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Tuesday, June 27, 2023

uma noite de 1979

Meu pai chegou bem em casa. Triste ele sempre estava, mas não tinha bebido e aquilo foi um alívio para mim. Naquele tempo eu rezava e agradecia, tinha acabado de fazer primeira comunhão. 

Apesar da nossa relação tensa, volta e meia ele trazia algum pequeno presente para mim. Um botão. Um gibi. Eu tinha dez anos e, naquele tempo, os garotos da minha idade só brincavam e sonhavam. Ganhar uma caixa de Playmobil. Autorama, já pensou? 

Naquela noite ele devia estar duro de grana, mas não falhou. Trouxe para mim um pneuzinho. Na verdade era um anel de borracha que lembrava um pneu mas era liso, sem vincos. Eu gostei. Tínhamos um sofá vermelho, kitsch, cuja cabeceira tinha uma ondulação, aclive e declive. E o que precisava além daquilo para ser feliz? Nada, a não ser um gole de Coca-Cola ou um hambúrguer que minha mãe fazia em casa para o lanche. 

Então me esbaldei. O pneuzinho ia e vinha na cabeceira do sofá. Ele deve ter ficado contente, porque brinquei bastante. Uma hora ou mais. Depois parei para escutar um jogo do Fluminense em nosso rádio, um Telefunken grandão com luz esverdeada. Toda vez que penso naquele aparelho, invariavelmente me vem à tona os nomes de ídolos da minha infância, não os jogadores, mas os radialistas: Jorge Curi, Waldyr Amaral, João Saldanha, Mário Vianna, Kleber Leite e Loureiro Neto. Era como se eu os escutasse todo dia e ficasse o tempo todo esperando: lá vem o Fluminense. Durante o jogo, minha mãe fez o delicioso hambúrguer. 

Curiosamente não lembro da partida, pois geralmente guardo tudo. Não eram tempos fáceis, longe disso, mas aquela noite do pneuzinho foi muito legal, como a de uma criança feliz. Não lembro do jogo, mas o Fluminense era inesquecível: Wendell, Renato, Miranda, Tadeu, Moisés, Edinho, Carlinhos, Rubens Galaxe, Pintinho, Cléber, Mário, Cristovão, Toinzinho, Carlos Roberto - que jogava demais -, acho que já tinha Fumanchu e Nunes também. Qualquer partida na rádio era um épico. 

Depois daquele dia, vieram mais de 14 ou 15 mil noites. Em muitas, a vida não teve nada de fácil, mas eu sinto falta daquilo. De ganhar um presentinho do meu pai. De poder brincar no sofá. De tudo aquilo que vivia um garoto pobre à beira-mar em fins dos anos 1970. De lá pra cá, a única coisa que não se alterou foi essa coisa do Fluminense, que veio sempre comigo e que aumentou quando passei a escrever livros sobre o clube. Não sou exatamente um saudosista, as coisas precisam passar, mas o que me traz aquele tempo com tanta força é o maior tesouro que uma criança pode ter: futuro. As crianças, nem todas - e isso é muito doloroso -, têm o futuro pela frente. Era o que eu tinha. 

Muitos anos depois, escrevi sobre Saldanha e Edson Mauro, fiquei amigo do Mazella, entrevistei o Garotinho e fiz alguns programas de TV com ele, que honra. Também fiquei amigo do Vinicio Gama, que é sensacional e cujo trabalho me lembra o de Jairo de Souza. 

São quatro da manhã. Eu queria aquele hambúrguer, queria meus pais, queria Copacabana e também aquele Fluminense que eu vivi. Tudo está longe, mas o Flu continua por aqui. Hoje tem Maracanã cheio, é decisão de vaga.

Um hambúrguer da mãe, a preocupação com a aula, o Telefunken. O Fluminense, rapaz. Renato, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos. Um pneuzinho. Um garoto brincando e contando as horas no mundo.

Monday, June 26, 2023

dia útil

As pessoas vêm e vão pelos ônibus e trens da Central. As pessoas com sorte têm emprego e fazem jus a almoçar um pacote de biscoitos baratos às 17 horas, quando se amontoam para volta. Lembrem-se sempre: gare é uma coisa, linha 2 do metrô é outra coisa, linha 1 do metrô é outra outra coisa.

Notícias populares na televisão: um bairro da Região Metropolitana onde as pessoas são assaltadas diariamente a qualquer hora do dia. Qualquer hora do dia. É duro. 

Está frio. Vai chover. Vai ter sofrimento. Quando não tem? Não dá pra lavar roupa, não dá pra pagar conta, não dá pra respirar direito

Invasão de terreno na Mata Atlântica. 

Parece incrível mas, por volta de sete e meia da manhã, os passageiros parados nos pontos dos ônibus precisam ficar espertos. Na troca de guarda da Polícia, as ruas então largadas e os assaltantes aproveitam para atacar. Senhor! 

Está frio. Tem um restinho de sol no fim da linha do céu. 

No Centro do Rio, ao mesmo tempo em que as pessoas mais sofridas se amontoam debaixo das marquises, não há uma única rua onde não prevaleçam cartazes onde se lê "Aluga-se" ou "Vende -se". Cadê o dinheiro? A conclusão é inevitável, embora pouco se diga a respeito: a minoria com poder econômico prevalece sobre a maioria que precisa de emprego, enquanto uma parcela da população não tem utilidade econômica para o poder e deve ser dizimada aos poucos, com a crueldade da necropolítica. Depois de anos sem renda, sem casa, comendo lixo, a parcela esmagada pode se decompor sem paz e com total desinteresse das classes dominantes. É tão óbvio que surpreende quando alguém não enxerga o processo. 

Os shopping centers continuam vazios, mas ninguém liga. Não estão ali para encher, mas sim para outras funções. O trânsito ficou mais tranquilo, não pelo reordenamento da cidade, mas sim pela falta de dinheiro para o combustível. O transporte de massa é um dos maiores instrumentos de humilhação popular. As pessoas são tratadas da pior maneira possível. 

O Centro vai ser salvo por políticas de ocupação? Ou seriam na verdade de gentrificação, empurrando os habitantes cada vez mais para a zona suburbana?

Os bancos estão vazios. A minoria opera pelo celular, a maioria não tem nada a fazer ali. 

A cada dia que passa, a cidade se volta cada vez mais para uma elite e despreza o resto. Não é preciso dizer que os mais pobres devem desaparecer, basta apenas deixar que o processo de gentrificação aja silenciosamente. As boas campanhas de marketing sugerem que o futebol e o carnaval sejam elementos de inclusão popular, mas todos sabemos quem é que vai para os camarotes e quem vai vender balas na Praça Onze. 

Dia útil, vidas tão desprezadas, mas boa parte da gente não está nem aí. Afinal, Deus perdoa. 

@pauloandel

Sunday, June 25, 2023

uma breve história sobre futebol

Há quem diga que o futebol é bobagem. Santa insensibilidade: se não fosse o futebol, o mundo seria muito pior porque, para centenas de milhões de pessoas, ele é a única chance de alegria em meio a um monte de ódio, opressão e covardia. Hoje à tarde, conversando com Raul, lembramos que o velho Maracanã era o único espaço de real convivência democrática da cidade entre ricos e pobres, abraçados nos gols e chorosos nas derrotas. Em muito menor escala, eu só consegui viver o mesmo no grupo de escoteiros: todos acampávamos com ou sem dinheiro, fazíamos vaquinha, apertávamos a comida, o ônibus mais barato. No grupo éramos uns setenta; no Maracanã, cem mil. Quantas vezes o futebol me salvou? Não sei dizer. Quando meu pai chegava derrotado e violento por causa da bebida, eu corria para o 434, ia para a geral e chorava vendo um jogo. Noutras vezes, eu ficava no corredor da arquibancada olhando a UERJ e sonhando em estudar lá. Noutras vezes eu ia porque era o único lugar em que, tão solitário, eu não me sentia sozinho. Foi assim muitas vezes. Sem o futebol, a depressão teria me vencido, eu teria executado o suicídio que iniciei e teria sido um desperdício, porque escrevi muitas coisas legais a seguir, o que eu não faria morto por motivos óbvios. O futebol me deu a ilusão de um monte de amigos juntos, caso da arquibancada; me deu sonhos em jogos e lances inesquecíveis; preparou meu espírito para saber encarar as derrotas. O futebol me deu muitos colegas, com quem interagi e trabalhei muitas vezes. Por exemplo, nesse domingo há 28 anos o meu time ganhou um dos maiores jogos de todos os tempos, com um gol de barriga. Naquele ano quase tudo deu errado pra mim, mas o campeonato valeu muito a pena. Muitos anos depois, foi o futebol que permitiu minha estreia em livro e, por gratidão, escrevi um monte de livros sobre o tema, vários ainda inéditos. Por causa do futebol vivi admirações, paixões e conheci minha esposa. Também conheci pessoas do Brasil inteiro, com quem converso sempre que posso - algumas colaboram com o meu site. O futebol só não me ofereceu mais abraços do que minha mãe. Você conhece ou segue um artista, acaba gostando mais dele quando é um entusiasta do futebol. Ele me faz esquecer as dores no corpo, a minha tragédia pessoal, a melancolia cotidiana. Por uma hora e meia, mesmo que o jogo não seja bom eu tenho meu pequenino momento de felicidade. Tanto faz se é uma partida importante ou esdrúxula - o jogo começa, eu volto a ter dez anos de idade e meu olhar persegue a bolinha na tela da televisão. Ah, se não fosse o futebol, como eu teria conversado com a Bibi Ferreira, o Gilberto Gil e a Letícia Spiller? E a Maria Bethânia? E o Italo Rossi? E como eu ia suportar o mundo agora, que me humilha todo dia enquanto sinto dores pelo corpo e choro por tanta gente humilhada feito eu? É domingo à noite, tudo parece perdido, tenho vontade de desistir mas penso na terça-feira, tudo pode ser diferente e surgir pelo menos uma luzinha no fim do túnel. Pode ser que eu não tenha um único amigo, pode ser que eu não consiga vender e está tudo perdido, mas a terça-feira me serve de esperança. Vou pensar no jogo, vou conversar com colegas para chegar logo o horário da partida. Agora é uma noite melancólica como todas de domingo, onde esperamos ótimas semanas que nunca, mas nunca chegam - ao menos para mim -, só que eu carrego comigo o futebol, a minha esmolinha, os meus botões que minha mãe comprou com tanto sacrifício, as histórias que vi e escrevi, as histórias que ainda preciso contar quando era garoto e, na Copacabana de orla escura, chutava a bola na areia com os colegas mesmo sem vê-la direito, nem o goleiro e o gol - assim como só nos resta viver, nos campos da praia só nos restava jogar, pouco importando se a bola iria para a direção correta, ou se um gomo da bola estivesse soltando. Aqui falo de quarenta ou quarenta e cinco anos atrás, que foram há um susto porque tudo é brevidade, mas a bola na praia, na vila, no playground do Gordinho e mesmo no Maracanã - meu pai me levou para ver não apenas o Fluminense, mas o America, o Bangu e até o Campo Grande, todos contra o Flamengo - eram tudo uma coisa só: um pequeno suspiro de felicidade. 

Friday, June 23, 2023

cenas do centro do rio

Saí do trabalho com Jocemar e caminhamos pelo que sobrou da Rua da Carioca. Breu, silêncios, portas fechadas. Onde está o Bar Luiz? E a Guitarra de Prata. O Cine Íris sobrevive com seu nicho de fanáticos pela sexualidade, é um zum-zum-zum da transa e as pessoas são felizes, pouco importando se de maneira efêmera ou permanente. 

Nossos passos são rápidos e logo estamos no mijódromo, mistura de grade e canto que fica bem no começo da Carioca, perto da loja de malas e a outra, de facas e canivetes. O odor de urina é de matar. A cidade nem liga para a pressão de seus cariocas, apertados por natureza:  muitos acham que só pessoas em situação de miséria precisam de banheiro público. Todo mundo deveria urinar em paz, ora. 

O Largo da Carioca, que costumava ter multidões às seis da tarde, está frio e esvaziado. O Rio, que já vinha sofrendo desde o golpe de 2016, foi à lona com a pandemia e nunca mais se recuperou. São mais de 10.000 unidades fechadas, salas e lojas, um corte de 80.000 pessoas. Não há rua em que não se leia uma placa de "aluga-se" ou "vende-se". Ninguém se importa. 

O que nos resta é espiar livros e discos na banca do Olivar. Fica num dos pontos mais privilegiados do Rio, em frente à. Estação Carioca do metrô. Você pode achar belas oportunidades lá por dois reais cada: Jamiroquai, Altamiro Carrilho, Heraldo do Monte, Rubem Braga, Carlinhos Oliveira. Olivar precisa comprar 500 livros por dia para garantir o giro. Dia desses um cliente quase infartou ao encontrar um cd de Fela Kuti.

Jocemar vai para Niterói, eu preciso jogar na loteria porque é meu único antídoto contra o suicídio. Minha saída é o VLT Central, passando pela Visconde de Inhaúma - a casa lotérica de lá fica aberta até às 19 horas. Chego com folga, sou bem atendido pela bela caixa, faço a fezinha da minha turma e decido dar um pulo rápido no Paladino, para espairecer por alguns minutos. Sou cliente há mais de 20 anos e o único da minha antiga turma a frequentar. A visita foi para não perder a viagem, já que almocei tarde. Assim, vale conferir uns bolinhos de bacalhau com soda limonada. 

Os tempos mudaram para melhor no Paladino. Antigamente quase não se via mulheres no salão, mas agora elas dominam a cena. Riem, conversam, estão livres. E eu, tão sozinho, converso com a minha amada pelo Whatsapp - ela já está a caminho de casa, a 50 quilômetros daqui. Sou a única pessoa sozinha numa mesa, mas isso me faz bem: antes só do que mal acompanhado. Só. Não por muito tempo, apenas o suficiente para rangar os bolinhos de bacalhau e tirar fotos: o CD de Altamiro Carrilho, gênio da flauta brasileira, ou de Bill Evans, monstro sagrado do jazz. Ficar sozinho tem suas vantagens: as conversas paralelas podem ser interessantes, escutar outras histórias, outros personagens desconhecidos. E no Paladino com mesas 100% femininas, o que não falta é personagem para todo lado, enquanto respondo Marina e vejo recados no WhatsApp, tudo ao mesmo tempo com a pimenta e o azeite nos deliciosos bolinhos de bacalhau. É sexta, é o fim da semana, é o descanso e recolhimento, mas também medo dos problemas, que não são poucos. 

Meia hora depois, me despeço do Paladino lotado e vou para a estação do VLT. Um rapaz em dificuldades pede uns trocados, eu só tenho uma única nota de dez reais e dou, ele agradece aos céus e me sinto um pobre diabo por não poder ajudar ninguém direito - eu me sinto muito humilhado há muitos anos - eu sou um popular de bermuda e chinelos gastos, falando para ninguém -, ele segue feliz pela penumbra, eu espero o trenzinho e cai a noite no coração do Centro, a metros da Rio Branco, a grande avenida onde o que mais se lê é "aluga-se!" por todo lado, em vão. Eu carrego comigo Bill Evans e Altamiro Carrilho, a noite carioca tem um quê de jazz e choro, alguma melancolia - por ali, logo serão dezenas de pessoas em situação de rua. Por um instante me lembro de um grande show de Altamiro com João Donato no Teatro João Caetano, vi no domingo de manhã, faz muito tempo. 

Aluga-se, aluga-se, vende-se. Tão difícil quanto ver os anúncios nas janelas e portas da Rio Branco é acreditar que, um dia, aqueles espaços voltem a ser ocupados. O futuro trouxe as compras delivery, as pessoas saem cada vez menos de casa, muita gente não tem um tostão, então como o capitalismo dominante vai funcionar? Menos mal que o trenzinho passa na esquina com a Presidente Vargas e dali se pode ver toda a grandiosidade da cidade, que tudo prometia mas não tem cumprido. 

[Num segundo o noroeste breve remete aos garotos na marquise que um dia foram vítimas da Chacina da Candelária.

DESCENDO a Rio Branco, a rua está escura, a noite já está presente, alguns transeuntes vêm e vão enquanto poucos letreiros acesos chamam atenção. É sempre legal ver a fachada do Edifício Edison Passos, Clube de Engenharia, quase na esquina com a Sete de Setembro - tem uma grande placa de cimento em curva. Uma quadra depois, o deserto discreto do Largo da Carioca abriga os grandes sanduíches do Bob's, o novo estilo das lojas do Edifício Avenida Central - muita alimentação, nenhuma livraria. E grandes camelôs de livros, discos e chocolates, todos perto do Olivar. Perto da entrada do metrô Carioca, uma grande movimentação lembra até o Rio de antigamente. 

Pensei em tomar um sundae de morango no Santos Dumont, aproveitando o percurso do VLT, mas eu já carregava comigo um bolinho de pote que comprei com a Carla, na Rua dos Inválidos, então acabei desistindo da operação. O aeroporto é sempre um bom lugar para lanchar. Pena que não tenha livros e discos. Então salto na Cinelândia, o trenzinho fica deserto e a velha praça dos grandes cinemas do passado só tem salvação nas luzes do Amarelinho - o Verdinho acabou, o McDonald's não empolga e a luz da região está muito escassa. 

Caminho para o ponto regulador do ônibus 247. Logo aparece um, guiado por uma motorista loura e isso é uma vitória sobre preconceitos históricos. Somos quatro ou cinco passageiros na fila de embarque. Outro dia mesmo, éramos duas filas de cinquenta pessoas com três ônibus estacionados ali, vigiados do alto pelo charmoso relógio do Edifício Mesbla - agora, Lojas Americanas praticamente fechadas. 

Rapidamente embarcamos, a motorista desce para comprar um saco de pipocas e, antes de sair, conversa com a vendedora. Um passageiro demonstra incômodo com a conversa, está apressado. Ele nem percebe a profundidade do que ela diz: volta e meia, paga do próprio bolso passagens para pessoas carentes indo a hospitais e delegacias. Nesse mundo de gente tão lutadora e pobre, só quem entende a dor do outro é capaz de ajudar. Enfim, o ônibus arranca e para do outro lado do Passeio Público, onde quatro ou cinco garotos estudantes, espertos, sentam juntos e começam a cantar funks populares com excelente afinação, bem na porta de um dos palácios da música brasileira - a Sala Cecília Meirelles, onde já vi grandiosos shows e me arrependo de não ter ido a Chucho Valdés & Gonzalo Rubalcaba, pois tinha o ingresso mas fiquei chateado com minha demissão do emprego. Uma pena. 

A loura dirige bem, o 247 passa rápido pela boemia da Lapa, ainda está cedo e em poucos minutos é minha vez de saltar, no perturbador edifício do antigo IML. Eu queria parabenizar a motorista e lhe dizer de sua boa condução, mas ela tem pressa no trabalho e os poucos passageiros querem ir embora logo. Então desço os degraus com alguma dificuldade devido a dores no pé, penso que uma palavra mal colocada pode ser interpretada como assédio, me calo e desisto. De longe, agradeço.

A visão tétrica do IML fica para trás. Na farmácia, um velhinho conversa com um atendente na porta. É preocupante que o galeto ao lado esteja fechado numa sexta-feira à noite, espero que não tenha falido. 

Em novo corte a noroeste, pessoas em pleno sofrimento aproveitam a marquise do que sobrou do Bar das Quengas. Pelo menos a padaria do outro lado da rua oferece luzes à esquina. 

@p.r.andel

Monday, June 19, 2023

Uma canção para Tom Waits

Quem tem paz? É difícil demais. Nesta noite gelada, de muito sofrimento no Rio, um cobertor pode salvar uma vida. Um chocolate quente. Um prato de boa sopa. Uma roupa digna. Tudo isso falta e deveria ser indigno achar isso normal, mas muitos o fazem por meio de um procurador: Deus. Deus quis assim, Deus quer assado. É uma farsa e uma covardia atribuir a Deus a escrotidão dos seres humanos. Mas seguimos assim. Eu, por exemplo, nunca tive paz por mais de uma semana: sempre houve problemas feito cordas em meu pescoço, os mais diversos, então cheguei aqui meio sem planos ou rumo, perdido na multidão, sem pai nem mãe. Além de tudo eu sou vítima da gordofobia, taquepariu: logo eu, que joguei muita bola na praia, que treinei tanto para a São Silvestre na madrugada, fiquei gordo demais. E sempre que posso eu como mesmo, porque já vi muitos sanduíches e salgados na vida que não pude comer, ora por estar duro, ora por precisar economizar, ora para sustentar minha família. Então agora que eu ando no fio da navalha, se puder como bastante. E daí que fiquei gordo? Ninguém precisa gostar de mim, nem do meu corpo: quem fazia isso foi embora ou já morreu! Mas minha barriga não importa, eu quero falar que ainda sonho com uma semana de paz antes de morrer, um mês, já pensou um ano? A paz. Paz. Ter onde morar, ter comida, algumas roupas razoáveis, os livros, os cds, os botões e um smartphone com wi-fi é o que basta. Tanto faz o lugar: eu nunca mais vou voltar para casa como gostaria, qualquer casa serve. Queria paz. Andar na rua e ver as pessoas em paz, com algum conforto. Entrar na fila do restaurante e fazer meu prato em paz. Comer, pagar, caminhar e passear numa tarde de paz. Admirar respeitosamente a beleza de uma garota que passa em paz. Ver lojas abertas com pessoas trabalhando tranquilamente. Carros passando sem se fecharem como se quisessem trocar socos. As calçadas limpas, sem sofrimento debaixo das marquises. As crianças passando tranquilas. A paz é a grande fortuna e não é preciso ser milionário para tê-la, mas é impossível tê-la passando fome, miséria, dor, doença e violência. A paz chama abraços e sorrisos, tudo ao contrário dessa cidade cabisbaixa, cheia de silêncios e desertos urbanos. Não existe paz com abandono. Não existe paz com falsidade. Quem tem paz? É difícil demais. Nesta noite gelada, de muito sofrimento no Rio, a paz é escassa demais. Hoje um homem chorou sua jovem esposa morta pela polícia. Hoje traficantes e milicianos estupraram, agrediram e mataram. Hoje há bêbados e crackers miseráveis esperando a morte chegar nas ruas e ela, tão filhadaput@, demora a vir para que sofram mais. Hoje eu tenho dor e desespero, mas não há nada a ser feito porque todas as poucas pessoas que eram tão minhas estão longe ou completamente mortas, mortas, mesmo que eu pense nelas o tempo inteiro. Então escrevo para aliviar minha dor infinita, para suportar melhor a estadia neste lugar estranho e hostil, enquanto sonho com o impossível: um ano de paz, algo que nunca tive nem nos melhores momentos de minha vida. E quem tem a verdadeira paz? Quem finge tê-la? Quem confunde paz com felicidade? Esta é uma segunda-feira gelada no Rio, uma cidade de silêncios, desertos urbanos, opressão, miséria e crimes pavorosos. Quem será que se preocupa com isso? Ninguém, meu senhor, é cada um por si e Deus está do lado de quem vai vencer. A cidade não tem paz, é que as pessoas não têm paz nem quando na TV Chaka Khan canta Joni Mitchell. Nem Chico Buarque tem paz. O Fluminense não tem paz, senhor. Imagine os humilhados na linha de trem do Jacarezinho. Imagine o breu profundo da Automóvel Clube toda escura, com um camburão nas sombras. Imagine a garotinha procurando comida na lata de lixo. Há paz ou vivemos uma grande farsa protegida pela nossa escrotidão e egoísmo? Isso é voluntarismo, filhadaput@? Não. É dignidade, caráter, amor ao próximo, tudo que é tão desprezado nessa máquina de moer carne chamada sociedade de consumo. Agora vou descansar. Eu não conheço a paz e a espero, nem que seja pelo gracioso beijo da morte. Tudo é inútil. 

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*Contém citação de "O senhor da guerra", Renato Russo.

**Literatura não precisa ser autobiografia.

***Em vez de escrever "fique bem" ou "se cuida", é mais útil comprar meu livro novo. 

@p.r.andel

Wednesday, June 14, 2023

a tv tá ligada

mal cochilei e acordo em meio às chamas da minha melancolia. a tv tá ligada e está rolando cássia eller. ela é phoda demais e, desde aquele dia infeliz em 2001, nunca mais morreu. tá sempre viva, navegando pelos nossos ouvidos ou berrando deliciosamente na tela, feito agora. estão vou à geladeira, pego minha lata de fanta maracujá bem gelada, um pacotinho de club social e volto para o quarto perseguir a cassia. rio do dia em que ela morreu de medo de mim, rio do chico rindo quando eu lhe contei que a achava phoda demais - ele é um tremendo cantor. o show já está perto do final e volto 30 anos no tempo, quando a vimos cantando no teatrão da UERJ: reboco, calor e rock n' roll. o xuru foi lá e viu o show conosco, 1992. em 1998 também foi maneiro quando ela tocou na apoteose, abrindo para os rolling Stones - que noite legal - o moraes foi com a gente ao show, epocler também, eu, raul, luiz - nunca mais fomos a um show juntos. ligo o ventilador pra refrescar mas logo o quarto fica gelado - marina ia gostar disso - bem gelado. não refresca nada: como você vai refrescar o desespero? desliga. tudo bem. então pensar de 1998 é lembrar 25 anos atrás. eu tinha um amigo phoda que me traiu e outro que ameaçou de morte - nunca mais vi, melhor assim. o ameaçador era um b0sta, disse que eu ia vender bala na rua e eu ia mesmo, porque todo trabalho honesto vale a pena. era um idiota. dane-se. agora é olhar para a tela do celular até morrer, desmaiar, levantar, sonhar com um novo dia, esperar por um milagre e, apesar de tudo, de todos os fdps, de todos os falsos e traidores, pensar "ainda tem gente maneira por aqui". eu posso estar condenado, mas cabe recurso. meu ombro tá doendo.

Monday, June 12, 2023

não. não quero

não quero influenciar ninguém. 

não tenho seguidores. não sou uma seita.

tenho é pessoas que se identificam com meu trabalho. não.

não quero. não quero. 

não quero viralizar nada. não quero nenhum sucesso. só quero escrever minhas coisas em paz. ter um lugar pra morar. ter comida. camisas, bermudas e um par de chinelos. o óculos eu já tenho. 

só quero um punhado de paz que nunca tive, nem nos momentos mais merecidos, e não quero experimentar a morte para saber o que é a paz. 

só quero os cds e livros e os jogos. alguns shows. algumas conversas. 

só quero um punhado do que sobrou do meu amor, não. 

não quero um milhão de amigos. eu não tenho amigos. os meus amigos estão todos mortos. basta os colegas. 

não quero ter razão, eu não quero ter sentido, eu não quero supremacia. 

eu só quero dormir com alguma paz. 

não quero nem sonhar. viver já basta. quem sabe, cinco anos de vida. como disse aquele infeliz, é melhor viver cinco anos a mil do que mil anos a cinco. 

eu não quero pose nem fama nem luxo. só quero um pôr do sol em arraial ou no imbuí. 

eu não quero ternos, nem gravatas, nem voos de primeira classe. quero é andar de novo pela geral do maracanã. colocar meus chinelos de traves, chutar minha bola de borracha e fingir que sou feliz para sempre. 

eu não quero festa nem bagunça nem luxúria nem esbórnia. tudo isso eu já provei. o que tenho agora é um pouco de desespero, nenhuma saída, um copo de água bem gelada e meu amor escrevendo no WhatsApp. e meu amor numa foto no Instagram. e meu amor tão longe que nem o cemitério sabe dizer. 

eu só quero um pouco de paz. não me interessa a ralé que me boicota - ela não tem como me superar. podem fazer o que fizerem, serão sempre minúsculos diante de escritores de verdade - e eu sou um deles, com frases desconexas, versos tortos e sentidos confusos. se até aqui você sentiu um pouco de free jazz, então captou o meu espírito.

eu só quero honrar minha mãe que, meses antes de sua morte, disse ter orgulho de mim porque eu era bonzinho e fazia o bem. quem deixa a mãe orgulhosa não precisa de fama nem fortuna. eu não preciso. 

eu só quero escapar da morte e não virar mendigo. eu só preciso de uma casinha. eu só preciso de alguma ajuda. se alguém investir no meu trabalho, pode obter um bom lucro. não estou à venda, mas disponível para trabalho.

eu sou um brasileiro de quase 55 anos, que sofre muito porque é pobre e vê muita gente sofrendo muito mais, sem água ao lado de gente com carro importado e smartphone. eu sou um brasileiro, logo sofro. eu sou um comunista de gestos cristãos, e não acredito mais em vários colegas de esquerda que falam uma coisa mas fazem outra, outra. 

eu tenho na verdade oito anos de idade e, com meus olhos infantis, choro pelo mundo que vivo. só o que me salva agora é anastácia cantando forró no programa de rolando boldrim - e ele, mesmo morto, continua um fenômeno da nossa grande arte. 

Sobre Serguei

Estava com minha mãe na porta da famosa loja Gabriel Habib, que ficava no Shopping dos Antiquários quando ele nem tinha esse nome. E estava muito feliz com a possibilidade de ganhar um carrinho de plástico, quem sabe um caminhão. 

Eu gostava muito de andar de mãos dadas com a minha mãe. Aquilo me fazia muito bem, e felizmente durou muito tempo. Bem, prestes a entrar na loja, de repente surgiu um homem gigantesco e veio cumprimentá-la. Os dois se abraçaram e então ele veio falar comigo, mas não entendi bem o que ele disse. Então conversou com minha mãe por alguns instantes e depois nos despedimos. 

Todo mundo era gigantesco para mim. Eu tinha seis para sete anos de idade, era pequenininho. Mas aquele homem era diferente. Primeiro, ele tinha o cabelo enorme e olhos muito, muito claros. Segundo, estava todo vestido de preto. Nunca tinha visto nada parecido. 

Quando entramos na Gabriel Habib, minha mãe disse "Paulo, esse é o Serguei". Que nome! Se não tinha visto nada parecido antes, imagine o nome para quem mal saía do Bairro Peixoto. Mas as garotas de Copacabana nos anos 1960 o adoravam, e minha mãe tinha sido uma delas. Não fosse a bitchness, Serguei poderia ter namorado todas as mulheres que quisesse: era considerado o sujeito mais bonito do bairro. 

Passaram-se vários anos, mudamos de casa mas continuávamos em Copacabana. Àquela altura, eu já era um ouvinte de rádio, caçando sons na Fluminense FM, Antena 1, Cidade e Del Rey, quando o gigantesco homem da porta da Gabriel Habib cantava rock a valer. Com vários anos de carreira, Serguei ainda era cult mas já tinha uma estrada na música, lutando para emplacar com sua Banda Cerebelo.

Outros anos e Serguei arrebentou no Rock in Rio. Finalmente tinha conseguido o palco que tanto almejava, uma pena que a vitória seria efêmera por diversos motivos. Desde então, fazia furor em suas aparições midiáticas, geralmente nos programas de entrevistas de Jô Soares. Louco, divertido, hippie e gente boa, Serguei acabou se transformando mais em uma figuraça do que o artista que poderia ter sido. Isso não o impediu de viver o rock intensamente, é apenas a constatação de que o voo merecia uma altitude maior. 

Um belo dia, dá na TV a notícia de que Serguei estava com problemas de grana. Conversei com um colega meu e me veio à mente a coleção de lembranças, além de minha mãe naturalmente. Pensamos em fazer um livro sobre ele, cedendo-lhe o lucro das vendas. E escrevemos. É uma biografia, com a participação de gente boa falando do que representava o cantor. Mas tudo que cercava Serguei dava problema quando o assunto era lucro e, quando o livro estava prestes a sair, ele adoeceu, a impressão ficou sob demanda e depois ele morreu. De toda forma, ficou um registro bonito. Pelo menos é o que dizem os leitores que postaram suas opiniões no site da Amazon, exceto um que considerou o livro fraco. 

Ah, sim: acabei não ganhando o caminhão naquele dia. Não se pode vencer todas. 


Sunday, June 11, 2023

Tempos da UERJ

Entre 1988 e 1996, vivi mais tempo na UERJ do que em minha casa e meus ambientes de trabalho. Foram anos incríveis, que mudaram minha vida para sempre. Não somente pela minha formação acadêmica - até hoje tento entender como consegui aprender aquilo -, mas pela formação de vida, de cidadão, de politização, de tudo. 

Na UERJ, você vive o conceito de universidade como nunca: está na Matemática, sobe uma rampa e lancha com os futuros advogados; desce outra e debate com os futuros engenheiros. Entra no elevador e encontra o camarada da História, a gata da Educação Física, a gataça da Psicologia, os caras maneiros da Física. É tudo junto e misturado. Nos tempos das Olimpíadas era um barato total. 

Num segundo, foi lá que conheci direito David Lynch, Hector Babenco, Tunga, Hemingway, João Antônio, Gerald Thomas, Plínio Marcos, João do Rio, Alan Parker, Tom Waits, Nick Cave, Jack Kerouac, Neil Young, Leonard Cohen, Basquiat e todo o jazz. Sentado no banco da concha, vi Paulinho da Viola, Victor Biglione, Gilberto Gil, Ed Motta, a imortal Cássia Eller. Assisti "Veludo Azul" e "Ironweed". Dei beijos também, faz parte do jogo. 

No Teatrão, ainda inacabado, aplaudi a Cássia também (dois shows dela!), o Ney Matogrosso, a Leila Pinheiro (quase compramos um buquê de flores pra ela, mas as garotas do CA não se conformaram e desistimos), Fernanda Abreu, Vinícius Cantuária, Raphael Rabello e um certo Tom Jobim. 

No auditório, fiquei cara a cara com Luiz Carlos Prestes. Só. 

A proximidade da UERJ me levou aos cinemas da Tijuca, ao Café Palheta (onde celebrei minha colação de grau com a Diniz e a fantástica Conceição), às ruas e aquilo se multiplicou pelo Grajaú e Vila Isabel. Atravessei tardes e noites em suas calçadas. Virei freguês do Capelinha, outrora frequentado por um certo Noel Rosa. 

Meu amor mora ao lado: o Maracanã, aquele velho Maracanã de gente simples e jogos imortais. Descer o elevador com caderno e prancheta, atravessar a rua, comprar o ingresso e entrar no mundo dos sonhos. 

Eu era um garoto pobre e desesperado, queria estudar e conseguir um emprego para ajudar minha família. O governo fazia de tudo para não passar os recursos para a UERJ. Sabotavam tudo. Ficamos nervosos, fomos à Alerj e rolaram as pedras.

Saí do pavilhão como um profissional formado e um jovem homem muito melhor do que entrei. Nunca fui doutrinado por ninguém e nem precisava: a política eu aprendi em casa. 

Um dia tive que sair, mas a UERJ nunca mais saiu de mim e ela está nos meus atos, falas e textos. Ela vive. Todo dia penso em alguma coisa que tem a ver com ela. 

Naquele prédio, conheci jovens homens e mulheres da pesada que carrego comigo até hoje. Vivi situações hilárias e dramas. Aprendi coisas demais. Não saí apenas como um estatístico, mas também como um escritor a vingar mais tarde. 

Talvez aquele tempo seja o melhor livro que ainda não escrevi. 

Friday, June 09, 2023

Vinte metros

Eu tô numa cadeira confortável dentro da famosa Leiteria Mineira, bem no coração da cidade, em frente à estação Carioca do metrô. Hoje é sexta-feira depois do Corpus Christi, tudo está ainda mais esvaziado no Centro porque a Alerj, claro, está fechada - e com ela tem um movimento que lota a Mineira nos almoços. Vim tomar um café da manhã para aguentar o tranco do trabalho: misto quente no pão Petrópolis e Toddy gelado. 

Eu queria falar várias coisas bem legais, mas a verdade é que eu tô bem fudido e triste com um milhão de coisas. A minha pandemia ainda não acabou: continuo isolado do mundo, com trabalho precarizado e com outras bombas prestes a estourar bem no meio da minha cara, enquanto luto há alguns anos contra um novo ímpeto suicida - o que só não aconteceu devido ao meu transtorno mental, porque se eu fosse perfeitamente são, já teria repetido há muito tempo. Mas aqui, na Mineira, eu sou o cliente de sempre e tento me acalmar com um lanche. Não tem quase ninguém no salão, exceto um casal tomando café.

Então resolvo mandar uma mensagem para meu amigo Eric com uma foto da porta da Leiteria, onde normalmente as pessoas formam um caldeirão humano em dias normais, mas hoje não há ninguém. Não, não é verdade, há sim, mas só percebo depois de enviar a foto. No cantinho direito do campo de visão, a uns vinte metros da porta há um símbolo de tudo aquilo que deveríamos lutar todos os dias para corrigir: o sofrimento silencioso de um jovem homem negro, sentado no chão, com o ar tão cansado que parece não ter dormido - e se ele for uma pessoa em situação de rua, é bem possível que não tenha dormido mesmo, muitas vezes por medo de ser incendiado, estuprado ou assassinado. 

Estamos nós dois a vinte metros de distância. O que nos separa é uma porta de vidro. Para ele, eu talvez seja um esquisito burguês gordo, de roupas simplórias demais para estar naquele restaurante tradicional. Nunca vai imaginar o que estou passando, mas eu sei exatamente o sofrimento que ele passa só de vê-lo e isso me rói. Está tudo errado. Num mundo normal, ele estaria comendo um misto quente comigo. Nós vivemos a anormalidade, a indiferença, a escrotidão e fingimos que tudo é normal, mas é exatamente o contrário.

Como o misto devagar, olho para o rapaz, ele está extenuado. Não são onze da manhã. Aquele sofrimento vem de ontem, ou de muito tempo atrás. Num instante, alguém para para falar com ele. Parece um entregador. Será que são amigos? Bebo Toddy, lembro da minha mãe, fico ainda mais sufocado, mas a chance de ter uma refeição deliciosa é uma dádiva neste mundo. Então paro para ouvir dois áudios típicos do descaso, onde tudo se resolve pelo WhatsApp e, prestando atenção na grande fachada de vidro da Leiteria Mineira, ela parece uma grande televisão, a TV da vida real onde no cantinho direito da tela o Brasil está estampado por um jovem homem negro extenuado por algum sofrimento - ou todos. 

Peço a conta, pago, meu garçom querido está com uma tremedeira na mão acima da média, ainda conversamos um pouco antes de eu me levantar. Nem reparei que o casal já tinha ido embora. Vou falar com o rapaz, oferecer alguma ajuda, algum dinheiro, o pouco que tenho, ao contrário de todos os filhos da puta que se dizem meus amigos mas ficam em silêncio diante da minha dor - ou fingem que não sabem de nada. Pobres dos que acreditam no inferno, pois terão muito a pagar. Só preciso romper a barreira da grande porta de vidro e dos vinte metros para encontrar um amigo que não conheço, mas que não deve ser desprezado porque praticamente toda vida é importante. 

Tchau, pessoal, uma ótima sexta. Abro a porta e rompo a barreira. Restam apenas dez metros e um vazio: o jovem foi embora para sofrer noutro lugar. Desapareceu. Ou será que sequer existiu além do meu delírio? Não importa: todas as grandes esquinas do Centro têm jovens homens e mulheres negras, quando não crianças, vivendo em berço esplêndido de sofrimento mas, ainda assim, há quem insista em negar o racismo no país.

O vazio é inevitável. Eu não estendi a mão para alguém que precisava. Não deu tempo. Carrego mais essa dor. Agora é hora de ir para o trabalho, responder as mensagens que importam, talvez ouvir música, ocupar a cabeça com ideias, lutar contra a morte, quem sabe fazer uma fezinha na Loteria e até fingir que terei uma noite de paz, escrevendo, sonhando acordado ou estando longe demais daqui. 

@p.r.andel 

Monday, June 05, 2023

Tempo

Quando volto para meu bairro natal, tudo é familiar mesmo que muitas mudanças tenham ocorrido. 

Eu vejo as lojas que faliram, os personagens locais há muito mortos, os carros que viraram ferro-velho. E lembro das conversas de rua, das jovens meninas agora tão senhoras.

E procuro pelos amigos. Os colegas do futebol. Os escoteiros. A rapaziada do bar. As lojas de discos. Os colégios. Os famosos mendigos. Tudo se foi, embora pareça cedo demais. 

A praia, não. Ela continua onde sempre esteve. Se as pessoas ficaram mais violentas, a natureza não tem culpa. 

Quando ando pelas ruas de meu bairro natal, procuro um passado que já não existe a não ser nas minhas lembranças - e elas são muitas, muitas, boas e más, às vezes felizes ou muito tristes, tristes demais. De toda forma, sempre volto: é melhor até viver grandes derrotas do que empates sem emoção. 

Meu bairro era minha casa. Me expulsaram de lá injustamente. Sempre volto como um visitante, um turista, alguém de fora indevidamente. Cumpro uma pena: sou um estrangeiro em minha própria terra. Então procuro e procuro, é meu último refúgio. Vivo e revivo os escombros de minha memória. 

Sunday, June 04, 2023

O delicado som do trovão

Tenho tantos álbuns de tantos artistas que fico tentando entender por que só comprei este hoje. Sou um fã da banda desde sempre. 

Talvez tenha sido porque, quando pude colecionar CDs, "Delicate" não tenha sido lançado em massa. 

Ou porque o disco me leva a caminhos muito poderosos. Ele era a trilha sonora da casa de Fred, que foi uma das minhas faculdades. Uma experiência tão marcante para mim que escrevi um livro inteiro a respeito, mas desisti de lançá-lo porque não o considerei à altura da minha capacidade e nem do velho apartamento que abraçou tantas e tantas histórias nossas. 

Futebol, televisão, livros, discos, shows, plastimodelismo, revistas Playboy, jogo de botão, acampamentos escoteiros, discotecas, risos, lágrimas, conversas, amores, decepções, ódios, vinho, cocaína, cigarros, Coca-Cola, pasta Alhouette de ervas finas, LSD, gatas enlouquecidas, gatas do metal, desfiles de escolas de samba, filmes alternativos. No meio disso tudo, meus amigos. Todos nós encarando o que era ser jovem no meio dos anos 1980, saindo da ditadura, não achando nenhum sinal de emprego, não tendo um tostão e tentando sobreviver. 

Fred não gostava de sair. A casa ficava livre. Sua mãe trabalhava de meio dia à meia noite. Íamos para lá todo dia. 

O álbum é a retomada mundial do Pink Floyd, já sem Roger Waters. Fizeram o show em Veneza que literalmente quebrou tudo. A guitarra de David Gilmour estava condenada à eternidade. E tinha a maravilhosa Rachel Fury, a mais gata e enigmática vocalista de apoio da história do rock. 

Gilmour solava e dávamos as cartas do mau-mau na mesa da sala. Praticamente todo dia. Chegava o Luiz, aumentavam as gargalhadas e as tensões. O pó rolava. Eu não gostava porque via tristeza nos meus amigos. Fred não ficava bem, Luiz também não. Depois descíamos para comprar o lanche na padaria. 

Muitos anos depois, o Pink Floyd tocou ao vivo uma última vez, no Live 8 de 2005. Vi na TV, passei o dia em frente à tela, foi meu recorde. Fred estava distante, mas nos reaproximaríamos como nunca em 2007 e 2008, após a morte de meus pais. Parecia um recomeço depois de ficarmos afastados entre 1992 e 2005. Pena que durou pouco: em 2009 ele se foi. 

Olho para a capa do disco e o título parece apropriado demais para aqueles anos incríveis da juventude. Era a leveza do som do trovão. Sozinho, volto no tempo e revejo meus grandes camaradas. Fred e Luiz estão mortos, mas apenas para a burocracia: eles estão por perto, ora rindo, ora brincando, ora recuperando os melhores anos de nossas vidas. 


(2020)

Saturday, June 03, 2023

Estão rolando os dados

Em alguma noite de 1975, minha mãe me chamou para um jogo de dados. A gente morava num prédio baixo da rua Santa Clara, que já não existe mais. 

Fomos para a saleta e preparamos a mesinha de jogo. Uma folha de papel, dois dados e um copinho de couro, que tenho até hoje. Cada um colocava seu dado no copo e jogava. Anotávamos os pontos na folha. Jogando, jogando, jogando. Era muito divertido. Quem ganhava uma rodada, comemorava. Cinco, três, você ganhou. Não lembro o fim da contagem, mas lembro que minha mãe ganhou e ficou contente. Como a conta passou de quinhentos e um dado tem seis pontos no máximo, jogamos pelo menos oitenta e tantas vezes. 

Talvez tenha sido minha experiência com jogos de números, talvez aquilo tenha me marcado para sempre. Era apenas uma brincadeira feliz com minha amada mãe, mas aquela noite me despertou para algo que nunca mais parei de fazer: cálculos. Quase vinte anos depois daquela brincadeira, eu virei um calculista de verdade, com diploma e tudo. No meio do caminho, fiquei 28 anos fazendo contas em escritórios. Faça chuva ou faça sol, contas. Na alegria ou na tristeza, contas. No sufoco desesperador, contas. É engraçado que me conheçam mais como escritor do que calculista - sim, escrevi muita coisa, mas calculei mais ainda. Bom, escrevendo você pode deixar pessoas felizes e até dar autógrafos; as contas nem sempre têm esse poder.

Daqui a algum tempo aquele dia do jogo de dados vai fazer 50 anos. Eu lembro dele, lembro muito agora. Lembro do apartamento, que era bem grande e confortável. Lembro da minha mãe, que faz tanta falta o tempo inteiro de todos os dias, sem alívio. Uma simples brincadeira que, por muitos e muitos anos, determinou os rumos da minha vida. 

Ultimamente tenho me dedicado aos estudos de combinação da Lotofácil. São mais de três milhões de possibilidades, mas sigo tentando. Já foram catorze pontos duas vezes, treze umas dez, doze e onze já perdi a conta. Está batendo na trave. Já, já, a bola vai entrar. Não é só o dinheiro ou a chance de mudar de vida, até mesmo salvá-la, mas a diversão de tentar descobrir a sequência mágica. 

Pouco tempo depois do jogo com minha mãe, a minha vida virou de cabeça pra baixo. Mudamos de casa, eu saí da escola, fiquei sem estudar, voltei pro colégio no ano seguinte e passei de série - estudei por minha conta. Deixei mais de um professor assustado. Eu não fiz a primeira série nem a terceira, e a segunda eu fiz num bimestre só. Da quarta em diante é que a coisa mais ou menos estabilizou. 

Em algum momento de 1988, na faculdade, um professor escreveu no quadro um exercício de probabilidade das faces de um dado. No primeiro momento sorri, mas logo em seguida me veio uma grande emoção ao lembrar do jogo com a mãe, a mesma de agora quando tudo aquilo parece tão longe, mas na verdade é muito presente. 

Logo a seguir, escreveu um grande poeta: "ainda estão rolando os dados, porque o tempo não para". Tome mais trinta e cinco anos e aqui estamos, tentando entender o mundo, buscando esmolas de alegria e tentando respirar. 

Ah, minha mãe.