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Tuesday, March 12, 2024

No que eu estou pensando?

Todo dia, há anos, o Facebook me faz essa pergunta. Eu penso em muitas coisas, eu penso o tempo todo até me cansar. Boa parte do que eu penso não desperta o interesse de ninguém, ou quase ninguém. Eu fico muito tempo sozinho e praticamente só falo com as pessoas in loco na loja. Hoje não fui, só falei pela internet. Meu pé tava doendo demais, ainda está, então precisei faltar ao trabalho. Meu sócio cobriu. Então fiquei em casa, pensei em muitas coisas e por motivo justo algumas me deixam triste demais. Não é drama, mas tristeza mesmo. Engraçado que quando falo dessas coisas muita gente se irrita. Quando falo que estou triste, quem também está mas não quer admitir às vezes se irrita. A gente vive num país estranho: o egoísta não gosta de se reconhecer nem ser reconhecido como egoísta. Isso vale também para o hipócrita e o escr0t0. Falando o que sente, você fragiliza muita gente. Só um verdadeiro amigo respeita a tua verdade, mas eles são tão poucos, poucos... Enfim, o fato é que se você fala o que realmente está sentindo, muita gente se irrita porque está pior do que você, mas jamais admitirá. Sofrem em silêncio.

Monday, March 11, 2024

Vespertina

Era sexta-feira, quase três da tarde. Entrei no VLT com destino à Praça XV. Perto da estação Sete de Setembro, uma mulher começou a falar bem alto. Disse que achou o fiscal bem bonito. Ela tinha a voz de uma senhora, daquelas que chamamos "de pigarro". E falava alto, ninguém reagia. No ponto final saltamos todos, uns a caminho de Niterói, outros para Paquetá e Ilha. Eu fui para a loteria, apenas para tentar escapar da morte. Em certo momento ficamos bem perto, eu e a senhora, e então me dei conta da avaliação equivocada. Na verdade era uma mulher dez ou vinte anos mais jovem do que eu, mas carregando sob os ombros todo o sofrimento do mundo. Amputada completamente do braço esquerdo, carregava uma garrafinha de cachaça na mão direita e sorria com sua boca desdentada. Ao contrário de todos no VLT, ela não tinha um destino: estava apenas de passagem, vagando pelas vias de dor e indiferença. Cinco ou seis segundos depois, já havia desaparecido no horizonte. Uma jovem mulher preta, amputada, alcoólatra talvez por necessidade, vivendo o auge de sua tragédia em meio à mais completa indiferença, enquanto batalhões de estranhos vêm e vão. Num súbito, me bateu uma reflexão: se dependesse de algumas pessoas que conheço, e que incrivelmente dizem ser minhas amigas, se eu fosse a exata versão daquela mulher em chamas de sofrimento, elas não fariam absolutamente nada. Seguiriam indiferentes para seus rumos. São daquelas que não querem se envolver, que se despedem de gente sofrendo dizendo "fique bem" ou "se cuida", expressões clássicas da amizade sob distância regulamentar. Escrotas, enfim. Fui para a loteria tentar escapar da morte e salvar alguns colegas. Não consegui e morri. Como os problemas não param, hoje é dia de tentar a ressurreição antes que todo mundo acorde. É madrugada de segunda-feira. Vem aí uma semana de lutas. O Fluminense perdeu. Veremos novas famílias chorando pelos corpos de seus entes queridos no IML. Garotos esfomeados com suas caixinhas de Mentos tentando vendê-las para transeuntes do Centro. A concentração de renda será cada vez pior. Enquanto isso, aquela jovem mulher negra, curtida pela dor, amputada e sem casa, continuará a vagar sem rumo, às vezes gritando no VLT para que ninguém ouça, fazendo de sua vida trágica uma pequena expressão artística. 

@p.r. andel

Tuesday, March 05, 2024

S2C

Estamos em 2034. Scarlett Siqueira Campos é uma travesti cibernética que passa dias e noites fazendo antropologia de boteco pelas ruas de Copacabana. A Inteligência Artificial abre caminho para novas interações e interpretações dentro do bairro que nunca dorme. 

Pesquisando em antigas casas de saliência de Copacabana, Scarlett tenta mapear sua árvore genealógica mutante, buscando compreender sua criação, como foi concebida e se carrega vestígios humanos alem de sua aparência física. 

Bela, ambígua, multissex e misteriosa, Scarlett transita nas altas rodas de Copacabana, nas baixas, no underground e na segurança. Habitué nas delegacias do bairro, sempre alerta para todas as possibilidades, ela tem muitos amigos nas instituições de Copa. Uma de suas fieira é Lady Miss Kler, uma sagaz policial trans aposentada que agora mora no Riachuelo, mas está sempre presente nos babados de Copacabana, gozando firme seus polpudos proventos previdenciários e outras rendas de negocinhos alternativos.

As águas de março vão trazer novos paradigmas socioculturais para os embates cotidianos do bairro. Scarlett tem a missão de mapear todas as intervenções possíveis na balzaquiana Princesinha do Mar, emitindo relatórios transatlânticos e transcendentais,  encaminhando-os para as autoridades competentes de ocasião. 

@p.r. andel

Lancheira

À época eu não tinha a menor ideia, mas uma das melhores coisas de todos os tempos era pegar a malinha com olho de gato, a lancheira e ir para a escola. 

Infelizmente, ainda é uma experiência pouco comum para a criançada brasileira. Está tudo errado e não terei tempo de ver a correção. 

Lembro perfeitamente da alegria que eu sentia na hora do lanche. Um sanduíche qualquer, um refresco e tudo bem. 

O grande problema era tirar notas altas. Só depois a gente entende o que é a vida.

Monday, March 04, 2024

Bichos

Se eu pudesse voltar no tempo, trabalharia com bichos. Não sei se toparia vê-los sofrer, mas cada vez mais o mundo só faz sentido por causa de crianças e bichos.

Durante certo tempo na infância eu tinha medo de cachorro, o bicho oficial de Copacabana. Eu era pequenininho, estava na praia, um cachorrão grandão veio e me derrubou, pulou em cima de mim. Ele era grandão e fiquei com medo. Isso durou até a adolescência e passou.  Bem antes disso, tinha a Diana, cachorrinha pequinesa da minha mãe que ela deu para uma amiga quando nasci. Toda vez que visitávamos a amiga, a Diana vinha correndo e não saía do pé da minha mãe. Que saudade. 

Tive um amigo de escola que há muito não vejo. Ele tinha vários bichos em casa: passarinho, papagaio, cachorro, gato e jabuti. Ri muito no dia em que o papagaio estava tomando banho de gotinha no tanque de roupas. 

Quando fui escoteiro (há quem diga que ninguém deixa de ser), me deparei com vários bichos. A vaca era sempre a mais legal, às vezes micos, às vezes lagartos ou uma cobra sinistra. A vaca fica na dela, vai lá, muge, volta, faz seu rango natural e anda lentamente. Enfim, era uma vida maravilhosa de garoto, natureza, silêncios, paz. Nunca mais acampei, mas lembro como se fosse ontem. 

Meu ex-vizinho tinha um jabuti e um cachorrão bem grandão que gostava de mim. O jabuti às vezes andava no corredor, era um barato. O cachorrão já latia quando o elevador estava no sétimo andar: ele me reconhecia de longe. 

Outro dia fomos em Paquetá, na Casa de José Bonifácio. Tinha outro jabuti, caminhando numa boa, rangando folhas do chão, arrancando com força a cada bocada. Uma alegria. 

Quando minha mãe deu a Diana, tempos depois morreu um papagaio lá em casa: a funcionária o detestava e o deixou no sol. O coitado morreu estorricado. Minha mãe chorou muito e nunca mais quis ter um bicho de estimação para não sofrer. Tempos antes de sua morte, falávamos de ter um passarinho, mas era muito cruel tê-lo numa gaiola. Ela foi embora e fiquei só para sempre. Aqui em casa é tudo bagunçado, não dá pra ter um cachorro ou um gato, e eu não aguento mais perder ninguém. 

Os cachorros da Kátia, o Antônio e o Cesare, eram sensacionais. Gostavam muito de mim. Convivemos bem entre 2007 e 2010. 

Sendo prático, só preciso do dinheiro que me permita sobreviver nessa terra injusta até a hora da partida. Tirando o aluguel, minha vida é muito barata, não tenho bens, não tenho nada. Mas eu gostaria de ser rico se fosse para também ajudar muita gente, planejar algo. E para ter uma fazenda bem grande, onde pudesse ter meu elefante e meu hipopótamo. Acho os dois muito legais. Gosto de ver no programa de TV a solidariedade dos elefantes. E acho muito maneiro quando limpam a orelha deles com um super cotonete de algodão. Peixe também é muito legal. 

Sei lá, trabalhar num pet shop, ter sido veterinário ou feito Zootecnia. Ou até levar os bichos para dar uma volta. Gosto deles. Gosto muito. Até a aranha do banheiro eu evito incomodar quando ela desce pela teia no frio azulejo branco. E a formiga? Pequenininha da Silva. Ser formiga é muito difícil: você pode ser assassinado o tempo inteiro por qualquer coisa. 

Queria poder cuidar dos bichos. 

Eu seria feliz.

(originalmente publicado em setembro de 2019)

Saudades da graça

Lá pelos tempos de oitenta e nove, coisa de uns dezessete anos, eu era apenas um rapaz latino-americano, sem parentes importantes e nativo da Nova York brasileira, Copacabana. Uma década antes, eu gargalhava sozinho ao ler os textos de Ivan Lessa no então vivo Pasquim, e sentia-me chateado porque nenhum outro amigo sabia sequer do que eu ria com o jornal de “oposição”, assim falavam. Adorava os palavrões, os insultos aos leitores, tudo coisas que eu não tinha a plena noção, assim como a de que Ivan é um gênio e que, se um dia eu aprender a escrever direito, devo tudo a ele, velho Ivan.


Volto aos oitenta, quase noventa. Uma dureza danada, começo de faculdade, pai contra, dificuldades. Houve um dia em que paralisaram a faculdade, voltei para casa, perto de nove da manhã, resolvi caminhar pela beira do mar em dia nublado. Desci a Figueiredo velha de guerra, rumo ao Sumol, esquina com Barata Ribeiro, Varese em frente, lanchódromo do bairro ao lado de próceres como o Gordon e o popular Cervantes. Provavelmente Ferôncio e Luiz estariam jogando bola, Rubinho ao menos. Antes de pedir meu tradicional eggcheeseburger, vi um carro parado, não sei se uma Brasília, daquelas que os Mamonas iriam imortalizar anos depois. Fato era o de ser um carro da antiga. Quando olho para o motorista, me vem uma sonora gargalhada, uma seqüência delas – o interlocutor, melhor, interobservador retrucou-me com risos idem, e não trocamos uma palavra, até que o carro partiu e eu cheguei ao balcão para pedir o sanduíche.

Era Bussunda.

Não se tratava de uma celebridade televisiva, mas já tinha seu fan club. Ano antes, tinham feito um show histórico no Circo Voador, em campanha para o macaco Tião, hóspede do zoológico e candidato informal a prefeito que conseguiu medalha de prata no pleito – Xuru foi ao show e fez campanha para o Macaco Tião; adorava contar que Bussunda tinha sido jurado em um concurso do qual ele, Xuru, tinha participando como...vocalista da Troncomóvel Band. Redator de um programa de tevê que tinha acabado de alcançar índices alarmantes de audiência, a TV Pirata. Engraçadíssimo, pois. Escrevia também numa revista sensacional, a Casseta Popular, que fez – merecidamente - gato e sapato de Collor. Vendiam camisetas com deboche e cartuns marcantes, frases, comprei duas para Alessandra e uma para Klein.

Tempos depois, fizeram outro show hilário no Teatro Ipanema, todos vestidos de Leopardos, Luizinho me chamou para ir. Bussunda, em certo momento, causava alvoroço de risos na platéia – imitava simplesmente Deus numa parte da peça, caminhando por entre os expectadores, com seu sorriso ímpar, sem dizer uma só palavra.

Universidade do Estado, 1991. Show de Oswaldo Montenegro para a TVE, beta-boca com um aluno, OM irou-se, referência ao fato de Bussunda ter comentado no Salão Carioca de Humor, na Santa Úrsula, que o “Museu do Babaca” ia ser inaugurado no Casseta Shopping Show, simpático bar da rua Paulino Fernandes...com um móbile em tamanho natural do trovador citado, na porta.

Com o passar dos tempos, a turba toda se reuniu, a Casseta Popular, o Planeta Diário – maravilhoso, com suas manchetes surreais. Livros, discos, programa em horário nobre, virou indústria das boas. Fiquei sabendo que alguns dos membros da turma foram estagiários do Pasquim – e conseqüentemente, do Ivan, que muito inspira muito do que fizeram de melhor.

Os veteranos da Uerj que divertiram-se a valer nos folguedos e eventos promovidos pelo alto clero estudantil do Instituto de Matemática deve, em algum momento, ter percebido a influência Bussundiana no grupo. Tivemos um grupo de humoristas famoso por lá, hoje finado, chamado Cecrime e que nada tinha a ver com crime, só com gargalhadas.

Não gostei quando Bussunda resolveu distratar o Fluminense em suas crônicas esportivas – ressalte-se, eu e uns dois milhões de torcedores que muito o xingaram. Pediu desculpas: era craque, percebeu que o humor tinha extrapolado a conta. A vida seguiu, sem mágoas. Bem disse Rinus Michels, também desaparecido, que era e é, sempre, somente mais um jogo de futebol. Enquanto isso, os Cassetas fizeram as turbas rirem e rirem.

Vem uma bobagem e splaft! Tira o Bussunda do caminho. Muito antes dos acréscimos do árbitro. Errradamente. Esse negócio do grande palhaço, do humorista, morrer antes da hora, dá um gosto de cabo de guarda-chuva danado. Parece que a festa não vai ter vela soprada porque o aniversariante não veio.

Eu, sabe-se lá porque, recentemente voltei a ver os Cassetas antes do outro programa de terça, que considero muito bom, coisa deste ano. Dia desses, vi um quadro divertido e fiquei recordando, meus flashbacks imaginários na cachola, dos tempos do Casseta Shopping Show. Tempos do Collor, quando achávamos que a coisa ia dar certo, pobres de nós....Tempos da faculdade, que voam ligeiros e não deixam rastros. Tempos da Alessandra e da Klein.

Luizinho foi embora. Xuru, idem. Cecrime, ausente. Bussunda também.

O Sumol já não é mais o mesmo. Não posso ir mais à praia de manhã. Não tem mais nenhum motorista gargalhando na esquina.

Tenho saudades da graça.

(originalmente publicado em julho de 2006)

Sunday, March 03, 2024

3 x 4, LAPA, 5AM

(Até quando esperar?)

Estamos nos últimos minutos do primeiro sábado de março, devidamente esticado para a alvorada de domingo. 

Quatro quintos da multidão já deram o fora, mas os 20% restantes querem mais uma dose, um tapa, um alívio da alma. 

Duas travestis lancham cachorro quente numa barraca bem aos pés dos Arcos da Lapa. 

Jovens multissex dividem mesas nos bares ainda abertos na primeira quadra da Mem de Sá.

Apesar do cuidado sempre necessário, agora há pouquíssimos meliantes na região. É que eles também se cansam e dormem. Alguns fizeram suas férias com o produto predileto: smartphones.

Quase na esquina com a Gomes Freire, um veterano traficante sempre alerta espera pelos últimos clientes, e também tem poucos narcóticos. Com o início do mês, a clientela chegou junto. 

Carros particulares e táxis carregam os lapeiros para seus destinos. A exceção fica por conta da população em situação de rua: estão entregues ao deus dará de sempre. Quase ninguém liga. 

Um transeunte perto do Nova Capela espia suas mensagens de WhatsApp e percebe que só recebeu bobagens, então estica o braço direito e pede um carro amarelinho, louco para se mandar. 

[Onde estão as lindas piranhas que nos fazem sonhar? 

Um garotinho negro, com suas roupas humildes e caixa de engraxate, conta os trocados que levará para casa e então ajudar nas despesas da mãe. Um gesto de honradez vindo de quem deveria ter dias de liberdade e alegria, mas que só tem uma luta gigantesca. 

Na próxima quadra fica o aterrorizante esqueleto do Instituto Médico-Legal. Há um clima sombrio, um cheiro de morte. O poder público não se mexe para mudar o cenário. É sempre assim. Vamos às ruas buscar drogas legais e ilegais para aliviar nosso dia a dia. 

Perto da Cruz Vermelha, uma senhorinha passa com seu cachorro, tentando não atrapalhar o sono desmaiado e sofrido das calçadas.

Agora é domingo. Poucos acordam para as compras de padaria, muitos vão para o sono da madrugada, outros permanecem insones de tanto stress. 

Vai ter clássico no Maracanã, mas virou amistoso para cumprimento de tabela. 

Um amigo será enterrado. 

@p. r. andel

Sunday, February 25, 2024

Lindoya

Nesta madrugada, descobri que a água mineral Lindoya passou a ser engarrafada em 1972. Curioso, porque eu me lembro muitas vezes de meu pai pedi-la em botequins quando parávamos para nos refrescar, justamente em volta de 1973, 74, então ela era uma novidade e eu não sabia. Isso era antes dele ter adoecido com álcool.

Gostei do nome desde que o ouvi pela primeira vez. 

No botequim, a garrafa era de vidro. Bebíamos em copos americanos. 

Naquela época havia poucas lanchonetes. Você ainda encontrava alguns armazéns e também lojas com animais prontos para abate. Coitados. E não há hipocrisia alguma nisso. Não é porque o peixe e o frango são gostosos que vou deixar de ter pena deles. Voltando, também tinha padarias e vários botequins, botecos estilo pé sujo. Hoje eles são cada vez mais raros, substituídos pelos bares gentrificados. 

Em Copacabana eu lanchava no Rick da Figueiredo Magalhães, cujo proprietário era Ricardo Amaral, o rei da noite. O misto quente deles era delicioso, crocante como deve ser. Também lanchava misto quente no Boni's, que continua intocado na esquina de Siqueira Campos com Avenida Copacabana. 

O que fez meu pai sucumbir ao alcoolismo? Fácil: derrocada financeira, desgosto pelo irmão exilado do Brasil, tristeza e problemas psicológicos vindos ainda da infância como órfão de pai e mãe. Agora é fácil entender isso, mas naquela época eu só sofria e ponto. Ainda lembro dele calmo e silencioso com uma garrafa de Lindoya em cima do balcão. Eu bebia também, além de uma Coca Cola que hoje chamam de KS. 

Tudo isso me veio à tona porque acabei de tomar um gole de água e descobri que a garrafa de casa era Lindoya. Cada dia tem uma marca na padaria. Agora as garrafas são recicláveis e quase estouram à toa, de tão fininhas. E fico assustado porque qualquer lembrança já tem quarenta ou cinquenta anos. Tudo bem, a vida é breve e precisamos aceitar o processo.

Oh, Susanna!

Um dos grandes baratos na internet é justamente você conseguir rever pessoas e personalidades que estão sumidas da mídia há certo tempo, gente que você não viu nem ouviu mais.

Por exemplo, um dia desses eu estava passeando pelo Instagram quando me deparei com ninguém menos do que a Susanna Hoffs. Belíssima, sessentona, cantando e postando fotos de seu cotidiano, respondendo aos fãs com toda educação e simpatia. Naturalmente alguém vai perguntar quem é Susanna Hoffs, por motivo justo. Os olhos e ouvidos mais atentos dos anos 1980 vão responder: era a cantora das Bangles, banda de pop que nem era lá essas coisas todas, mas que fez um sucesso enorme para canção “Walk like an egyptian”. E, claro, o grupo tinha quatro integrantes gatas que deixavam os adolescentes em puro êxtase - e Susanna era a referência.

Outro caso: no Facebook, você pode seguir a página de Ferrugem, que não é o sambista tricolor, mas sim o mitológico ator mirim que dominou a TV brasileira nos anos 1970 e 1980. Ferrugem ainda continua em plena atividade em rádio, podcasts etc, embora não esteja na TV aberta com regularidade. 

Enquanto isso, a própria TV tem usado o expediente de resgatar artistas populares que, de alguma forma, já não têm a mesma visibilidade de outrora. É o caso de Serginho Groisman. O apresentador tem investido em programas temáticos nas noites de sábado. A turma da Jovem Guarda, os veteranos do sertanejo, o pessoal da música romântica em inglês. Sábado passado mesmo rolou de Perla a Ednardo, passando por Márcio Greyck, Tony Tornado e Adriana. Silvio Brito incendiou a galera ao vivo e o próprio Tony, aos inacreditáveis 94 anos, fez uma apresentação emocionante de "BR-3”, o clássico que o consagrou instantaneamente no V Festival Internacional da Canção de 1970. 

Quando a gente revê essa turma viva e ativa, um pensamento é inevitável: temos um exército de grandes artistas que não somente precisam ser redescobertos, como também têm pressa porque a ampulheta tem cada vez menos areia desabando. Já escrevi o mesmo aqui sobre o rock internacional. São muitos os septuagenários e octogenários ainda em atividade. Ao mesmo tempo que é maravilhoso ter tanta gente boa, todos sabemos que daqui a algum tempo vai ter uma grande revoada, por que o tempo não para e é inevitável. 

Outra coisa também faz pensar: continuidade. Quem está fazendo a nova grande música popular brasileira? Deve ter muita gente boa nos porões da internet que nunca vimos ou ouvimos falar. Os tempos mudaram, você já não tem mais os grandes festivais, nem a grande consagração popular, o rádio é diferente. Assim, é certo que a nova música brasileira não terá ídolos do mesmo tamanho que ainda temos. Lá fora basta dizer que, nos grandes festivais de rock pelo mundo, quem ainda dá as cartas são as bandas veteranas, chamadas de “rock clássico”, com seus integrantes geralmente acima dos 70 anos. 

Tudo bem. Sem lamentações. Vamos aproveitar. Que seja eterno enquanto dure. Susanna Hoffs ainda é muito gata. 

Wednesday, February 21, 2024

um dia de depressão

Está tudo bem. No seu pequeno mundinho todos estão felizes, até porque eles não se importam com ninguém além de si mesmos. Ninguém tem qualquer sofrimento. A vida até parece uma festa. Será que é isso mesmo? Às nove da manhã? 

Então você olha para o teto e tenta pensar numa saída, mas ela não existe. É seu dia de folga e é como se fosse jogado fora. Você chora, se desespera, sabe que tem problemas praticamente insolúveis, sabe que talvez o melhor seria que tudo acabasse mas você não tem forças nem para cometer suicídio. Enquanto você chora desesperadamente, pessoas que sabem do teu sofrimento mandam mensagens de auto ajuda ou falam de coisas que são inalcançáveis para você. Elas sabem que você está na merda em todos os sentidos, mas o que isso importa para elas? Nada. Absolutamente nada. E você sabe disso. Se você morrer hoje, elas vão colocar carinhas de choro, dizer "meus sentimentos" sem sentimento algum e, se você tiver sorte, alguém cuida do seu enterro. É o máximo.

Você olha para o teto e tenta pensar numa saída, mas ela não existe sem o apoio de terceiros. Alguns deles, quando precisaram, tomaram muito tempo e trabalho teu, mas agora você é simplesmente um pária, um mala que deve ser evitado e silenciado. As mais hipócritas falam até de democracia e inclusão, mas não para o seu caso. Você não tem mais utilidade. 

E quando você olha para o teto, tem a exata noção de que só se salvará por muita sorte, inclusive porque já não tem nenhum amigo, pelo menos vivo, e os espíritos não têm dado conta de te dar a mão. 

Olhe para trás. Quanta coisa foi feita e vivida, mas agora parece tudo em vão, porque você não tem forças para limpar a casa, lavar a roupa, arrumar o caos, sequer pagar as contas, podendo escolher se prefere pular pela janela ou morar na calçada, depois de tanto trabalho e estudo, tanta aplicação, tanta generosidade que não significou nada que não seja derrota. 

O teto. Ele esconde o céu, o infinito. Melhor assim. 

A janela e a cortina fechadas, melhor assim. 

Espie as redes sociais, com seus patetas ditando normas de comportamento. Você precisa ser forte. Ninguém deve saber da tua tristeza ou derrota. Você precisa ser superior e enganar a todos, inclusive a sim mesmo. 

Quando se dá conta, o dia passou, você não almoçou, não tomou os remédios, não se cuidou e talvez este dia a menos seja até alívio. É melhor chorar sozinho do que ouvir idiotices em vão, palavras vazias que muitas vezes são ditas apenas porque o orador quer se sentir bem. Os religiosos de araque dizem que você precisa de socorro espiritual, porque essa linguagem é sempre mais cômoda para eles. Tudo que você queria era uma pequenina casa sem luxo, com uma TV, celular, alguns livros e discos, geladeira e cama. Só. Você queria ver a TV em paz, sem notícias permanentes sobre assassinatos, chacinas e guerras que fazem muita gente sofrer loucamente. Você só queria ir uma vez ou outra ao cinema ou ao museu, ou a algum show barato, algum drinque num bar modesto, mas você não tem nada disso. Duas calças, dois pares de tênis, um chinelo, duas bermudas, camisas. Bastava isso. Ter dois ou três amigos de verdade, amores de verdade, camaradagem e solidariedade de verdade, mas nada disso existe. Uma família? Era boa, mas acabou. Só ficaram as lembranças. 

Abra o WhatsApp. Está tudo bem. Todos estão felizes. Você teve azar: num mundo de hipocrisia, justamente você foi o escolhido para dizer o que realmente sente. 

(continua)




Monday, February 19, 2024

No Leme

(original 05/2020)


O que será que está acontecendo no bairro que nunca dorme? 

[o que foi feito dos moradores do edifício Elmar, demolido nos anos 1980?

A pizzaria Sorrento está fechada para sempre. 

O silêncio do Leme é uma montanha sem sinais aparentes de rajadas de tiros. 

O quartel não mudou: é silencioso pela própria natureza. 

No caminho dos pescadores há uma placa em homenagem ao ator e ex-lutador Ted Boy Marino, que foi morador do bairro por muito tempo. Mais à frente o mar pode ser desafiador e mortífero, tal como numa noite de 1988, quando levou o bailarino Graham Bart para o nunca mais. É preciso ter cuidado com as ondas impetuosas. 

O escritor Valterson Botelho dorme tranquilo em seu apartamento cheio de homenagens ao Fluminense, perto do Sindicato do Chope, vizinho de Nelson Rodrigues Filho, outro baluarte. Telê Santana também morava pelos arredores. Um reduto de tricolores. 

No Sindicato, pouco antes de se tornar uma mega celebridade nacional, Zeca Pagodinho gostava de beber chope garotinho em pé. Numa mesa próxima, jovens ex-alunos da UERJ gostavam de fazer piada pedindo testículos de boi à milanesa, só para verem as reações das respeitáveis mesas vizinhas. 

[Como foi possível o edifício Elmar ter empenado? Agora o supermercado Zona Sul está lá. Que fim levaram os moradores? 

Grandes jogos de futebol de praia: Copaleme, Areia, Embalo, Colorado. Babilônia e Chapéu Mangueira formando craques para o mundo. 

Ali atrás, na Gustavo Sampaio, é fácil ver Jairzinho, seja trazendo o pão ou sorvendo um trago. Tricampeão mundial em 1970, é o único jogador que marcou gols em todas as partidas de uma Copa do Mundo. Nós temos os nossos maiores da Terra, e eles vão à padaria! 

Antes, muitos outros viveram o charme do irmão de Copacabana em seus apartamentos e/ou nas boates locais, nos anos 1950, 1960 e 70: os atores Jardel Filho e Anselmo Duarte, o menestrel Juca Chaves, a Miss Brasil Martha Rocha, as cantoras Marlene e Emilinha Borba, o pintor Candido Portinari, a escritora Clarice Lispector, o showman Chacrinha, o dramaturgo Nelson Rodrigues, o presidente Juscelino Kubitschek, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, a musa Marina Montini, o maestro Egberto Gismonti, o monumental Milton Nascimento, as atrizes Beth Goulart e Rogéria, a multi artista Zezé Motta, a dark singer Waleska. Até Robert de Moto deu as caras por lá, Omar Shariff também. E quem mais poderia definir melhor o cenário do que Elke Maravilha? 

“O Leme é uma cidade pequena dentro de uma cidade grande. Não é um bairro de passagem, tenho vizinhos. Cheguei, gostei e fiquei”.

[Marina Montini, a musa de Di Cavalcanti 

Noites inesquecíveis no Sacha's, Vogue, Fred's, Régine's e outros, muitas vezes registradas pelo colunismo social de Jacintho de Thormes ou Ibrahim Sued. La Fiorentina ainda está firme e forte. O Marius também. O Bar do David no Chapéu Mangueira. 

Quando se chega à esquina da praia com a avenida Princesa Isabel, fica o imponente Hotel Hilton, portal do Leme. Mas não adianta: a sede da mais famosa cascata de fogos do réveillon carioca vai se chamar Meridien para sempre. 

@pauloandel


A jovem que não disse adeus

(original 01/2019)

Por alguns meses de 1973, morei com meus pais em Cascadura. Até hoje sei qual é o prédio e, se não estiver enganado, morei no penúltimo andar, sem elevador e com poucos andares. Estudei no Colégio Pinguinho de Gente, o primeiro em minha vida, ali perto. E foi em Cascadura que, pela primeira vez, me lembro de ter tirado fotos coloridas com minha mãe. No mesmo prédio, minha mãe inventou minha primeira namorada, Ilana. Eu tinha cinco anos de idade...

Eu tinha a Lúcia, que cuidava de mim. Lembro que ela falava pouco e ria bastante, mas envergonhada. Colocava a mão na boca e ria. Acho que tinha vindo de Minas. Naqueles tempos todos fazíamos refeições à mesa juntos. Ela não era uma funcionária, uma babá, mas uma familiar. E minha mãe pensava o mesmo: lembro vagamente de tentar demovê-la de usar o uniforme que a Lúcia fez questão na hora da contratação, sem sucesso. Minha mãe, cuja vida dá um livro dos bons, humilde e sofrida, precisava de uma funcionária mas nem de longe agia como uma patroa: tivemos várias em casa e testemunhei. Mas dela minha mãe gostava demais. 

Certa vez, eu estava triste porque o Multi-Homem tinha sumido. Lúcia havia ido ao mercado e minha mãe estava enlouquecida porque não achava o brinquedo. Meia hora depois, Lúcia volta, minha mãe pede a ela pra achar o desgraçado e a vê quase rindo, mexendo numa latinha de Nescau pequeno, abrindo e... tirando um Multi-Homem recortado de alguma revistinha ou figurinha, que não tinha mais de um centímetro de tamanho. Minha mãe caiu na gargalhada, todo mundo riu e voltei a brincar com meu herói de papel. 

Éramos felizes dentro do possível, eu acho. Meu pai saía bem cedo, só voltava para o jantar. Minha mãe às vezes o ajudava, noutras vezes estava em casa. E Lúcia acompanhava minhas aventuras com o Multi-Homem, o Zé Colmeia, o Fred e outros seres míticos. 

Numa manhã, Lúcia desceu para fazer compras. Já tínhamos tomado café, eu não tinha aula por algum motivo. Minha mãe lhe deu a lista e o dinheiro, ela desceu mas antes fez questão de colocar o uniforme, que a mãe detestava. E desceu. Lá perto, no Largo de Cascadura, tinha algum supermercado. 

O tempo começou a passar, Lúcia não voltava, deu uma, duas, três horas e nada. Minha mãe, bem nervosa, me puxou pela mão e descemos para procurá-la. No caminho, comprou fichas para telefonar no orelhão (só ricos tinham telefone em casa) e pedir socorro a meu pai. Ele largou a loja em Madureira com o sócio e veio. Os dois estavam desesperados e sei porque, apesar da pouca idade, tinha sido a primeira vez que eu os via daquele jeito.  Quando escureceu, eles me deixaram na vizinha, a mãe da Ilana, e foram para a delegacia. Os dois desesperados e tristes. Para piorar, meu pai era fichado como subversivo devido à militância de meu tio, a época exilado em Israel. 

"Minha senhora, como é que eu vou saber de uma empregada que sumiu? Isso é coisa de homem, fugiu de paixão". 

(Uma resposta tão estúpida que tem tudo a ver com o Brasil negacionista).

Quem ia contestar policiais numa delegacia em plena ditadura de Médici?

Voltaram desolados. No dia seguinte, meu pai não foi trabalhar: peregrinou pelo bairro em busca de alguma pista. Ninguém sabia dizer, ninguém viu, ninguém sabia. Eu fiquei triste mas em minha ingenuidade de criança achei que ela logo voltaria. E minha mãe chorava, chorava, aquilo me deixava tão triste quanto agora, quando relembro o acontecimento. Ela desapareceu com a roupa do corpo, deixou suas coisas, documentos, nenhum contato de parentes, nada além de alguém dizer que era de Minas. Nada. Semanas e semanas de perguntas, agonia, eu vendo meus pais sofrerem em vão. 

Meses depois, voltamos para Copacabana. Fui morar na Santa Clara, estudar no Pernalonga (de onde fui convidado a me retirar por "comunismo"). Voltamos a ter funcionárias em casa, mas nunca mais para cuidar de mim. Muitas vezes depois, minha mãe chorou ao recordar a história. Até meu pai, que muitas vezes abafava suas emoções por completo, se emocionava. 

Esta é uma história de 1973. São 46 anos em tese. Meus pais estão mortos. Nunca mais vi Lúcia. Talvez eu seja o único sobrevivente daqueles meses de pequenas felicidades, trabalho, estudo a começar e o mundo pela frente. Ou um mundo interrompido, voluntária ou criminosamente falando, o mais provável. Vivi para contar e chorar disso. 

Já ouviu falar que naquele tempo era bom, não é? 

Mentira escrota. 

Todo mundo da minha infância e juventude sabe de alguém ou ouviu falar de alguém que subitamente desapareceu (foi "desaparecido").

Vejo meus pais chorando de novo. Imaginem a minha dor. Mas amanhã vai ser outro dia.  

Só gostaria que Lúcia soubesse que foi muito importante na minha vida. Ainda me lembro direitinho do Multi-Homem de um centímetro.

Sunday, February 18, 2024

A ruiva da Siqueira Campos

Ela era linda. Volta e meia estava de vestido curto preto, que contrastava com sua pele clara e os cabelos from hell - as mulheres são belas de todos os jeitos, mas as ruivas têm um charme à parte. 

Era batata. Mesmo. Frita. O bar ficava na Siqueira Campos, embaixo da casa de um amigo meu da faculdade, então volta e meia marcávamos lá para comer e beber algo, às vezes voltando da aula. Chamava-se Fry Chicken e, de acordo com o nome, sua especialidade era frango frito - delicioso, aliás. Ótimo atendimento, preço justo. Ali perto ficava o Let It Be, lendário bar de shows da Copacabana mais underground, digamos assim, quase na esquina com a Travessa Santa Margarida. 

Quando o amigo marcava para que eu o esperasse lá, invariavelmente eu chegava e lá estava a ruiva dos sonhos. Isso aconteceu muitas vezes e ela estava sempre sozinha à mesa, algo não tão comum no começo dos anos 1990. 

Ai, minha maldita timidez: às vezes parecia que ela olhava para a gente ou para mim, mas até aí nenhuma surpresa porque o bar estava quase sempre vazio, embora fosse ótimo. Claro que eu jamais iria à sua mesa: perdi a conta das garotas que me beijaram e depois me perguntaram porque eu não tinha tomado a iniciativa. Bom, o que importa é que ela era linda demais, charmosa demais e misteriosa. Vinha, sentava, bebia um pouco, quase não comia. Em algumas ocasiões escutava o walkman - que sons a encantavam? Naquele tempo eu ouvia de tudo, feito hoje: Alice in Chains, Stone Temple Pilots, Tom Jobim, Candeia. 

É, é verdade: ela olhava sim, mas acho que era por curiosidade em saber quem estava na outra mesa. Nunca sorria. O ar severo deixava seu rosto delicado ainda mais belo. Frequentemente parecia escrever coisas. 

Na outra mesa, eu falava bobagens desinteressantes por meses com meu amigo ou ficava mudo, sozinho. Sonhando com a carteira assinada no estágio e o diploma ainda distante - dois anos depois ele veio. 

Depois de umas vinte vezes, o platonismo acabou: parei de frequentar o bar porque me mudei, ele próprio fechou depois de algum tempo - uma tremenda injustiça, porque era ótimo - e ficou por isso mesmo. Anos depois, meu amigo fez chacota: "Lembra daquela gata que ficava te olhando? Agora está na novela". Fez sucesso, ficou mais linda, continua por aí. O tempo só lhe fez bem. 

Oh, bares de Copacabana onde um jovem e desconhecido candidato a cronista admirava uma linda jovem branquinha de cabelos cor de fogo, num vestidinho preto - ou de camiseta branca simples - enquanto ela parecia fitar o horizonte enquanto ouvia sons secretos e escrevia num diário. Era o começo dos anos 1990, onde os jovens de vinte e poucos anos de idade sentiam-se invencíveis, mas na verdade eram mesmo uns românticos enrustidos. 

Se fosse hoje, chamariam a linda jovem ruiva de crush. 

@pauloandel

Originalmente publicado em 2020

Triste fim de Lima Barreto (por Di Cavalcanti)

(compartilhado pelo escritor e poeta Ricardo Soares)


- Lima Barreto, olhe aqui o Di Cavalcante.

Foi assim que o Schettino me levou até o grande romancista do Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Lima Barreto olhou-me com seus olhos mortos e um sorriso de mofa no canto dos lábios:

- Vi os seus Fantoches da Meia-noite, com o prefacinho do Ribeiro do Couto. Agradeço-lhe o exemplar que me deixou.

Estávamos sentados num cafezinho da rua Sachet. Eu me sentia um pouco  contrafeito entre o livreiro e o escritor. Fiquei calado.

Foi Lima Barreto quem resolvera abrir-se a respeito do meu álbum de desenhos que Monteiro Lobato acabava de editar. Para ele, o Lobato demonstrara ter muita coragem, “porque no Brasil essas coisas de livros de luxo não dão resultado, aqui só vinga o futebol.”

Tinha raiva de futebol.

Schettino falou do prefácio de Ribeiro do Couto.

- Está bom o prefácio – disse Lima Barreto com certa secura.

Procurei desviar a conversa para outro assunto. Comecei a falar dos subúrbios cariocas, de meu desejo de fazer desenhos sobre a vida daqueles recantos tão pitorescos. E, através da evocação dos subúrbios , animou-se minha primeira conversa de botequim com Lima Barreto.

Os Fantoches da Meia-noite saíram em fins de 1921. Em fevereiro de 1922 realizou-se a Semana de Arte Moderna. Acredito que meu primeiro encontro com Lima Barreto data de meados de 1922. Foi também nessa época que conheci Capistrano de Abreu, por intermédio de Paulo Prado.

Ano extraordinário aquele, cheio de grandes aventuras! Abandonei São Paulo logo depois da Semana. (...)

Soldado na Vila Militar e morando em Botafogo, eu acordava de madrugada para chegar as seis horas no II Regimento. Era um inferno! E posso dizer, hoje, que era um inferno adorável.

Numa dessas minhas viagens para a Vila Militar, encontrei no trem Lima Barreto, que voltava para casa, cambaleante, sujo, cheirando a cachaça. Meus companheiros, reservistas como eu, olharam com desdém para aquele triste mulato e ficaram surpresos de ver que eu o acolhia com simpatia e mesmo com respeito.

- Quando chegar Engenho de Dentro, avise-me! – disse o boêmio espichando no banco e caindo num torpor barulhento, entre arrotos e uivos.

Queria saltar no Engenho de Dentro para continuar bebendo.

Estava no fim da vida o grande Lima Barreto. Muitas vezes conversei com ele na Livraria Schettino. O livreiro era o seu grande amigo.

Certa manhã, em minha companhia, Schettino abriu a pequenina loja da rua Sachet. E eu vi, espantado, emocionado, com estes olhos que sabem ver , o Lima Barreto emborcado sobre um montão de livros que ele atirara das estantes ao chão. Serviam-lhe de cama e estava roncando.

Schettino olhou com os olhos rasos de água. E eu confesso que, ao recordar aquela cena, me vem um nó na garganta.

O drama da vida de Lima Barreto sempre me comoveu profundamente. As inúmeras vezes que conversei com o grande romancista, não raro em companhia de Enéas Ferraz, Schettino, Agripino Griecco, pude observar que atrás daquele desleixo se escondia alguma coisa de muito puro, nobre, forte. Sua revolta era contra a sordidez e as aparências hipócritas da sociedade, não contra o homem. Para este, ele guardava todas as simpatias, dedicando aos humildes todo o seu amor.

Hoje, Lima Barreto esta ao lado dos nossos mestres do romance: Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Manoel Antônio de Almeida. A nova geração sabe admira-lo. Seus livros são reeditados. Seu nome é lembrado sempre.

Teve um triste fim o grande Lima Barreto. Enéas Ferraz me telefonara.

- Você não vai ao enterro do Lima?

Subi a rua esburacada do subúrbio. Ele morava em Todos os Santos.

No porão da casa, o pai louco gritava. Chovia muito quando saímos com o caixão pesado escorregando de nossas mãos. O vagão mortuário levou-o da estação suburbana ate a Central.

Lembro-me da cara branca de adolescente afoito de Enéas Ferraz a olhar para o caixão do seu ídolo. E me lembro também de dois guardas-civis solenes, um deles irmão do morto, montando guarda ao corpo no vagão sacolejante.

Da Central, num carro de terceira classe, o corpo seguiu ate o cemitério São João Batista. Era pequeno o acompanhamento. No cemitério, entre os amigos humildes do morto, entre os que tinham a cara inchada pelo álcool e cortada pela insônia, vi alguns intelectuais. Felix Pacheco, Olegário Mariano, Agripino Griecco.

A chuva não parava. A terra caia, enlameada, sobre o caixão negro.

Nunca me esquecerei do grande Lima Barreto, que eu conheci já nos seus últimos anos de vida. Lembro-me dele com uma ternura imensa.

Como uma caricatura dolorosa, e como se eu o estivesse vendo, encostado a uma porta modesta de botequim, a sorrir para a imbecilidade anônima dos bem-confortados...

Di Cavalcanti, Folha da Manhã, 27/6/1943

Wednesday, February 14, 2024

Tem, mas acabou

Acabou. 

Acabou a grande festa tão esperada, tão importante para aliviar o nó na garganta de tanta gente. 

Acabou a farra, a rua, a azaração, o da vida nada se leva, a paixão de ocasião, o tesão livre, a cantoria para espantar os males. 

Ainda tem alguns biscuits no final da semana ou sexta-feira, mas acabou. 

Tem, mas acabou. 

Depois dos dias de fantasia, bons até para quem não é da folia e prefere o repouso recluso, a gente para, olha o dia ensolarado mas sabe que acabou. A realidade está de volta, e para 99,999999% das pessoas ela não é nada fácil, muito pelo contrário: é dura, injusta e perversa. 

Para alguns, fica a lembrança de dias de alegria e sonho. Para outros, só o sentimento de felicidade sem maiores recordações. E torcer pela próxima, pela próxima, pela próxima felicidade porque no fim das contas a gente vive assim, adiando o viver para o próximo fim de semana, o próximo feriado, o próximo Carnaval. No mundo moderno, viver é postergar, é escavar Serra Pelada devastada sonhando com uma pepita impossível. 

A gente vive adiando o sonho, as coisas, as realizações, contando muitas vezes só com a sorte que não virá. É uma equação injusta. 

A festa acabou, o ano finalmente começou. E ele não tem o mundo perfeito dos comerciais de TV, a vida perfeita dos perfis nas redes sociais. Pelo contrário: o fim da festa é o infeliz anúncio de que estamos quase todos de volta à merda. Alguns fingem que não estão, mas chega a ser engraçado como tentam disfarçar o indisfarçável - e não é vergonha alguma ser pobre, anônimo e até fracassado profissionalmente porque é o que o grande irmão capital nos impõe, de cima pra baixo. Afortunado é quem consegue escapar dessa máquina de opressão e humilhação.

Vem aí o ano novo, duríssimo para muita gente, talvez o último para muita gente em pleno voo. A gente nunca sabe, mas é sempre amargo se despedir de quem deveria ficar por aqui mais tempo - e ele, tempo, escorre, voa longe, é implacável. Quando olhamos para a mesa, várias  cadeiras ficaram vazias.

Ano tão novo que nem tem mais a velha apuração do Carnaval na Sapucaí. Foi-se o tempo. 

Para quem puder, feliz ano novo. Todos sabemos que não é fácil, mas o jeito é sonhar porque sem sonho tudo fica difícil demais. Sonhar e seguir em frente até onde der. Com menos peso, menos gente falsa e procurando algum mínimo senso gregário, esse nobre elemento tão raro no cotidiano. 

@p.r.andel

Sunday, February 11, 2024

Damo Suzuki, gigante

No final dos anos 1960, o rock da Alemanha começou a se espalhar pelo mundo e a influenciar muitas bandas em diversos países. Nomes como Neu!, Can e Kraftwerk marcaram a história da música popular para sempre.

O Can misturava elementos do jazz de vanguarda com psicodelia e minimalismo. Uma receita única, mas que repercutiu no som de muita gente bamba, como por exemplo David Bowie, Radiohead e Talking Heads. 

Especialmente quando incorporou seu segundo vocalista, o japonês Damo Suzuki, descoberto pelos integrantes originais quando cantava na rua (vivia em comunidade hippie), e convidado a participar do conjunto para uma apresentação no mesmo dia, o Can estraçalhou de vez. Fez três álbuns dos mais importantes do rock, a saber: “Tago Mago” (1971), “Ege Bamyasi” (1972) e “Future Days” (1973). Todos liderados pelo estilo não linear de Damo, cantando em inglês, japonês e uma língua própria, inventada, que casou perfeitamente com a ousadia artística do Can. 

A seguir, Damo deixou o grupo. Iria se tornar Testemunha de Jeová e casar. Afastou-se por bom tempo da música, mas depois retornou o seu trabalho cada vez mais experimental. Quando precisava viajar para se apresentar em outros países, tocava sempre com músicos locais, sem ensaios, no puro feeling. 

Curioso é que, por várias declarações dadas ao longo do tempo, Damo Suzuki parecia não ter ideia da importância que teve para a história da música, ou que talvez não se importasse. Em relação ao próprio Can, disse: “Não sei porque falam tanto disso, foi uma época de minha vida, muito boa, que durou uns seis anos, mas isso é 10% da minha vida, é a menor parte”. Claro que o tempo da produção artística não é necessariamente o tempo cronológico. 

Tive uma experiência ótima com Damo Suzuki há uns 10 anos. Quando ele veio tocar no Brasil se apresentou no Rio de Janeiro, mas perdi a data do show, que foi muito mal noticiado. Indignado, resolvi mandar um e-mail para o cantor, só para dizer de minha frustração por não tê-lo visto. Esperava uma resposta protocolar da assessoria de imprensa, para minha surpresa foi o próprio Damo quem escreveu. Simpaticamente, mas também com certa dose prudente de ceticismo, ele me disse que não sabia quando voltaria ao Brasil, porque dependia de várias coisas, estrutura, calendário para se apresentar em vários lugares e fechar uma agenda, mas agradecia meu contato e interesse. Foi lamentável que eu não pudesse ter ido ao show, fiquei bem triste, mas ao mesmo tempo fui compensado: no mundo das celebridades, que muitas vezes não chega nem perto dos fãs, um dos maiores artistas do meu tempo me responder um e-mail foi gratificante. Um artista de verdade, sem vaidade nem concessões, de espírito livre. 

Damo Suzuki faleceu semana passada discretamente, no sábado de carnaval. Tinha 74 anos e vinha tratando de câncer há tempos. Não deu tempo para o novo show no Rio. 


Thursday, February 08, 2024

Notícias populares 2

A ESCATOLÓGICA GANG DO PIRIRI

RIO DE JANEIRO - No fim da noite de ontem, foi desmantelada e presa uma quadrilha especializada num crime dos mais emporcalhados que se tem notícia na cidade: a famigerada "Gang do Piriri". Policiais da 5a DP no Centro detiveram os nacionais Celso Canário de Mendonça, o "Sujismundo"; Pedro Paulo Garapa, o "Rapinha", e Marcelo Antônio, o "Fiofó", nas imediações do Edifício Riqueza, na Praça Tiradentes, quase na esquina do Teatro Carlos Gomes. 

Não há precedentes no modus operandi da gang apreendida, que focava seus assaltos em senhoras com bolsas, sentadas em lugares públicos em vários pontos da cidade. Um dos criminosos se aproximava da vítima, baixava a calça e simplesmente disparava um jato de diarréia com o próprio ânus. Atônita com a selvageria, a vítima geralmente saía correndo horrorizada, deixando a bolsa defecada para trás. Então, um outro bandido usando luvas plásticas furtava a bolsa fedida. Os meliantes utilizaram esse expediente em diversos bairros do Rio, sempre com êxito até a prisão. 

Em depoimento, um dos bandidos declarou que, para conseguir uma dor de barriga ideal na hora da ação criminosa, quem fosse abordar a bolsa consumia antes uma mistura de churrasquinho de rua, milk shake crocante de famosa lanchonete e conhaque popular. Questionados sobre o absurdo, disseram cinicamente que era uma maneira de praticar os crimes sem qualquer violência física. Celso Canário, o "Sujismundo", considerou normal o tipo de abordagem à base de diarréia, até para evitar maiores desgastes (SIC).

Informou a Rádio Sardinha FM. 

Wednesday, February 07, 2024

Notícias populares 1

RIO DE JANEIRO - Foi preso no fim desta tarde o ex-policial e traficante Márcio Edivanilton Seranha, vulgo Cara de Sagui, no interior de um famoso "Balança Mas Não Cai" no bairro de Copacabana, mais especificamente nos arredores da praça Serzedelo Corrêa, vulgarmente conhecida pelo mau apelido de "praça dos paraíbas". A prisão se deu de maneira um tanto inusitada: Sagui estava numa fila de atendimento sexual típica da localidade, recheada de quitinetes divididos em boxes do sexo, quando começou a discutir com outro cliente na fila, até ameaçá-lo de morte e descobrir que o oponente era um PM, que imediatamente lhe deu voz de prisão. Após certo tumulto,  policiais do bairro foram acionados e a prisão de Sagui acabou efetivada sem maiores delongas. Famoso por sua influência no Morro da Hemorróida, Sagui é uma espécie de todo poderoso mesmo alegando que já não tem mais envolvimento direto com o crime - atualmente se apresenta como proprietário de uma sex shop também situada em Copacabana.

(Informou a sucursal carioca do jornal Nheta)

Sunday, February 04, 2024

Ainda me lembro

Quem gosta de futebol sabe que as lembranças não são apenas as dos grandes títulos. Às vezes basta uma grande jogada, um drible estupendo ou mesmo uma vitória simples para guardar lugar na eternidade do coração. Foi o que me bateu dias atrás, ainda que não tenha sido exatamente o que se pode chamar de vitória simples. 


Fez trinta e cinco anos discretamente no começo de fevereiro. Vasco e Fluminense pela Copa União de 1988, disputada com atraso em 1989. Era mata mata: quem passasse, chegava às semifinais. O Vasco tinha um timaço, o melhor do Brasil, e o Flu lutava para remontar sua equipe outrora tricampeã carioca e campeã brasileira. Foram dois jogos. No primeiro, o Flu venceu por 1 a 0, gol contra do bom volante Zé do Carmo. Na volta do Maracanã, meu amigo Xuru sobe a Siqueira Campos, passa pela pizzaria Bella Blú e encontra quem? O próprio Zé, que comia uma pizza. Foi lá como vascaíno enfurecido e aporrinhou o pobre jogador, até que se entenderam e brindaram um chope. O Rio era assim. 


No segundo jogo, um Carnaval de emoções. Jogaço. Flu 3 a 2, depois de uma prorrogação alucinante. Uma das maiores partidas entre os dois times na história. Quem foi ao Maracanã ficou literalmente chapado. Vale a pena buscar o jogo no YouTube e revê-lo. Enfim, uma noite de gala no Maracanã, com o Flu indo para as semifinais do Brasileirão 1988. 


Mas aí está o grande lance do futebol: deixar a marca eterna de um grande jogo sem estar vinculada a um título. E mais ainda: a época. Como eu estava naquela época? Junto do jogo, todo o cenário vem à tona. Bem, o Brasil não era fácil nem o Rio de Janeiro vivia num mar de rodas, mas pessoalmente falando eu vivia um tremendo momento. Auge dos vinte anos, três a quatro corridas por semana, futebol na praia à tardinha. Começo da faculdade, grandes shows e filmes, garotas maravilhosas. Maracanã raiz, extremamente popular. Tardes na casa do Fred, com muito carteado e grandes LPs na vitrola. Copacabana ainda nos seus grandes lances de farta boemia e galera nas ruas. O dinheiro era quase nenhum e o sonhado emprego era impossível - sem vagas -, mas minha vida era muito boa. Simples demais, boa de montão. 


Pra fechar, ainda tinha um componente especial: eu vivia meus dois últimos anos como escoteiro regular, então tome grandes acampamentos fora do Rio em sua maioria. Outros não, como no esplêndido Forte Imbuhy em Niterói - ok, é outro município mas afetivamente é Rio (risos). 


Quantas coisas reunidas pela simples lembrança de um grande jogo de futebol, hein? Meu entorno, minha vida. Ser um jovem torcedor no final dos anos 1980 em Copacabana tinha um sabor todo especial. Ainda vou escrever um livro sobre isso. Será que dá? Acho que vale a pena! 


São dias de folia

Ê, folia. 

Bem-vinda. 


O mundo para, o Brasil dança, o Rio samba e a gente passa alguns dias felizes, sonhando com a felicidade eterna que sabemos ser ilusória. 


Muita gente viaja, muita gente se solta nas ruas e muita gente, não declarada, passa o carnaval curtindo dentro de casa. Foliões sem folia. Eu os reconheço e me identifico com eles, pois também sou assim. Durante muitos anos, quando era jovem, eu curtia viajar. Primeiro era a turma dos escoteiros, depois a turma da faculdade. Já faz tempo. Agora eu tenho meu Bloco do Eu Sozinho, onde desfilo tentando ler livros, ouvindo discos mas também atento a tudo que tem Carnaval na TV - quero saber tudo de todas as escolas e ao contrário do futebol, onde minha paixão é o Fluminense, na FTSapucaí eu sou volúvel - posso trocar de escola numa mesma noite. Já fui Ilha, São Carlos (agora Estácio), Vila Isabel, Mocidade, Mangueira, Viradouro e Tuiuti. E Império Serrano. Gosto da Portela, mas não torci muito. Pro Salgueiro também não, embora “Peguei um Ita no Norte” seja um clássico eterno. Já fui Caprichosos também, no tempo de Andreia dos Anjos - será que confundi tudo? 


Acontece que o tempo me fez alérgico a multidões, logo eu que vi mil shows e Maracanãs de antigamente lotados. Quanto mais vazio, melhor. Então continuo apaixonado pelo caleidoscópio de cores da Apoteose, e fico com os olhos grudados na tela. Só nós, mais nada além de bons sanduíches ou refeições completas, tudo bem. Às vezes compro uma cerveja, geralmente é refresco mesmo. 


Durante muito tempo em que viajei no Carnaval, eu voltava na quarta-feira de Cinzas, ia ao escritório na quinta e viajava de novo para curtir até domingo. Sei lá, o pós-feriado tinha um sabor especial, de prorrogação da felicidade, acho. Aquele plus. 


Nos últimos vinte anos, os blocos retomaram as ruas do Rio e viraram uma febre de multidões, depois de um longo hiato. Pouca gente se lembra como foi o renascimento da folia de rua carioca, à época sustentada por grandes pilares como a Banda de Ipanema, Simpatia é Quase Amor e congêneres. A verdade verdadeira: no verão de 2003 o carioca estava literalmente durango. A cidade, acostumada a migrar muita gente para a Região dos Lagos e Serrana, registrou um recorde de cariocas que não viajaram. Começou então com o negócio de levar um isopor com latinhas de cerveja pra rua e curtir os pequenos movimentos. Um samba, uma marcha, um pequeno bloco e outro e outro. Três anos depois, já havia tantos que a cidade recuperou um de seus paradigmas carnavalescos, e é assim até hoje. Mas o que provocou o miserê dos cariocas em 2003? O pessoal não lembra, mas vamos resumir em três letras: FHC. 


Durante outro tempo, forçaram a barra para ter futebol no Sábado de Carnaval. Durou alguns anos, depois parou, será que tem agora em 2024? Bom, jogo na TV já tem todo dia. Tudo bem, o pessoal adora e estou nessa. 


Friday, February 02, 2024

tomara

daqui a pouco bate cinco da manhã. é uma noite quase agradável, sem calor. quase porque, tirando isso, um sanduíche de lombinho e um refresco de laranja, pequeninos luxos diante de tudo que vivemos, a vida é uma berda. claro que há cousas boas também, mas racionalizando o processo, se você é um ser que ainda traz em si o tal instinto gregário, a vida é uma berda. eu, por exemplo, li outro dia num grupo de colegas sobre amizade e expus meu ponto de vista: trocar mensagens no whatsapp é prova de amizade? TNC. pode ser coleguismo no máximo, amizade é outra coisa, é jogar junto, é passar a bola e recebê-la. se você não se importa com o destino de alguém, que amizade é essa? todos ficaram em silêncio, que pode ser de aprovação ou rejeição à minha opinião, mas isso não tem importância nenhuma pois não vou mudar de opinião. já fui muito amigo de gente que não vale nada, de gente que me traiu, que fez cara de paisagem nas minhas horas mais difíceis ou inventou uma desculpa qualquer. tudo bem, eu não tenho ódio nem rancor, apenas me afasto e isso fica muito claro. cada um na sua. até nunca mais. bye. o mundo já tem ódio demais e gente falsa demais. meu silêncio acaba sendo o cartão de visitas. e todo mundo que é tratado com respeito e consideração mas passa à condição de indiferença, sente. e sente pra caraio. é justo. bom, agora o silêncio da madrugada é cortado por uma pessoa com o coração em chamas, gritando. alguém em desespero com a situação de rua. gritou e parou. não importa: o trauma fica. ao menos para quem realmente pensa no outro. então somos isso: indiferenças. será que vai me bater o sono às 04:50h? tomara. tomara.

Tuesday, January 30, 2024

Oi, carnaval

Carnaval já é.

Ok, não parece? Tem certeza? O silêncio lá fora não rima com a festa da folia? 


Tudo bem que nessa tarde quente, estou escutando meu herói David Gilmour berrar “Shine on you crazy diamond”, o clássico de “Wish you were here”, desta vez numa pérola do CD “The Later Years”. O tempo não espera. Dia desses Gilmour disse que prefere “Wish you were here” a “Dark side of the moon”. Quem sou eu para contestá-lo? Gosto dos dois. Gilmour é de 1946, e está à beira dos 78 anos. Eu o conheci com 36. 


Pink Floyd de lado, mas já é carnaval? 


Espio pela janela da loja e quase não há carros. Os pedestres desapareceram de vez e o fim de janeiro é absolutamente silencioso no Centro do Rio, já tão sofrido pelos últimos anos. Agora, silencioso durante os chamados dias úteis, porque os finais de semana têm atraído multidões para a região, naturalmente por causa dos blocos comandados por aviões como Lexa e grande elenco. É gente pra todo lado. 


Já é carnaval. A rua tem uma certa cara de feriado emendado. Na praça Tiradentes, policiais e pessoas em situação de rua convivem pacificamente debaixo da mesma sombra de árvore, bem perto do primeiro ponto de ônibus. O calorão é de derreter. 


No fundo, no fundo, todos estão esperando chegar a grande festa de vez. E logo me lembro de Bola, o mitológico Rei Momo dos anos 1990, com toda a sua irreverência e carisma. Morreu jovem, uma pena. Certa vez o vi na Rua de Santana e gritei do outro lado da rua: “Bola, um deus”. Sorridente, ele começou a fazer evoluções e saudações. Um lorde como não se faz mais. 


Samba, alegria, beleza, sensualidade, diversão, sexo, a magia indescritível do desfile das escolas de samba, os bailes que ainda sobrevivem, os blocos que viraram uma febre de vez pelas ruas cariocas. O bicho pega, literalmente. Melhor dizendo, o bicho manda. 


Lá vêm turistas de toda parte, encantados, se divertindo a valer, preferencialmente sem nada de grave acontecer, como às vezes acontece nessa cidade turbulenta. 


O Carnaval tem uma força que nem o futebol consegue. Quando ele está a caminho, tudo fica aos pés, ao seu entorno, nada pode ultrapassá-lo. O futebol, não: tem uma grande decisão no domingo, segunda-feira a vida segue. No Carnaval, amigo, vinte dias antes da festa já tá todo mundo em ritmo de pressão e é natural que seja assim, especialmente para quem trabalha no desfile do Sambódromo. É o serviço e o esforço de um ano inteiro que está em jogo em 50 ou 60 minutos. 


Duas e meia da tarde. Timidamente houve algum movimento na rua. Um carro da polícia toca a sirene para nada, apenas passar o sinal. Não há sequer potenciais presos aqui na rua vazia. 


Off Carnaval, só mesmo David Gilmour cantando, desta vez com doçura, “Us and them”. É de longe, da turnê “Delicate sound of thunder”, 1989. Tempos de Luciene, Martha Rocha, Danielle e Alessandra. Comecinho de faculdade. Como meu diploma se encaminha para 30 anos, temos a certeza do tempo implacável. Tudo bem. Vivamos. O Carnaval está aí, com seu presente e passado. 

Wednesday, January 24, 2024

Línquedim

@p.r.andel*

O que mais gosto daqui é também o que me causa certo desconforto: a estranheza. 

É o lugar onde tenho menos contatos e interações, onde conheço menos gente. Me parece até misterioso. 

Por muitos anos, mais de vinte, tive um emprego estável, divertido e que me tirava um pouco daqui. Nos últimos cinco, virei micro empreendedor (com todas as agruras possíveis da modalidade) e, claro, a pandemia me deu um belo jab do qual não me recuperei ainda. 

Troquei de profissão, sem jamais abandonar a vocação da antiga, mas completamente desmotivado pelo "novo" mundo que, dentre outros defeitos, ainda tem acentuado etarismo, flexibilidade relativa e, em inúmeras situações, um rol de exigências muito acima do que os cargos e funções precisariam. 

Mas meu foco é falar de outra coisa. Nem sei se será um péssimo cartão de visitas ou não, e isso também não me causa qualquer preocupação. É apenas uma opinião e só. 

Gosto de ler perfis originais. Coisas que meus colegas curtiram, especialmente aqueles que mais admiro. Procuro, leio, me deparo com artigos e matérias até interessantes, mas quase sempre com um viés evidente: a repetição da fórmula de falar/escrever, às vezes parecendo até mesmo um verdadeiro "colão" para se fazer uma prova. 

Os mesmos termos, as mesmas palavras, as mesmas frases e até pequenos parágrafos inteiros repetidos, isso sem contar o manancial de neologismos e expressões em outros idiomas, que mais parece uma tentativa flácida de oferecer erudição. Seria algum sentido de unidade ou falta de originalidade? Adesão intelectual ou cópia de segurança? 

Há quem diga que o mundo corporativo deve ser desassociado dos outros ambientes, mas será isso possível? (Ainda) somos humanos, estamos nas ruas, vemos a miséria e o sofrimento a céu aberto, sonhamos, pensamos, temos sentimentos, sentimos tesão...

Quantas vezes você conheceu alguém no seu ambiente profissional que era completamente diferente - e para melhor - no cenário pessoal, por exemplo? O contrário também, lógico. 

Ok. Sede de conhecimento, foco, meta, time, resultados, vitórias, colaboradores. As empresas têm que lucrar e crescer. Os funcionários querem sucesso e remuneração. Nenhum problema. Mas será que só eu acho que muita gente repete as mesmas falas, às vezes sem sequer refletir a respeito, por mera busca de resultados? 

Que ninguém se ofenda com esta fala. Não é meu objetivo censurar ninguém, mas sinto falta da verdadeira originalidade nos pontos que reuni aqui. O mundo já tem guerras demais. A violência é a regra. Não quero colaborar com isso. Apenas acho tudo muito estranho nessa repetição permanente dos textos. 

Um pouquinho de diversidade no vocabulário faria bem ao LinkedIn. Acho. Apenas acho. 

Não quero ter certeza de nada. 

*Estatístico pela UERJ, 1994. Autor de mais de 30 livros. Durante duas décadas foi autor de artigos, matérias e releases econômicos. Cronista regular do Correio da Manhã, Museu da Pelada e Panorama Tricolor.


Monday, January 22, 2024

Ecos da bossa nova

Dia desses me deu de escutar bossa nova. Na verdade eu gostei desde sempre. É que eu gosto de escutar muita coisa, variando. Passo pelo rock, pelo jazz, pelo blues e até música de outros países, daqueles que nunca ninguém ouviu falar. Enfim, minha programação musical é um verdadeiro sarapatel.

Tava prestando atenção nas faixas e ouvido com calma toda aquela delicadeza, aquela riqueza que a bossa nova traz consigo, que é a música da celebração brasileira. A trilha sonora dos tempos de um país que parecia realmente dar certo, a caminho do verdadeiro progresso e da libertação do povo. Acabou que a ditadura não deixou e a Bossa Nova de certa forma ficou para trás. Mas na verdade, pensando bem, ela se espalhou pelo mundo com elegância. Os maiores craques do jazz tocaram bossa nova e se encantaram por ela. Os nossos artistas da bossa nova são reverenciados na Europa e em países como o Japão. Em todo o mundo a nossa música é aplaudida, exceto no Brasil, onde não apenas é subestimada mas às vezes agredida por pura ignorância. Os mais primitivos reduzem-na a “trilha sonora das novelas de Manoel Carlos”, com todo o ridículo contido nisso. 

Bossa Nova é música de elite? Só se for intelectual. Quando explodiu nos anos 1950, Copacabana - seu palco principal - já misturava em suas ruas milionários e proletários. Naquele tempo até Ipanema ainda tinha pobres. Eu sempre escutei bossa nova sendo pobre - sou até hoje. Tom Jobim era duro, morava num colégio com a família e, quando se casou, tocava nos mafuás de Copa para sobreviver. Quando se tornou um monstro do piano brasileiro, já tinha mais horas de atuação em rendez-vous do que qualquer outro músico. João Gilberto dividia apartamentos com dois, três ou quatro amigos. Herdeira era Nara Leão e só. Vinícius tinha posses de família e carreira diplomática. 

Bossa nova é música de branco? Ok, faltava diversidade no elenco de astros da época? Sim, mas a diversidade faltava em tudo. E não fosse o exílio voluntário de Johnny Alf, que nada teve a ver com racismo e sim sexualidade, o ponta de lança bossanovista seria um homem negro. 

Passei pela internet e encontrei um podcast onde estava o Régis Tadeu, crítico musical bastante conhecido. O colega perguntou quem era o grande artista brasileiro. Régis falou - com justiça - de Guilherme Arantes e que Tom Jobim é um nome máximo. 

O Brasil precisa respeitar o pessoal da bossa. Depois de anos com a mulher sendo tratada como destruidora de lares na música popular, é na bossa nova que ela vira a garota linda, em busca de carinhos e beijinhos, de abraços e amor. A bossa falava da beleza do mar, do namoro, do céu, da busca da felicidade. 

Falamos de Tom Jobim e de João Gilberto. Celebremos Carlos Lyra, Roberto Menescal, João Donato e toda uma geração de músicos, das melhores que este país já teve. 

Ninguém é obrigado a gostar da bossa. Basta respeitá-la e saber de seu passado, seu alcance mundial, sua força discreta e elegante que até hoje ecoa pelo Brasil. 


Sunday, January 21, 2024

Resenha do livro "A alma aflita das ruas"

Por Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, cineasta, poeta e personagem marcante da vida cultural brasileira. 

Livro de Paulo-Roberto Andel, Vilarejo Metaeditora, 2023.

Encomendas: 21 99634-8756


Não por acaso, Andel reúne numa só crônica João do Rio, ao comentar a comoção que se abateu sobre a cidade e suas exéquias que reuniram 100 mil pessoas em 1923, e o escritor de Cenas de Nova York, o beatnik Jack Kerouac.

Um dedicou sua prosa literária e jornalística à apaixonada observação da "alma encantadora das ruas", o outro ao lado obscuro do hipócrita way-of-life americano, antecipado pelo pintor Edward Hopper, uma geração antes, no contraponto da família típica dos comerciais de margarina, com suas imagens de desolação, através de seus solitários personagens.

Nosso desesperado e aflito escriba se debruça sobre um Rio contemporâneo habitado principalmente por um exército de famintos que habitam as ruas. E se solidariza com a miséria desse universo que se alastra como incontrolável pólvora da chaga social que reina, soberana, no centro econômico de nossa cidade.

"Começa o dia (...) e então estendemos nossas mãos nas calçadas, buscando míseras esmolas de felicidade."

"A alvorada ainda está escondida pelo azul cobalto do céu. As padarias ainda nem abriram. Mas a fome já se espalha pela manhã." 

“Não há vagas. Não há vagas. Há desprezo, insensatez, mesquinharia, ódio, filhadaputice, escrotice, solidão."

E como um caminhante no caos que observa em sua volta, vai enumerando com sua nostálgica memória, a decadência do comércio que outrora pontuava com tradição e história a geografia mundana do Rio. Recolhe o que restou de endereços onde ainda sacia sua fome com as delícias que sobreviveram. Opus, Paladino, A Mineira - e reúne os amigos de sua pequena Confraria, uma espécie de cavaleiros das távolas redondas dos botequins resistentes.

Seu olhar de indignação não apaga o observador do entorno que emoldura sua trágica visão, como num documentário antropológico ou (novamente) numa pintura de Edward Hopper, consegue registrar, ao entrar num bar : "Há dois clientes. A atendente é loura, gordinha, bonita e olha para o outro lado da rua, como se admirasse um senhor gordo, também passando por ali. Ela fixa o olhar. Será?"

E se consola: "Continuo pobre, estou desesperado, mas meu par de bermudas e de chinelos me deixa feliz. Ultimamente tenho escrito livros."

E escreve freneticamente. Em sua coluna aos sábados no Correio da Manhã, e em dezenas deles publicados, sobre futebol e sua paixão pelo Fluminense.

Segue sua saga numa espécie de vingança contra a fome alheia e que não tem condições materiais para mitigá-la:

"Depois de comermos pastéis com laranjada na Rua dos Andradas (...) vamos lá porque é gostoso e barato (...) resolvemos caminhar até o Largo da Carioca.(...) eu pensei em fazer a minha velha visita ao Santos Dumont para tomar um sundae de morango em meio ao silêncio da Praça de alimentação do aeroporto."

E sua fixação pantagruélica continua, descrevendo um desfile de sanduíches nos endereços que ainda se sustentam em meio ao desastre neoliberal que é o responsável por essa multidão de famintos e sem teto sob onde houver marquises que os protejam das chuvas.

No entanto, consegue desfrutar da beleza da Cidade, como extrair a pérola que é a materialização da doença da ostra:

 " ...então logo chego ao VLT e fico admirando a beleza noturna da região, as árvores, os prédios da Beira-mar. (o trecho do aeroporto à Cinelândia é imperdível, pela bela arquitetura ali reunida) ".

E seu olho de lince foca distante, onde "as travestis dominam os postes, o que sobrou dos orelhões, os cercados e muitas paredes. A luta pela sobrevivência exige estratégias de marketing. " (...) seis pessoas em situação de rua, mais seus três ou quatro cães de estimação, vivem a morte em vida debaixo de uma marquise."

"(...) no centro do Rio o prato mais popular é o pacote de biscoitos. Sempre há jovens e adultos indo e vindo com biscoitos pra disfarçar a fome."

" Na Nova Petrobras descem batalhões de funcionários estranhos com suas roupas corporativas de cores neutras,suas mochilas com notebooks e fones de ouvido que ajudam a apagar o cotidiano triste."

"Passo na quitandinha recém aberta, compro pão para depois fazer um queijo quente. Um guaraná também. Gosto da lojinha pequena, acolhedora, com jeito de antigamente.”

Certamente se lembrando de tempos acolhedores e sem a pressa histérica da sobrevivência atual.

Registra também fatos na sua Copacabana onde morou adolescente 

("Minha terra sempre será Copacabana, mas sou um cidadão do coração da cidade"). Descreve cenas antológicas num elevador com o cantor Cauby Peixoto e seu paletó de lantejoulas azuis, Clóvis Bornay e Rogéria nas noites do bairro; a Lapa de Madame Satã e do cantor Osvaldo Nunes - que a amnésia cultural brasileira juntou ao batalhão de nomes excluídos, assassinado por dois garotos de programa.

E continua: "O Largo da Carioca em silêncio de morte às seis da tarde. O povo foi expulso pelo desemprego. Há um certo silêncio triste e indisfarçável nos arredores. Burburinho mesmo só numa fila de moradores de rua para ganhar o sopão."

"Se a população envelheceu e a boemia encolheu, paciência, mas não há como apagar a história de bares e boates memoráveis, dos inferninhos aos templos da bossa nova..."

Memorialista da urbanidade, fala dentro dele a voz da preservação desse patrimônio:

" Pela milésima vez, tiro uma foto do relógio da Mesbla. Nunca se sabe até quando o relógio estará lá ou alguém se interessará em fazer o registro."

Renomeia sua série de pequenas histórias e cunha o nome de um famoso jornal paulista, conhecido pelo noticiário de crimes, “Notícias populares”. E se dedica, como num alerta na falta da atenção das autoridades, a uma espécie de aviso aos navegantes sobre as zonas de risco.

Antes de se despedir : "A semana será puxada no trabalho e continuarei preocupado. Muito preocupado. Tentar buscar energias sobressalentes e resistir. Escrever. Torcer. Sonhar. É isso: sonhar é preciso."

Cai o pano sobre a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Um livro imperdível.