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Saturday, August 16, 2025

Trechos

I

Faz tempo, tempo demais. Todos os que estavam perto de mim, morreram. Faz cinquenta anos. O meu pai me puxava pela mão, quando subiríamos a escada da estação de trem, acho que em São João de Meriti. Ele tinha uma loja lá. No meio da escada, nos deparamos com uma senhora pedindo esmolas ao lado de sua filha, que era do meu tamanho. Por instantes, cruzamos os olhares. Ela era linda e tinha olhos lindos de azul profundo. Pela primeira vez na vida me dei conta do que era uma garota linda. Mas sua beleza infantil era muito maltratada pela miséria, pela humilhação de estar naquela escada pedindo o que comer. Meu pai não era um senhor, mas um homem de 35 anos, jovem demais. A senhora também devia ter idade semelhante. Aquilo durou uns três ou quatro segundos. Sem saber explicar, eu entendi toda a beleza do olhar daquela menina, mas também senti toda a dor que a acompanhava. Meu pai já tinha sofrido tudo: ficou órfão, foi criado em colégio interno, a irmã foi dada para uma família, ele perdeu o irmão para a ditadura. Estava acostumado a dor. Seguiu subindo e me içou. Fomos para algum lugar que não lembro, eu tinha uns sete anos de idade. Nunca mais me esqueci da beleza sofrida daquela garota, algo tão perturbador que hoje, cinquenta anos depois, ainda é uma lembrança nítida.

II

Eu não lembro do seu nome, apenas do sorriso e isso chega a ser curioso, pois tenho uma memória relativamente privilegiada. E a gente deve ter se visto umas dez vezes, todas na casa do Fred - o mundo inteiro ia pra lá. Não sei porque, ela se irritou comigo por alguma coisa e sempre que me encontrava soltava alguma ironia. Eu devolvia. E a gente se dissipava na algazarra da turma, gente boa e jovem com o mundo pela frente. Um dia eu cheguei mais cedo e ela atendeu a porta. Fez cara de descaso, tudo bem. O Fred estava no banho. Entrei e sentei no sofá. Não sei como, de repente estávamos conversando como nunca fizemos antes, sem nenhuma rusga que nem sabíamos de onde tinha nascido. Eu lembro de seu rosto tão jovem, do sorriso muito jovem com os dentes levemente desalinhados mas harmoniosos, do seu olhar de garotinha à procura dos mistérios. Então eu toquei seu rosto, ela fechou os olhos, o Fred surgiu na sala e disse "Vocês dois, hein?". Não paramos de rir. Era 1988, ainda faltava muito para o século XXI. O Brasil prometia muita coisa, feito uma garota jovem e sorridente em busca do charme do mundo. 

@p.r.andel

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