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Friday, July 14, 2006

Sodade

Bastou um estalo, um breve sussurrar da televisão de baixo volume, um sono leve e eu me deparei com o branco opaco do teto.
A meu lado, não estava quem eu somente queria.
Havia silêncio a preencher os espaços d'alma, majestoso feito duas mil orquestras num carnaval de sonhos a olhos abertos, atentos.
Não era o posfácio de um dia difícil, tampouco resquício de mágoa ou desconforto. Nada disso.
O teto beijou minha vista quase embriagada e me trouxe à mente uma única palavra: saudade.
Ah, a saudade! Esse rio, um turbilhão.
A saudade que mora em Cabo Verde, numa canção de Cesaria Evora, preencheu-me. Tudo junto, num instante.
Era do amor que tanto prezo, sem retorno. Dos amigos queridos, que foram para o infinito. Breve lembrança da oitava série, debruçado na janela da sala e fitando o Atlântico Sul. Corrida na pista do Forte do Leme, picolé com Vera. Jogo de botão debaixo da escadaria do shopping center. Reunião ao sábado no grupo de escoteiros. Não-beijo na Tatiana, perto da Sá Ferreira. A pizzaria Caravelle. O bar do "Seu Manel". A casa do Buja. Atari com Ricardinho. Arroz à piemontese na Bella Blu. Viagem despretensiosa para São Paulo, aparentemente sem maiores motivos.
Em segundos, minha vista firme no vazio do teto serviu de combustível para cinco mil viagens, todas somente possíveis na perfeita harmonia da confusão mental, cada idéia em dois segundos enquanto o mundo girava muito mais rápido do que de costume.
Saudade dos meus tempos de faculdade. Saudade do Maracanã, da universidade. Saudade de Arraial do Cabo. Saudade de outra linda Tatiana. Teresópolis. Raiz da Serra. Patis. Guanabaras. Niteróis, especialmente: uma viagem que fiz na madrugada, sozinho na proa da barca, sentindo-me um verdadeiro pirata e deliciando-me com o barulho breve d'água, na solidão mais bem-acompanhada da minha história. Friburgo, na volta, abraçado à mais bela das belas. Resende, na ida. Mendes, na estadia.
Quebrei o tempo por um instante e liguei o aparelho de discos. A doçura da poesia de Francisco para superar beleza do outrora silêncio.
A fresta da janela permitiu-me ver outros quartos, de outros apartamentos. Luzes apagadas, ausência de outros ruídos, todos os tudos desligados. Talvez três da manhã, imaginei.
Outras saudades bateram-me no peito preciso. Das mais simplórias, feito a de um milk-shake, até as de maior sofisticação, tal como um show de Jane Monheit. Saudade da boa conversa do Moraes. Saudade da viagem com Tatiana. Saudade da prosa de Breno. E Alessandra? E Luciene? E Ana. Todas de beleza sem fim.
Deixasse o tempo correr em meu descanso, não faltariam motivos para lembrar e pensar em mais e mais saudades. Algo que se sente e é difícil de descrever ao certo, mas que pode ser traduzido como um prazer celestial de repetir o que se passou - mesmo que essa passagem ainda esteja presente e que vá se repetir por muitas outras quinzenas.
Juarez Machado, o grande artista, disse em certa vez que só seria realizado em sua profissão quando conseguisse desenhar a saudade.
Como expressar a saudade em arte? Como dialogar com a saudade? Eu não sei. Dela, minha ignorância só permite-me aproximar através do sentir, do pensar, do refletir no meio de madrugada vadia, entre calados e música de leveza. E foi isso que tanto fiz em efêmeros momentos do descanso interrompido.
Imaginei ser hora de guardar a saudade, para ter saudades da saudade e posteriormente recordá-la, sorvendo cada pedaço feito uma deliciosa iguaria ou um drinque apoteótico; dei cabo temporário aos pensamentos.

Recolhi-me à prévia antes do novo sono discreto.

Idílio à vista não havia, meu coração era morador de um bairro distante, suburbano.

Não pedi licença em meu espaço na cama. Desnecessário, pois.


Paulo Roberto Andel - 14/07/07

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