados, o mestre do samba brasileiro papeava comigo sobre Charles Mingus, John Coltrane, Lee Konitz, Thelonious Monk, Lee Morgan, Chet Baker e muitos outros. Seu Nelson me deu aulas grátis de jazz, mas nunca o vi falar disso em entrevistas por motivos óbvios, e não sei dizer se os jornalistas sabiam da faceta do multi artista. 

Seu Nelson passou pela pobreza, pela guerra, pelos golpes, pelas crises e todos esperávamos que, de tão presente e ativo, ele batesse os 100 anos. Foi perto. Teve uma grande vida, lutou e foi um orgulho do Brasil. Vê-lo era como ver a chegada de um príncipe desta terra. Até a luta contra o câncer ele encarou de frente, mas não deu para superar a gripezinha do calhorda. Para muitos, ele era um dos heróis do Olimpo do samba, mas para mim era mais: meu amigo de conversas de jazz, o som da liberdade que, tal como o samba, agoniza mas não morre. 

@pauloandel