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Sunday, November 25, 2018

domingo velho

Aquele cheiro da memória permanece. É algo difícil de explicar, mas tem a ver com a manhã de domingo em Copacabana, lá pelo alto da rua Siqueira Campos, geralmente ensolarada. Aliás, o domingo todo.

Sentado num sofá vermelho e confortável, lembrança dos tempos que tínhamos algum dinheiro, eu olhava para o rádio Telefunken grandão, com dial esverdeado, onde eu escutava os jogos do Fluminense e dos outros times também - em 1978, com a cara colada à caixa de som, ouvindo baixinho para não atrapalhar minha mãe vendo TV, torci muito pelo Vasco contra o Flamengo, mas aí Rondinelli fez um golaço de cabeça, o mundo explodiu e até hoje eu não sei como aprendi a "secar o rival" (meu pai nunca eu uma palavra neste sentido, só passando a me levar em torcidas como as de Palmeiras e Campo Grande posteriormente).

Ou escutar o programa de Waldir Vieira. Sempre tinha o sorteio de um queijo. 

Esperar meu pai com os trocados para me dar a missão do café: comprar pão, um saco de leite, ovos, presunto, queijo. Depois, na banca de jornal: O Dia, O Globo, Jornal do Brasil, às vezes o Jornal dos Sports ou a Folha. A banca permanece até hoje na saída do Shopping dos Antiquários. Passando por ela e subindo a Siqueira, a Padaria Santa Margarida. 

Aquele cheiro dos produtos do café da manhã permanece intacto. O pão era maravilhoso. 

Esperar ansiosamente pelo jogo do campeonato paulista na Bandeirantes, era o único que passava ao vivo às onze da manhã, ou pela reprise de uma partida do Carioca disputada na véspera. Certa vez passaram uma goleada do Fluminense sobre o America, 6 a 1, fiquei enlouquecido. 

Perto da hora do almoço, se o pai tivesse dinheiro para a gente comprar lasanha pronta na Trattoria Torna, era uma felicidade imensa. Em tempos de fartura, salpicão também. Era delicioso, ficava na Anita Garibaldi. 

Depois da boa comida, tudo era o jogo. A qualquer momento meu pai poderia dizer "Paulo, toma banho pra gente sair". Quem se lembra da série de bonecos dos Thunderbirds? Quando cada um deles pegava seu veículo para uma missão, era daquele jeito que eu me sentia. Se tivesse Maracanã, a gente via o Conversa de Arquibancada e saía - que viagem dos sonhos no 434, cruzando a cidade. Se não tivesse, tudo bem, não era o melhor cenário do mundo mas tinha o Telefunken: mesa redonda, jogo das três horas, repórteres em todos os campos, esperando chegar o jogo das cinco horas, que ia até às sete e depois mais reportagens. 

Ainda consigo lembrar perfeitamente da voz dos saudosos Jorge Curi, Waldyr Amaral, Mário Vianna, Loureiro Neto e João Saldanha, meu herói. Ainda lembro quando eu e meu pai estávamos num grande clássico e, perto do fim da partida, o Maracanã ecoava as vinhetas das rádios Globo, Tupi e Nacional - dezenas de milhares de radinhos de pilha juntos. O Garotinho e o Apolinho ainda estão por aí fortes, o Penido também. Fiquei amigo do Mazella e vi o Rafael Marques começar, isso quando o domingo já era diferente, na garagem da Rex com os campeonatos de botão. 

Dez e trinta e cinco. Acho que me bateu uma tristeza. É que tudo aquilo ficou para trás. Agora às vezes é bom, mesmo com o fim mais perto do que o começo. Foi tudo outro dia e lá se foram quarenta anos. 

Marina está dormindo. Quando acordar, vamos ao rodízio de massas. O Leo e a Letícia não vão com a gente porque estão viajando.

A banca aqui perto quase não tem jornais. Tenho ouvido pouco rádio, preciso melhorar. 

Amanhã começam os trabalhos, tudo muito diferente de quando o grande perigo era tirar uma nota vermelha. 

Podia ter padarias melhores por perto. 

As televisões são cheias de jogos, mas tudo é de outras palavras. 

Se não tem mais pai, mãe, irmão, O Dia, O Globo, Jornal do Brasil, lasanha, salpicão, o Telefunken e o Conversa de Arquibancada por perto, pelo menos sobraram o Fluzão e o meu amor. Logo mais tem drama diante do Inter, estamos aqui para isso. 

De resto, o Brasil era tão diferente e, ao mesmo tempo, igual, igual demais, pelo que de pior cabe. 

@pauloandel

Tuesday, November 06, 2018

visto

o que tenho visto nestas ruas
tem a ver com as sombras
e os indiferentes silêncios

por mais que a paisagem seja
linda
de morrer
e os prédios sejam tão
belos

o que tenho visto é a dor
o vazio a desesperança
corações famintos solitários
em plena multidão

tenho visto mãos de esmola
a caminho da morte
e risos entorpecidos
e felicidades falsas em fotos
tenho visto rancor
a empáfia que apodrece
a alma tonta

as filas do desespero
a injustiça é a grande compaixão
qualquer outro que se foda cru
de quem é a culpa?

o que tenho visto é a miséria
dos capitais vis e covardes
a miséria das famílias destruídas
pela hipocrisia
a miséria dos amantes
desencontrados
por nada

as luzes dos barracos sugerem
um céu estrelado visto
por quem sobrevoa a cidade
decapitada

manchetes sangrentas
e mentiras de primeira página
a serviço dos párias do amor

o que tenho visto de perto
mora em pequenas lágrimas
pelos irmãos distantes
os desaparecidos
os amigos de abraços sinceros
pequenas lágrimas de saudade
e do que nunca mais será
o exercício das pequenas coisas

silêncios indiferentes no elevador
nos olhares faiscantes pelas
conversas eletrônicas:
o admirável mundo frio
os oprimidos por toda parte
à noite as grandes avenidas
pertencem aos mortos vivos
zumbis de calçada desprezados
e quem não tem nada a ver
com isso
sorve o sono dos tranquilos

o que tenho visto é o fim
mais perto do que o começo
sem medo nem otimismo
que os últimos anos sejam
o contrário de tudo que prometem:
não me levem flores
nem escrevam belos poemas
ou cartas de amor -
nem o pior dos homens merece
uma despedida hipócrita

perto da meia noite tenho visto
o dia que nasce sozinho
as promessas não cumpridas
a tristeza das distâncias
infinitas
relembro um poeta triunfal e sua
pergunta:
como matar o tempo?

o que tenho visto são belos prédios
e corações despedaçados
- a natureza humana

@pauloandel