Translate

Saturday, September 30, 2023

Dois ônibus (parte 1)

Esta semana fiz algo que há muito tempo não fazia. Melhor dizendo, que quase nunca fiz. Entrar num ônibus sem saber ao certo seu percurso. Fiz isso duas vezes. 

Quando era garoto eu adorava ler o Guia Rex. Estudar os nomes das ruas dos bairros, das ruas dos trajetos dos ônibus e por aí vai. Quando estagiei na Firjan, os mensageiros me pediam dicas sobre ônibus e ruas, era engraçado. Por muito tempo fui um entusiasta da cidade, atravessando bairros e bairros, mas à medida que tenho envelhecido as travessias reduziram drasticamente. Com as mudanças de mãos das ruas, de números das linhas e as reformas desde a Copa 2014, perdi meu capital de informações. Além do mais, trabalho perto de casa, faço muita coisa a pé, Uber e táxi. Às vezes pego um ônibus por 900 metros para chegar a estação Carioca do metrô. 

Nem sempre foi assim. Especialmente entre 1988 e 1994, quando fazia faculdade e me deslocava de lá, para o trabalho e para casa. Eu gostava, mesmo. Sempre gostei de ver a paisagem, as pessoas perto. Claro, eu nunca pertenci à população oprimida pelas precariedades do sistema de transportes. Era pobre também, mas um pobre que usa ônibus na zona sul e no Centro é privilegiado na comparação com usuários da zona norte, oeste e região metropolitana.

Veio o 201. Chovia fininho, ainda tinha uma hora para abrir a loja. Entrei. Antigamente ele subia até o fim da Almirante Barroso e voltava pela Assembleia. Mudou. Virou para a direita depois pegou a Araújo Porto Alegre. Me deu uma saudade enorme da ABI - outro dia mesmo estávamos lá lutando contra o golpe e Isabel estava deitadíssima no chão, vendo um vídeo. Nossa musa do vôlei, tão cheia de vida. E a Sala Sidney Miller? Quantos shows maravilhosos ali, de Jorge Mautner a Victor Biglione, tanta coisa. 

Simpático o motorista. Conversa com uma passageira conhecida, risonha. Aí chegamos à Evaristo da Veiga e, rapidamente, República do Paraguai - que eu adoro porque você vê do alto a avenida Chile, os grandes prédios, o Edise, símbolos de uma afirmação carioca, talvez. Dia de chuvinha, ruas vazias trânsito livre. 

Sem planejar nada, descobri que o ônibus me deixaria na porta do trabalho. Foi divertido. A primeira vez que fiz isso em quase cinco anos de loja. Fazer um caminho minimamente diferente. Já escrevi outras vezes que, por gostar muito de VLT, faço um percurso quase ridículo só para usá-lo: apenas duas estações, com direito a baldeação na Sete de Setembro, que me deixa na Praça Tiradentes. 

Foi legal rever certa paisagem que, às vezes, a pressa e as responsabilidades nos alijam da oportunidade. Gostei tanto que repeti dias depois, mas com outra linha de ônibus. Acabei indo até o stand do Túlio, que fica na Primeiro de Março, com excelentes CDs e LPs estilo King Crimson, Traffic, Premiata Fornecia Marconi e outros craques.

Depois eu conto. 

@pauloandel.

Sunday, September 24, 2023

Copa do Brasil 2023

Antes de se apaixonar pelo Fluminense para sempre, meu pai torceu para o São Paulo quando era garoto. Vivendo em colégio interno e órfão, talvez o futebol fosse uma de suas únicas alegrias. Aos 18 anos veio para o Rio e nunca mais saiu. 

Uma hora antes do maior jogo entre os dois times da sua vida, um infarto o tirou de cena em 2008. E mudou a minha vida para sempre.

Cresci numa casa com paixão pelo futebol, sem ódios, sem rancores. Claro que tinha as rivalidades - aos 11 anos de idade eu já tinha visto jogos nas torcidas do America, Campo Grande, Goytacaz e Palmeiras. Claro que secar sempre foi divertido, claro, mas ódio, rancor, jamais. E cresci com muita simpatia pelo São Paulo, por conta da questão familiar. 

Portanto, a vitória de hoje me faz pensar que, onde quer que esteja, meu pai está feliz. E a felicidade dele é a minha. Agora penso nos jogos que vimos juntos, e foram bem menos do que eu gostaria - com 14 anos eu já ia sozinho para o Maracanã. Penso nesse gosto pelo futebol que ele foi me passando desde que eu era criança, a própria maneira como me tornei Fluminense e tantas outras coisas. 

Já adulto, com mais de 40 anos, eu sonhava em escrever um livro sobre o Fluminense para homenagear meu pai. Em certo momento, parecia impossível, mas certa conjunção astral mudou tudo, acabei conseguindo ser publicado e nunca mais parei. Tenho escrito muitas coisas sobre muitos assuntos, mas sei que os trabalhos que me projetaram para milhares de pessoas são os do Flu. Nenhum problema. 

Seria bom tê-lo aqui agora, comendo os sanduíches que ele sempre gostava (minha mãe imitando meu pai nessas horas é uma cena inesquecível). Falaríamos desse jogo, desse título, desse negócio chamado futebol que, mesmo contaminado, nos dá alegria e esperança, alivia as noites - ok, também as destrói - alimenta as conversas. 

Na ausência inevitável, resta pedir um sanduíche, lanchar, rir com as mensagens no WhatsApp, brincar com os rivais. Pequenos momentos divertidos desse estranho negócio chamado vida. 

@p.r.andel

FIGUEIREDO MAGALHÃES, 00:47H, PRIMAVERA DE 1989

[A praia está vazia e silenciosa, algo incomum para a madrugada do fim de semana. Geralmente vem o pessoal de outros bairros e, claro, os turistas. 

Não tem mais ninguém na rede de vôlei. Futevôlei. No campo de areia, nem pensar. 

Estranho. 

[Na esquina de Figueiredo com Domingos Ferreira tem sempre uma galera dormindo na rua. São uns dez. Não mexem com morador, mas se sacarem outra procedência vai dar zebra

[Na quadra seguinte, do outro lado da rua, tem as duas drogarias e, numa delas, o letreiro tem o Pepe Corta-Zeros. Um pequeno símbolo da rua. 

No prédio da esquina moram Marcelo e Hermínio. Talvez no quarto andar. Bem, não é uma esquina qualquer, mas a mais barulhenta do mundo. Dizem que até entrou para o Guiness. 

Se você atravessar a Avenida Copacabana e utilizar a primeira entrada, perto da mitológica Galeria Ritz, cujo terreno já abrigou a fantástica faquiresa Suzy King - que o poeta e cineasta Luiz Carlos Lacerda, menor de idade, espiava pela fresta da porta -, vai adentrar as Lojas Americanas, paraíso das crianças com suas balas e brinquedos. A loja tem formato de L e você pode sair pela Figueiredo Magalhães, onde não encontrará mais vestígios da lanchonete de rua - que vendia cachorro quente e refresco de côco no copo de cone -, apenas a sorveteria Akay do outro lado da rua, bem em frente, que tem um misto quente imperdível: pão crocante, queijo derretendo e fatias finas de bom presunto. 

Cine Condor, dentro da galeria. Minha amiga Katia morava ali. São mais de 800 lugares no ótimo cinema refrigerado. Tenho visto muitos filmes, exceto "Psicose" - dormi e depois explico o motivo.

Ainda poderia voltar à esquina anterior, a mais barulhenta do planeta, bem na diagonal do prédio do Hermínio. Casa Nelson, roupas finas para senhores exigentes - especialmente para quem não quer sair do armário, se é me entendem.

[Figueiredo e Barata Ribeiro é Varese, loja esportiva. Lindos e caros botões, tênis fascinantes, artigos de primeira. A vitrine é uma beleza. E é também Sumol, lanchonete querida do bairro que aguenta o tranco até três da manhã. Salada de frango, belo bife de hamburger da casa, grandes sucos e a maravilhosa fatia de pizza muçarela, verdadeira salvação depois dos jogos noturnos no Maracanã. Ai, Jesus!  

Ainda o futebol. Passando pelo Sumol (alguns chamam por a Sumol), tem a Kayat Esportes, outra loja de artigos esportivos que faz a festa da garotada: vende escudos bordados, números de camisa que se prende com ferro de passar e bolas, bolas, maravilhosas bolas de futebol. 

Na esquina da Edmundo Lins incrivelmente não tem ninguém. É um dos alvoroços de Copacabana por causa da turma que ali convive, pessoal da praia, das lutas e da noite. Uns trinta garotos ou mais. Eles são a GEL e a sigla é óbvia: Galera da Edmundo Lins. 

Esquina de Figueiredo com Toneleiro, resta o único estabelecimento aberto da quadra, o velho botequim pé-sujo sem letreiro, onde os últimos boêmios tomam goles de cerveja e cachaça, afogando mágoas e melancolias. Mas não por muito tempo: uma das portas já foi baixada e em pouco tempo só restará um único bem, raro em Copacabana e na rua Figueiredo Magalhães mesmo de madrugada - o silêncio.

@p.r.andel

Sobre Rick Davies e o Supertramp

Eu sou fã do Supertramp desde garoto. Fiquei louco da vida quando não pude ver a banda no Hollywood Rock de 1988. Estava em meio ao vestibular, matar ou morrer. Passei, felizmente. 

O problema é que o Supertramp nunca mais voltou ao Rio, sequer ao Brasil. Nas últimas três décadas lançou apenas dois álbuns, "Some things never change" (1996) e "Slow motion" (2002). O grupo está recolhido, não faz shows, não lança álbuns e não dá qualquer indício em seu site oficial. 

Não vou entrar aqui na briga entre Roger Hodgson e Rick Davies. Eu gosto do Supertramp e ponto. Uma banda que não deixou herdeiros, ninguém se parece com ela. Hits eternos como "Give a little bit", "Goodbye stranger", "My kind of Lady", "Bloody well light", "From now on", "It's raining again" e tantos outros êxitos. Quando Roger deixou o grupo, é claro que muitos fãs lamentaram, mas a vida seguiu, ele fez sua carreira solo e o Supertramp funcionou bem ao vivo com os vocais de Mark Hart, cantor do Crowded House. Ok, os puristas e cri-cris odiaram, mas qual a exata importância destes? 

Há alguns anos, mais precisamente em 2015, prestes a iniciar uma turnê europeia, ela foi cancelada às vésperas porque Rick Davies foi diagnosticado com um mieloma múltiplo, aos 71 anos. 

O tempo passou, as notícias eram escassas e a única coisa que achei no Google para me dar esperanças foi uma foto de Rick, acompanhando uma partida de futebol americano. Só. 

Semana passada, pesquisando pelo YouTube me deparei com alguns vídeos de Rick Davies, tocando várias músicas do Supertramp com outros músicos, num local relativamente intimista. Achei glorioso: Rick, atualmente com 79 anos e depois de superar um câncer, voltou aos palcos. O som continua inconfundível e a voz é a mesma. O Supertramp estava lá, ao menos na memória e nas canções. 

Então fiz uma postagem no Facebook a respeito, e confesso que me decepcionei com a reação de alguns colegas. Houve quem dissesse algo como "Que coisa decadente! Tocando num palquinho, que triste fim de carreira!", bem como outras sentenças parecidas. 

Então me perguntei: de onde as pessoas tiraram que o artista consagrado só pode tocar em grandes arenas, sendo um ser inatingível? 

Desde quando se apresentar em palcos alternativos é exclusivamente sinal de fracasso ou ostracismo? 

Quantas vezes artistas mundialmente consagrados já tocaram em casas com público mínimo, por diversas razões? 

E mais: a qualidade artística de um músico é definida pelos palcos em que toca? Parece improvável. Quantos e quantos músicos espetaculares são completamente desconhecidos do grande público? Outros não tocam sequer em palcos pequenos, mas se limitam a estúdios. E isso não lhes tira o talento. 

É difícil dizer se o Supertramp voltará aos palcos um dia. Roger Hodgson continua fazendo turnês regulares. Ao que tudo indica, Rick Davies está recuperado. De tudo isso, certo mesmo é que um artista que já vendeu mais de 60 milhões de álbuns na carreira pode ser quase tudo, menos um fracassado. Procure nas rádios do mundo inteiro: sempre tem "The logical song" tocando em algum momento, só para lembrarmos que o Supertramp é eterno. 


Tuesday, September 19, 2023

noite agora

noite agora

2023


agora é noite, o começo

da noite


a nação proletária sonha 

com casa, banho e comida

sonha com descanso

enquanto se encaminha


[nas gares


agora é noite e os corações

perfeitos


procuram seus pares em sonho

sorriem para o amor passado

celebram os vivos e os mortos

pelas veias velozes de asfalto 


os corações solitários 

navegam rumo à via láctea:

batem, voltam, se esparramam

pela incerteza da vida


agora é noite, agora

é o futuro que decola

para o voo cujo destino 

é o eterno presente em que

vivemos


@p.r.andel

Sunday, September 17, 2023

Fragmentos da UERJ

[Numa certa manhã de 1988, aproveitamos que a aula terminava às 8:50h e nos mandamos para São Conrado. Objetivo: jogar boliche. Depois voltamos para almoçar no La Mole da Marquês de Valença, Tijuca. Não sei como, mas juntávamos pobres e ricos no mesmo barco, ou melhor, carro. Todo mundo ia. Não era baratinho, mas certamente era bem mais barato do que qualquer coisa de 2023. 

[Ou juntarmos uma turma para assistir Dick Tracy, acho que no Cine América. Foi um acontecimento. Depois lanchamos no Bob's. Madonna era Breathless Mahoney, no auge da forma e fama. Tinha também Warren Beatty, as garotas adoravam. Era muito bom ter dezoito ou dezenove anos. Ou vinte. 

[Estávamos na varanda do Bloco A, bem de frente para uma maravilha chamada Maracanã, quando testemunhamos uma tragédia. Eu estava com a mão encostada no parapeito quando de repente senti uma dor lancinante. Um segundo depois, um barulho assustador. As garotas correram, aterrorizadas. Olhei para baixo e lá estava um corpo estendido no chão, depois de seu último voo. Então me senti gelado, estático e demorei para perceber que minha mão havia inchado e arroxeado com a pancada que, involuntariamente, o suicida me acertou num esbarrão. 

[Às vezes matávamos aula só para conversar e mais nada. Era um grande prazer coletivo. Juntávamos oito ou dez alunos e falávamos, falávamos e ríamos. Aquilo me fazia um bem enorme, eu estava sofrendo muito em casa. Eu me sentia acolhido, era bom. Era como se fosse como a casa do Fred, só que com outros colegas e outras garotas bonitas.

[Eu achava um barato aquele ir e vir que só a UERJ tem. Você sobe uma rampa e está no Direito, desce outra e está na Engenharia. Para no meio do caminho e fica na Estatística. E História. Educação Física. Letras, Economia. Tudo se misturava. Logo, logo, fizemos muitos colegas de outros cursos. 

[Acho incrível que aquele grande prédio só tenha me feito bem, porque muitas pessoas espiritualizadas o condenam por conta do que aconteceu lá. Antes da construção da Universidade, seu terreno abrigava a favela do Esqueleto, havendo um terrível incêndio antes da remoção. Depois, o prédio virou uma espécie de referência para suicídios, hoje atenuada por diversas providências. 

[Nos primeiros períodos eu não estudei direito. Olhava a grandiosidade dos corredores, das salas lotadas, um mar de gente de todos os lugares com mil interesses e formações. Eu espiava as palestras, os filmes e shows da concha acústica, os cartazes nas pilastras com os eventos culturais. Era um mundo.

[Minha amiga Lou era uma graça. Eu a achava linda, com um sorriso de braços abertos sobre a Guanabara. Ela tinha o cabelo alourado, cacheado. Linda e divertida, sempre rindo. Convivemos por bons anos. No dia seguinte ao título imortal do Fluminense em 1995, o do famoso gol de barriga, nos encontramos no hall do sexto andar e trocamos um longo abraço de campeões. Foi a última vez que nos vimos. 

[Tinha a Sônia também, que era uma graça. Largou o curso pelo caminho. Às vezes eu a encontro num dos restaurantes onde almoço, perto de casa. Ela tem negócios por ali. É sempre simpática quando nos vemos. Eu sei que agora temos mais de cinquenta anos, mas eu só a vejo como a garota de dezoito anos, elegantemente vestida, do tempo em que eu sonhava em disputar a São Silvestre, me formar e viver feliz com a minha família.

Sunday, September 10, 2023

Salut, São Paulo!

Até que envelhecer tem suas vantagens. Com ou sem dinheiro, dificilmente vou a festivais de rock pop. É que meus heróis estão aposentados, quase aposentados ou muito mortos. Naturalmente há exceções: dia desses fui com meu amigo Marcelo Rodrigues Lessa ao show da Dorsal Atlântica, do meu querido amigo e ídolo Carlos Lopes. Trash metal roots, em pé, como o estilo pede. Bom, a Dorsal pede uma coluna inteira e o Carlos não cabe num livro. Por enquanto digo que é um dos maiores artistas em atividade no Brasil. Gênio. Perguntem ao João Gordo.

Então fiquei vendo The Town, o Roquinrio de Sampa, meu! Gosto de São Paulo, de suas esquisitices, de suas garotas, aventuras lokas e até das viagens de avião - são as melhores do mundo para quem tem medo, pois mal dá tempo de servir o sanduíche - quando há - e o piloto avisa que iniciou o processo de aterrissagem. Só que tá bem caro...

Da Pitty só vi o finzinho. Ela é uma graça. Vinte anos de carreira, atitude, uma garota baiana que botou muita pimenta no vatapá. Trajetória maneira, vitoriosa. Tem toda razão quando canta "Que me acha foda". 

Num susto, o Garbage. Shirley Manson, minha crush desde os anos 1990, senhor! Butch Vig, o homem de "Nevermind" do Nirvana e "Siamese Dream" do Smashing Pumpkins. Gostei muito. Minha preferida é "Stupid Girl". Especialistas dizem que o show não emplacou para a plateia presente. Bem, em 95% dos dias de festivais é assim. Achei o show correto e, pra quem conhece as músicas, elas soam como nos álbuns. Tomara que voltem, no Vivo Rio (sem mesas). Shirley é adorável. 

Barão. Barão é foda. Stoneanos de corpo e alma. Desde a volta, acho que vi uns seis shows do BV na TV e todos foram ótimos. Frejat era uma voz espetacular para a banda, mas gostei mesmo do Suricato, é um outro jeito de cantar e com mais peso no som. Foi legal ver o Barão tocando as músicas do Skank, bem divertido. Certa vez o Samuel Rosa foi muito antipático comigo e com o Bolinha, deixa pra lá. Espero que façam outros shows junto. Guto senta a mão na bateria, gosto quando Maurício canta. E onde tem Barão, tem a presença poética do meu ídolo e parceiro literário Mauro Santa Cecília. O livro tá atrasado, senhor! 

Wet Leg eu não conhecia. A cantora é linda, docinha, aquele pop rock leve às vezes com uns berros. Ok, tem a questão das escalações e palcos, mas isso também é de todos os festivais. Deveria ser ótimo vê-las na antiga arena da Caixa Cultural do Rio na Almirante Barroso, que os fascistas destruíram. Bom passatempo para o gran finale. 

Por fim, Foo Fighters. Eu demorei a gostar do Nirvana e demorei com o Foo, mas o show dos caras é devastador. Dave Grohl passou por duas tormentas e, pelo visto, ainda vai contar muitas histórias. Simpatizo mesmo é com Pat Smear, divertido e excelente guitarrista que vem dos tempos do Nirvana Unplugged. Um show de rock como tem que ser. Ouvi como se tivesse 22 anos de idade, que infelizmente já estão longe demais. 

Meu Roquinrio foi na TV. Uma noite divertida mesmo. Este ano tem Paul McCartney e Roger Waters por aqui, com ingressos salgadíssimos. O Glenn Hughes também. Em tempos de dureza, se eu conseguir comprar o novo Dark Side, está bom. 

@pauloandel

Saturday, September 09, 2023

Onde estão eles?

Eu penso muito. Em muitas coisas e pessoas. 

Hoje comecei a pensar em um monte de gente que me lembro, mas provavelmente sequer sabe da minha existência. 

Gente que foi minha vizinha, gente que estudou comigo - foram muitas escolas, gente com quem joguei bola na praia, gente do bairro que me cumprimentava com a levantada da sobrancelha - você não fala mas reconhece a pessoa. 

Lembrei de gente e coisas, algumas muito duras e outras até felizes. E me dei conta que uma parte dessas pessoas pertence à minha vida, mas eu não pertenço às delas. 

Falo de gente de longe, dos anos 1970, 1980 e 1990, não de agora, onde ficou quem tinha que ficar e saiu quem tinha que sair. 

É sobre gente que sumiu. 

Eu lembro dos nomes, dos rostos, nem tanto das vozes. E lugares também. 

Lojas que faleceram, prédios inteiros, lugares. Copacabana por exemplo, que é tão igual mas mudou muita coisa que só os veteranos conheceram. 

Deitado na cama e espiando o show do Foo Fighters, começo a pensar na quantidade de pessoas que conheci e nunca mais vi. Elas não morreram para mim, mas podem ter morrido de verdade. Eu nem nasci para elas e isso é engraçado. 

Em grupos muito pequenos, de três ou quatro pessoas, eu sou o único sobrevivente e tudo me parece estranho. 

Agora mesmo me lembro de uma vizinha bonita que não vejo há 40 anos. Um jornaleiro que também sumiu há 40 anos. Colegas de escola e vizinhança, lembro de dois que por sinal torciam para o America. Lembro até do vendedor da loja de roupas numa loja da Figueiredo Magalhães, que era muito roqueiro e também homofóbico - vivia sacaneando Rob Halford e Lou Reed. 

Lembro duma outra garota bonita, bonita, que nem olhava pra gente e era irmã de um conhecido - ela passava pela gente quase todo dia e nos desprezava, ou não sei dizer se era uma autodefesa porque ela tinha um mínimo problema motor e talvez tivesse vergonha - mal ela sabe que a achávamos linda demais, porque ninguém falou com ninguém. 

Achei graça de lembrar também que uma garota da sexta série queria me dar um beijo, porque resolvi um exercício difícil de Matemática - eu fiquei com vergonha, acredita? Claro, nós, garotos de 1980 com 11 ou 12 anos éramos verdadeiras crianças - a ditadura de certa forma nos fez retraídos e tristes. Nunca mais vi a garota, nem seu irmão que era um botafoguense fanático? Que fim será?

Naquele tempo mal havia telefone e uma simples mudança de endereço podia significar a morte em vida do pré-adolescente. Agora tudo mudou: telefonar para alguém é quase um crime, as pessoas deixam dias sem resposta no Whatsapp - mas quando precisam, são as primeiras a chamar, e agora tudo é descartável. Se você não pensa como eu, você é burro e não entende nada, então eu posso silenciar você e me livrar da oposição. Eu sempre sei mais, mesmo quando comprovadamente eu não sei pomba nenhuma. 

Deixa de seguir, exclui, bloqueia, silencia, deixa invisível. 

Foi pra isso que inventamos o smartphone? 

@pauloandel

Fragmentos do Rio num sábado

[Oh, é uma tarde carioca tão legal que deveríamos aproveitá-la ao máximo, quero dizer, deveríamos alguns de nós porque a maioria não pode aproveitar nada. Apenas sobrevive e sofre. Alguns de nós se solidarizam e se doem por isso. A maioria, não. O céu do Rio é lindo e azul celeste, mas isso não impede sinos que estão a dobrar por ora - é que os assassinados também se despedem em dias de sol, e nós temos muitos assassinados, quero dizer, alguns de nós porque a maioria é de alienação e descompromisso assustadores. 

[A jovem linda, alva, de cabelos Chanel pretíssimos, sorve uma taça de vinho num restaurante do Largo do Machado. Linda e só, ela alterna os tragos com espiadas lentas no smartphone como se estivesse a ler um texto caudaloso. Sozinha no salão, ela fita a rua e percebe que, à altura do muro que toca o vidro da porta, um pequeno par de olhos é que a fita. Um garotinho preto, talvez de seis ou sete anos, com seus pequenos e aflitos olhos de jabuticaba, talvez um dos garotinhos que vendem drops na região - e que olha pelo vidro porque é sua única chance de estar ali. Em alguns segundos, ela toma um gole, aterrissa a taça na mesa e abre um sorriso que só realça sua beleza. Pequenininho, o menino não alcança a altura do vidro, mas o franzido de sua testa e o brilho do pequeno olhar de criança não deixam dúvidas: ele também está sorrindo. Uma jovem e bela mulher, um garotinho e dois segundos da fraternidade mundial.

[O Arco Metropolitano é uma das vias mais perigosas do Brasil e não são poucas as suas histórias de violência. Ontem tivemos mais um, com uma garotinha de três anos fuzilada por um policial. Em condições normais, isso bastaria para manifestações de dezenas de milhares de pessoas nas ruas, mas a desumanidade tomou a sociedade de tal forma que as piores coisas são naturalizadas. Ninguém liga. É feriado. Uhu! Aguardemos a próxima manchete com a nova criança barbarizada. 

[Jovens de classe média, casais bem sucedidos, intelectuais legítimos e pretensos, moderninhos e descolados, muitos são os frequentadores do CCBB num sábado, para apreciar a exposição de Evandro Teixeira, um dos maiores fotógrafos do mundo. Tempos atrás foi a vez de Walter Firmo, outro gênio. Evandro fez a crônica fotográfica de um Brasil dos mais difíceis, o da ditadura 1964-1985. É certo que as pessoas estão no CCBB em busca de arte, cultura e informação, mas seria bom que refletissem sobre o tempo maligno que Evandro registrou como ninguém, e que até hoje mantém feridas profundas na vida brasileira - basta pensar em tanta gente que foi torturada, estuprada, esquartejada e incinerada em nome do fascismo travestido de patriotismo, que só fez o povo sofrer. 

[Dois camaradas de vinte e poucos anos conversam num botequim perto da Nova Petrobras, no coração do centro. Parecem novos beatniks à primeira vista. Enquanto bebem uma cerveja artesanal, um fala para o outro que está completamente apaixonado por uma garota do trabalho, ao que tudo indica numa agência de publicidade, mas que tem muitas dúvidas se será retribuído na paixão e que, em caso positivo, precisará preparar os pais para terem uma nora trans. O outro dá uma gargalhada de corar Chiquinho Zanzibar, o exótico personagem da noite carioca, e diz: "Irmão, vai fundo. É 2023! Bem-fundo, hein? O apaixonado beatnik dá um sorriso meio sem graça. Numa mesa próxima, uma velhinha com a amaldiçoada camisa da CBF arregala os olhos. O garçom abre outra artesanal e tudo bem. 

[A garotada chutando uma bolinha de plástico numa área de lazer do Méier, enquanto transeuntes passam com as compras de supermercado e o bar está apinhado de gente. Na calçada bem em frente, a marquise é a única companheira de um velhinho que pede esmolas quase chorando. Quase ninguém liga.

@p.r.andel

Monday, September 04, 2023

Fragmentos de São Paulo

1987

[A gente não tinha um tostão pra sair. Resolvemos caminhar seguindo três ou quatro estações do metrô. Numa delas, São Bento, vimos uns caras espertos dançando break e ouvindo sons de batida da pesada. O Marco ia entrar na escola do exército, eu fazia faculdade com o dinheiro que meu tio me deu tão generosamente. A gente estava acostumado aos acampamentos, a noite no campo, admirar as garotas e viver nossa melancolia serena. Ali era o urbano, o som da rua, a galera black e, enquanto começava a revolução cultural do hip hop no Brasil, a gente era testemunha sem querer. Dois garotos cariocas andando na grande solidão que abraça a noite de São Paulo. Perto dali, a gente nem sabia do sofrimento do pessoal no edifício São Vito. A gente não sabia de nada e nem era feliz, mas tinha uma esperança enorme. 

2011

[Cansado da vida ridícula e posuda do mundo corporativo, onde sempre me sinto tão deslocado. Às seis da tarde escurece e caminho pela Berrini cheia de carros no asfalto e calçadas vazias. Quatro quadras depois encontro um botequim respeitável, parecido com o Vieira Souto no Rio. Entro e vejo o cardápio, também respeitável. Então peço um bife a cavalo que vem maravilhoso. Enquanto saboreio a excelente refeição, numa outra mesa o pessoal fala do Corinthians enquanto ri. Na rua, os faróis dos carros parecem espadas de luz se digladiando no rush de São Paulo. Logo depois, voltarei sozinho pela calçada deserta, chegarei ao bom hotel, tomarei banho, verei TV, a vista da janela e tentar descansar para o trabalho no dia seguinte. Estou num hotel quatro estrelas mas nem ligo para isso - a única coisa que me interessa é o ovo mexido no café da manhã. Suco de laranja também.

1987

[Samuel me levou ao cemitério para ver o túmulo de meu avô. Foi uma tarde muito triste. Eu merecia ter conhecido meu avô, algum dos avós. Não tive nenhum. Estamos na Vila Mariana? No Araçá? 

A inscrição na lápide dizia algo como "A saudade de seus filhinhos". Como meu pai e meu tio sofreram com sua morte, minha tia também, que não conheci, foi dada para uma família rica e nunca vi. Ela também não me viu. Se estiver viva, tem 80 anos. 

As famílias dos meus pais sofreram demais. Quando se casaram, eles tinham mil quilômetros de distância de casa, muita luta e provavelmente eu fui a única alegria deles por muito tempo. De certa forma, a herança desse sofrimento me ajudou a aguentar muita coisa ruim, especialmente vinda de pessoas ditas amigas - elas são as piores. 

Não ficamos muito tempo no cemitério. Logo depois, estávamos no jipe cortando as ruas, navegando pelas artérias de asfalto de São Paulo. Ladeiras, sobe, desce, mão dupla. É bem diferente do Rio e também interessante.

2011

[Ainda tenho três horas para chegar ao trabalho. Talvez seja legal ficar deitado vendo TV. Juliana manda uma mensagem de bom dia, eu digo que seria muito bom se ela estivesse lá comigo, ela ri e dissimula. Gastamos uma hora com passatempos, aí desisto de sair mais cedo e passar nos sebos da Avenida São João. 

No ano passado comprei um ótimo CD do Yes. 

@pauloandel

Sunday, September 03, 2023

Eu lembro e me lembro (reprise)

eu lembro. lembro de quase tudo. minha memória é delícia e inferno. 

eu me lembro quando fiz sinal para um táxi no colo de minha mãe, assim como me lembro de ser carregado em minha festa de aniversário em 1970, aos dois anos de idade. eu lembro do panduíche na revista e do sujismundo na tv. 

eu me lembro quando meu pai me disse "félix" e "fluminense" pela primeira vez em 1973, antes dos cinco anos de idade. lembro de ver minha mãe chorando quando chegamos a vaz lobo para morarmos um ano, em 1976 - eu já tinha oito anos. também me lembro de comprar coxinhas sequinhas e deliciosas numa lanchonete no largo de vaz lobo, enquanto tocava belchior na lanchonete. 

volto a copacabana em 1975 e lembro quando a ditadura me expulsou da escola, ou quando minha mãe chorou muito ao falar com uma jovem mãe em situação de rua na frente do metro copacabana. 

eu me lembro de ana paula, linda, passar pela figueiredo magalhães, mas aí já tinha 14 anos e isso tem apenas 40 anos. 

eu me lembro de todas as vezes que precisei chegar em casa para dormir, ou às vezes nem ir, para não ter choques com meu pai doente por alcoolismo. 

eu me lembro de quantas vezes vi o atlântico sul e pensei no mistério, no medo e na morte, sonhando em ser alguém digno e poder dormir todas as noites em paz - o que jamais aconteceu. 

eu lembro de meus amigos à mesa jogando cartas enquanto alguns ficavam muito loucos de pó e algumas garotas se esfregavam em nossos colos, aí já tinha 18. 

recuo e relembro quando ia com meu pai de copacabana até são joão de meriti, então pegávamos um belo ônibus que passava pela dutra e eu me sentia feliz por ser um ajudante de loja aos sete anos de idade.

lembro de minha mãe comprar uma caixa de madeira de um velhinho na rua viveiros de castro, ele era bem velhinho e essa caixa até hoje serve para guardar meus botões. 

eu me lembro de todas as vezes que sofri bullying na escola, todas as humilhações ridículas e todos os rostos dos algozes - a maioria se tornou a mediocridade esperada. 

eu me lembro de uma garota que beijei sem saber o nome, no meio do ajuri de cotia com dez mil escoteiros em 1985. lembro de quase todas as admirações e paixões que tive, vividas ou não, não sei se sou lembrado. 

lembro das últimas palavras que não troquei com xuru e fred, cujas ausências são dolorosas ao extremo para mim, isso com 14 ou 18 anos atrás. e lembro do dia em que fiquei amigo do xuru em 1984, assim como lembro da primeira vez em que fui à casa do fred em 1977. 

eu me lembro de ter visto os paralamas do sucesso no parque lage, quando ninguém os conhecia. 

eu me lembro do bar bole bole e de billy blanco cruzando diariamente o shopping dos antiquários. 

lembro de antológicas noites no campo em arcozelo, vale do sol, imbuí, serra dos órgãos e vassouras - japuíba-patis-gaviões, 1987. 

eu me lembro de ter jogado botão com augusto, luis e marcelinho debaixo da escada volante em 1978, e de ter assistido aulas de catecismo com floriano em 1979. 

eu me lembro de ter acariciado uma gata por baixo da mesa enquanto seu noivo tinha ido ao banheiro do bar, 1995. 

eu me lembro quando vi chocão pela primeira vez e ela era bem pequenininha. 

eu lembro de lula perseguido pela imprensa numa denúncia do pasquim de 1978. e me lembro do homem cadeirante triste, usando uma sonda debaixo da marquise do shopping dos antiquários em 1993. 

bem mais longe, lembro de minha primeira entrada no shopping em 1975, vindo da Toneleiro e acessando pela siqueira campos. eu me lembro de dri, roberto e nilton jogando bola no bairro peixoto em 1981. lembro do lazlo e do janjão, que foram meus vizinhos em 1978, assim como o luiz fernando português, o marcelo e a maravilhosa zuleika. 

eu lembro de todas as injustiças e portas na cara que sofri, e me lembro também das pouquíssimas pessoas que me deram a mão sem oportunismo. 

eu me lembro quando chorei de alegria pela primeira vez, quando passei para a uerj - tem apenas 35 anos. 

minha memória tem coisas demais, é minha delícia e desastre ao mesmo tempo. 

ainda me lembro.

@pauloandel