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Friday, June 28, 2013

Poeminhas


1

sai desse corpo
que sempre te pertenceu
feito mar revolto -
esse corpo é meu
e teu e meu

2

solidão
de um fla-flu
sem multidão:
um silêncio
que atorpece
um desejo que
fenece

3

quis teu
corpo nu
e mais um
coração
a mil:
noves fora
nada
nenhum
recall de amô

4
cem minutos
para o fim do mundo
e eu sou penso
em como morrer
dentro do teu
bel prazer

5

precisava dizer
o quanto te ama
mas nenhuma língua
era suficiente:
o amor não cabe
num só idioma

6

o céu
e fronteira nenhuma
diante de onde
se pode
chegar pensando

7

mais
um beijo
à frente
e você não
está mais
no mesmo
amar


@pauloandel

*7: sobre Chico Science: "Mais um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar"

Rita sempre Lee ever Jones







@pauloandel

Monday, June 24, 2013

Mauro Santayanna - As massas e as ruas

22/06/2013

AS MASSAS E AS RUAS

(JB) - A máscara de Guy Fawkes, o conspirador católico inglês que queria atear fogo ao Parlamento, no início do século 17, tem sido usada, por equívoco, pelos manifestantes de nossos dias. Embora hoje símbolo do grupo Anonymous e tendo aparecido como ponto comum em manifestações em todo o mundo, o malogrado rebelde, que, semienforcado e, ainda consciente, teve sua genitália cortada antes de ser eventrado e suas vísceras fervidas, para então ser esquartejado, sabia o que desejava. Sob a influência dos jesuítas, o complô, de que participava, queria uma Inglaterra católica. Seu mérito pessoal foi o de, sob tortura — que só o rei James I podia, então, autorizar, e autorizou — proteger, até o limite do sofrimento, os seus cúmplices. Instrumento de intrigas internacionais de seu tempo, que envolviam a Espanha e a Áustria — países católicos — e se valiam de dissidentes ingleses, Fawkes é objeto de chacota em 5 de novembro de cada ano, quando se celebra a sua desdita em pequeno Carnaval nas ruas de Londres. Os vencedores escrevem a História, e a Inglaterra é, em sua esmagadora maioria, protestante até hoje.

E os que, agora, se manifestam no mundo inteiro? O que pretendem? Aparentemente, se revoltam contra o sistema econômico neoliberal, a corrupção e a inépcia dos governantes, que se refletem na desigualdade social. É também dessa forma que se identificam os manifestantes norte-americanos: a rebelião dos 99% espoliados, contra 1%, que são os espoliadores.

A maioria se revolta contra o sistema econômico neoliberal, a corrupção e a inépcia dos governantes.

Há uma razão de fundo nessa identificação, uma vez que o homem, sendo produtor e consumidor de bens, é um ser econômico. Mas seria reduzir as dimensões do problema examiná-lo apenas a partir dos números, relativos ou absolutos. O homem pode ser, como diziam os gregos, a medida de todas as coisas, mas não pode ser medido por nenhuma coisa.

Como ser histórico, é o criador de si mesmo. É, no jogo dialético com a natureza, que ele se fez e se faz. A sua melhor definição é a de Aristóteles: é um animal político. Foi político antes mesmo que houvesse a polis: boas ou más, as regras do convívio, exigidas pela necessidade da sobrevivência, já eram políticas — antes dessa definição pelo léxico grego.

Em razão disso, todos os livros da Antiguidade, neles incluídos os sagrados, são, no fundo, manuais políticos. Tudo é política e, acima de tudo, é política a presumida negação da política.

Nos atualíssimos dias o confronto é nítido entre o capital financeiro, que pretende controlar tudo — mediante as autoridades governamentais, que escolhem com o financiamento das eleições — e os cidadãos. Autoridade e cidadão, mesmo nos regimes democráticos mais evoluídos, são categorias que se contrastam. Os eleitores nomeiam as autoridades, mas o mandato não é, nem pode ser, imperativo. Imperativas são as circunstâncias que separam o sentimento do eleitor, no momento do voto, do comportamento de seu mandatário, quando no Poder Legislativo e no Poder Executivo.

O carisma de alguns governantes ameniza essa discórdia, justificando o governante diante de seus prosélitos, em nome, valha a recorrência, do peso ou da ditadura das circunstâncias.

Não há dúvida de que passamos por um tempo de desalentadora mediocridade no governo dos estados nacionais. O carisma de alguns líderes — e este é o caso, entre outros, do presidente Barack Obama — tem prazo de validade, como certos alimentos industriais. Em alguns meses, como estamos vendo no caso de Hollande, na França, o entusiasmo fenece — e é substituído, num primeiro momento, pela decepção.

Nos sistemas presidencialistas puros, e onde há o instituto da reeleição, o segundo mandato não tem a solidez do primeiro. Se o governante não for extremamente hábil, corre o risco de se transformar em um lame duck, um pato claudicante sobre os charcos escorregadios.

A renúncia dos eleitos em assumir sua plena responsabilidade de garantir o bem-estar  e a independência das sociedades nacionais abriram caminho para que o neoliberalismo corroesse, até os alicerces, a autonomia dos dirigentes políticos. O início da curva histórica ocorreu a partir do conluio estabelecido, nos anos 80, entre Reagan, Thatcher e Wojtila, com a cooptação de Gorbatchev — hoje conhecido em seus detalhes,  constrangedores.

Os legisladores e governantes foram transmudados em simples marionetes dos donos do capital, que dominam o mundo. Esses têm, em suas mãos, os maiores bancos, e, mediante eles, ou diretamente, as maiores empresas transnacionais do mundo. Os bancos e essas corporações controlam todos os recursos naturais e ditam os rumos da economia mundial.

Os legisladores e governantes foram transmudados em simples marionetes dos donos do capital Seu domínio vai ao ponto de provocar a  fome de alguns povos, por meio do controle dos alimentos — da produção dos fertilizantes, do uso da água, da fixação dos preços, pelo mercado de futuros, a estocagem e a especulação — dos cultivos até a prateleira dos supermercados. Isso sem falar nos minerais, do ferro ao nióbio, do urânio a terras raras.

As manifestações revelam a inadaptação da vida humana aos módulos impostos pela sociedade de produção e consumo, agravadas pela crise histórica da contemporaneidade. Elas pedem e anunciam uma nova forma de convívio — mas qual?

Estamos diante de uma nova fase da rebelião das massas, já examinadas com precisão por Ortega y Gasset, e Elias  Canneti, em “Masse und Macht”,  e hoje mobilizáveis em instantes pelos meios eletrônicos que pretendem controlá-las.


Todas!

1

candelabro

eu não vou
me transformar
em outros
só para ser outro
porque nada é
mais legítimo
do que ser eu mesmo
muitas vezes eu
e mais ninguém
fora de mim:
diante do espelho
eu sou eu mesmo
e ninguém mais 

pode me ser

2

promessa

então fiz de qualquer lugar o caminho para encontrar você
promessas, poemas, querelas vulgares, debates populares
e tudo para ficar concentrado em você
uma canção de amor piegas e tão piegas
quanto deve ser o amor só para viver em você
houve festas e luares, naveguei o sexo a mil sem qualquer calma
e continuei a sonhar todo tempo com você
há uma longa e fria noite de junho ao redor
e nada está em seu lugar - as ruas gritam com força
os ratos se locomovem - mas ninguém há de se importar
porque eu gosto a todo instante de você
os casais de namorados na praça de alimentação
e nenhuma das mãos dadas, apaixonadas
têm a mim ou a você
os corpos se nutrem e se saciam
mas nenhum meu vai de encontro ao teu
numa calçada rica, mendigos fazem serenatas
para o terror da morte e isso me rói por dentro
e corta os meus pulsos d’alma porque eu penso
o quanto penso sempre em você
um milhão no canto e a milha solidão
se faz pranto seja com quem for
porque aqui eu não tenho você
tenho você, não tenho você, penso em você

3

eu, você e você

você que não se importa
e você que me incendeia
eu ainda tenho você
mas penso em você
e você que me ignora
enquanto você me sacia
eu e você sem você
que eu tanto espero
como se fosse esmola
eu e você, eu e você
num certo súbito
que não marcou bobeira
e fincou bandeira no topo -
eu vezes você vezes você
as vértices de um triângulo
imaginário e tão fiel -
enquanto eu choro por você
eu encho você de prazer
eu desejo você
eu banqueteio você
eu quero ser teu você
e você faz o não querer
eu tenho o outro você
e o resto fica no muito prazer

4

o fim do outono

deus está num outro plano
enquanto me apavoro:
eu vi milagres em vão
sofrimento, consternação
e tantos anos depois do começo
ainda não entendo
que diabos vim fazer aqui


@pauloandel


5

Call me

If you're feelin' sad and lonely
There's a service I can render
Tell the one who loves you only
I can be so warm and tender

Call me, don't be afraid, you can call me
Maybe it's late but just call me
Tell me and I'll be around

When it seems your friends desert you
There's somebody thinking of you
I'm the one who never hurt you
Maybe that's because I love you

Now don't forget me 'cause if you let me
I will always stay by you
You've got to trust me, that's how it must be
There's so much that I can do

If you call I'll be right with you
You and I should be together
Take this love I long to give you
I'll be at your side forever








Friday, June 21, 2013

Noites de luta, céus do Estácio

ACONTECEU que Luiz e eu estivemos juntos novamente numa mobilização das ruas, depois de tantos anos. Nossos grandes heróis estão absolutamente mortos e sinteticamente vivos nas ideias que deixaram pelo caminho. Ontem à noite em frente à estação Uruguaiana, coração do mercado popular de tantos mistérios, trocamos um abraço em testemunho a uma multidão de jovens que tomou o local.  Houve quem dissesse que a PUC inteira tinha vindo, tamanha a quantidade de garotas bonitas. Alguns gatunos também. Lembramo-nos das aulas de economia: as ofertas ali estavam, era hora de equilibrar o mercado dos furtos com pequenos objetos contemporâneos: aparelhos de música, telefones estilo computador e algo que os valha. Rimos um pouco, entendemos a importância do momento, caminhamos pela Buenos Aires. O puteiro continuou a todo vapor: uma profissional mulata deu boa-noite aos vigilantes com carinho e afeto, subiu o escadão e partiu para a vida. Funk music no salão. Ah, Gomão!

Esquina de Rio Branco com Presidente Vargas, cerebelo do Brasil, Benedita da Silva passa com uma jovem que parecia sua parente. Não foi reconhecida, a multidão estava mais à frente, percebeu quando a fitamos e saiu sorrateiramente. A bela contrabaixista Eliza Schinner carregava um cartaz, cercada de amigos – ela sabe muito bem o que é o Brasil da estupidez e do preconceito. Dois jovens rapazes com seus blazers e cervejas pareciam estar em ritmo de azaração. Faz sentido. Uma, duas horas depois, eu e Luiz caminhamos com calma até a Cinelândia, como se fosse uma prévia de tudo o que estaria por vir. Tomamos o metrô, ouvimos alguma bomba explodir na estação do Estácio, o trem já não pararia na Praça Onze e nem desconfiei que os choques de ordem de Sandra Cavalcanti ainda fossem pancadas na multidão – sou um ingênuo. Agora, o que ninguém podia imaginar era que eu carregava comigo os originais de um livro subversivo sobre o atual futebol brasileiro – em 1968, isso daria cadeia, choque no ânus, nos genitais e talvez expulsão do Brasil – isso era chamado de revolução – o nome certo era tortura, involução, primitivismo.

PRAÇA Afonso Pena, muitos jovens, vários de roupas pretas, todos se preparando para ir ao centro, alguns com bebidas, outros com cartazes, outros namorando. Chegamos velozmente à casa de João e fomos bem-recebidos como sempre. Alguns petiscos, um brigadeirão, nossa leitura de textos que foi tão emocionante – eles quase não perceberam que eu chorei várias vezes com o que li deles e meu, inclusive em voz alta. Falei mal de escritores fajutos e pessoas de mau-caráter – tenho esse defeito: não consigo deixar de sacanear pessoas que sei serem ruins para com o próximo. Bebemos hectolitros de refrigerante, brincamos com os sensacionais bichos de estimação da casa, rimos, paramos a leitura, entramos em outros assuntos, retornamos, vimos o Rio com o coração em chamas no peito da Tijuca e quando se viu eram três da manhã, hora de ir embora. Luiz tomou seu táxi. Eu resolvi pegar o meu na rua Haddock Lobo e, minutos depois acusei o golpe que custaria uma noite de sono.

Então dei por mim, não tinha dinheiro em espécie para pagar uma corrida de táxi, apenas cartões, algo quase inútil em se tratando de Rio de Janeiro, ainda mais depois de uma noite de luta. O primeiro motorista disse não, o segundo, o terceiro, o quarto e a solução precisou ser a espera de um ônibus. Para piorar, a bateria do celular descarregou. Nada que fosse tão grave nos anos 80, por exemplo. Um senhor de seus cinquenta anos, negro, respeitável, camisa antiga do Botafogo, encostado no único carro estacionado em frente ao Club Municipal. O cartaz anunciava o novo show de Elymar Santos, então pensei: Bola gosta disso.

- Daqui a pouco passam o 415 ou o 433.

- Para mim só o 33 serve.

- Olha o 15, meu amigo. Bom dia e bom descanso.

O senhor tomou o carro coletivo. Metros à frente, um catador de rua amassava diversas latinhas. Nenhum carro deslizando no asfalto. Quase nenhum ruído. Olhei para o céu do Estácio e senti uma solidão enorme, muito maior do que a cotidiana. Apenas a lua mostrando seu brilho e quase nada. Eu ainda não sabia dos crimes que a polícia tinha cometido novamente contra os civis. A solidão do Estácio, com seu largo logo à frente. A canção eterna de Luiz Melodia. Eu e Ana Klein, linda, jovem, pobre e com todo o futuro pela frente, tudo perdido há vinte e cinco anos. Um exército e seus generais de merda que mataram, torturaram, estupraram e ainda ousaram dizer que tudo era em nome de Deus e da família. Meus pais mortos, Xuru morto, Fred morto e uma angústia que não sei explicar, tudo misturado com o sentimento de que é preciso mudar alguma coisa neste país. O negrume da noite em tons mais delicados, pensei na minha namorada, na minha amante, na mulher que eu amo tanto e queria que as três fossem uma ao mesmo tempo. A solidão que sempre foi minha, logo minha, eu que sempre tive tanta gente ao meu redor e bem ao lado. Minha mãe falava disso quando eu era pequeno e fazia tudo para ficar sozinho. Hoje estou e não quero. O mundo está ao meu lado e não quero. Quem pode me salvar? Num súbito, o 433 vazio invadiu minha vista. A trocadora, uma mulata bonita e jovem, quase cochilando, sorriu com meu bom dia. Os trabalhadores, agredidos pela polícia ou não, já dormiram. Eu sou o espírito que anda.

Quatro da manhã, um casal sai feliz do motel Snob. Senti pequena inveja. Passei pela lanchonete fechada, encontrei a Cruz Vermelha e sofri ao ver o mendigo que há anos habita ali com sua barba e cabelos enormes, um saco de objetos que carrega com um sentimento de casa, os olhos esbugalhados na madrugada sem uma cama, sem abrigo, sem nada. Se eu não fosse um merda teria como reverter aquela situação. Calei e sofri. Minutos depois, dois garotos fumavam maconha nos arredores do prédio onde moro – nenhuma rebeldia nisso, apenas uma bobagem.

Já dentro de casa, porta trancada, espetei o celular no carregador, preparei o banho, pensei na vizinha que perdi, coloquei Ed Motta para tocar baixo. A água gelada espantou cem quilos de solidão por meia hora. Deitei na cama de tantos anos, olhei para o teto branco, pensei em quem penso todo dia. Houve uma revolução lá fora, mas eu permaneci o mesmo dentro de mim: querendo impossíveis, lutando contra moinhos de vento, pedindo milhões a quem mal pensa em me dar uma esmola. Quando desmaiei até chegar aqui, a música no ar vivia dos seguintes versos: “Hoje quando eu bem te vi/ Fiquei mudo, quase quase morri/ E agora estou feito zumbi/ Rosa deusa do meu jardim/ Esmeralda, eterna gipsy queen/ Iemanjá num manto de cetim/ Eu nasci pra ser/ Louco por você/ O universo conspirou/ A favor do amor/ E de nós dois”. Coisas de Rita Lee, que sabe do riscado. Despertei do desmaio, sou um espírito que ainda, agora continuo aqui. Eis minha triste sina.


@pauloandel

Wednesday, June 19, 2013

A voz das ruas



“A burguesia não tem charme nem é discreta/ Com suas perucas de cabelos de boneca/ A burguesia quer ser sócia do Country/ A burguesia quer ir a New York fazer compras”

“A burguesia tá acabando com a Barra/ Afunda barcos cheios de crianças/ E dormem tranquilos/ E dormem tranquilos”

“As pessoas vão ver que estão sendo roubadas/ Vai haver uma revolução/ Ao contrário da de 64/ O Brasil é medroso/ Vamos pegar o dinheiro roubado da burguesia/ Vamos pra rua”

(Cazuza, “Burguesia”, 1989”)

Passados tantos anos, os mais ingênuos e os intelectualmente rasteiros ainda não deram o devido crédito ao poderoso legado poético deixado por Cazuza. Os ignorantes de fé o tinham - e têm – como um junkie orgiástico, uma tremenda bobagem. Cazuza é um dos grandes poetas do Brasil contemporâneo.

“Burguesia” foi escrita em 1989. Cazuza já via a cara da morte, tão injusta e antes da hora. O fato de ter pais ricos nunca o fez um burguês boboca sentado à frente da TV nas tardes de domingo: conhecia bossa nova, sambas de tradição, os poetas franceses. Tinha estofo. Muitos não o engoliam por sua homossexualidade latente; muitos outros, por inveja mesmo. Só entende quem namora.

No fim da vida, Cazuza escreveu um de seus mais emblemáticos poemas musicados. “Burguesia” estourou em plena era Collor, o apogeu dos neosertanejos, um país desgovernado nos céus, muita fumaça no ar até hoje não bem explicada. “Burguesia” é mais do que um hino ou o retrato de uma época do país: vinte e três anos depois, tem uma atualidade assustadora assim como toda a obra do poeta. Ecos de “Burguesia” podem ser claramente vistos no trabalho de outro gênio das letras musicais do Brasil: Renato Russo, em “Perfeição”. Os dois poetas foram embora e ainda tinham muito a dizer. Antes disso, “Miséria” - dos Titãs - era também uma poderosa bandeira tremulando no vento.

Os anos se passaram, o Brasil conseguiu se tornar ao mesmo tempo mais moderno e mais atrasado. A partir de 2002, novas políticas de inserção social foram implementadas no sentido de se diminuir a miséria, com grande êxito. Entretanto, o custo desta transformação deixou sua conta: acordos políticos tenebrosos e a grande imprensa como juíza máxima dos acontecimentos, decidindo o que era céu e inferno.

Aos poucos, a força desta mesma imprensa arrefeceu. Não que esteja perto do fim, longe disso, mas aconteceu que temos pelo menos uns 50 milhões de celulares nas ruas com câmeras e as redações não têm mais o poder de decidir o que é a “informação oficial” ou não. Ao mesmo tempo, enquanto as elites econômicas ficaram cada vez mais ruidosas e reacionárias, a classe pobre ascendeu, o sistema televisivo teve que acolhê-la (a contragosto, ressalte-se) e “pessoas sem voz” passaram a tê-la claramente, menos pelo voto e mais pela opinião (o sistema político do Brasil ainda conduz a verdadeiras barbaridades).

A turma que usa Supervia, Metrô e Barcas na metrópole carioca já devia ter pulado no teto há uns cinco ou dez anos, tamanha é a vergonha destes serviços públicos (mal) concedidos. Mas ilude-se quem acha que milhões de pessoas vão às ruas “apenas” pelos centavos que idiotas como Jabor ridicularizaram. E também não é nenhum “fora Dilma”, como os ávidos pela retomada do poder tanto sonhavam - aliás, quando parte do tucanato tentou se promover com as manifestações, o tucano imperial abriu seu bicão e rechaçou imediatamente o ato, num raro gesto de lucidez social – depois dos oitenta anos, até os mais deslumbrados precisam de lucidez. Quem está nas ruas reprova práticas do PT e de seus aliados, sem dúvida, mas não está derrubando nenhum governo e nem de longe querendo a volta de FHC, Serra e congêneres.

Entender a voz das ruas por ora não é simples. Os intelectualmente rasos falam de vandalismo, bem de acordo com o horizonte em que transitam. Há, na verdade, um enorme saco cheio de tudo! A vergonha dos estádios, a questão das passagens sim, a luta por um Brasil que se afaste cada vez mais do imperialismo elitista e se aproxime da maioria – sem deixar a minoria, contudo -, a luta contra o império das comunicações que cria um país irreal contrastado com seu dia-a-dia. Um Brasil mais próximo do que o sentimento no peito exige por um mundo melhor. E isso não tem a ver com a deposição de governantes.

É o saco cheio.

É o cansaço do atraso, do descompromisso com as causas populares, dos choques de ordem que torturam e matam, da opressão, da polícia que quer se fazer justiça ao mesmo tempo.

Vai haver uma revolução ao contrário da de 64. As pessoas não estão mais dispostas a tomar tiros na cara da mesma polícia que financiam com impostos suados. Descontem-se eventuais problemas pontuais nas ruas (depredação etc) que devem ser tratados pela lei, respeitem-se as centenas de milhares de pessoas nas manifestações que querem uma mudança de paradigma. Estão de saco cheio de obras a dois bilhões, quando deveriam ter custado 25% disso. Hospitais caóticos. Sempre importante lembrar o conceito de república federativa - estados e municípios. Cada um tem seu quinhão de culpa em cartório.

Não se trata de tirar um grupo para colocar outro, mas sim a rejeição de todo um conceito para que venha outro, cujo formato ainda não se sabe direito, mas que claramente rejeita clientelismos e discursos mofados de “um país melhor” com velhas práticas que não deram certo no passado e só serviram de prática entreguista dos interesses da nação (alô, torcida do Flamengo, isso não é com vocês!).

Rejeitar inclusive o conceito da elite candanga que, na semana passada, vaiou (com direito, mas sem mérito algum) a presidente num evento oficial. Nem Collor deveria ter passado por isso. Mas a elite não perdoa: se não é o que é dela, é um lixo. Curiosamente, seus lacaios principais, como Jabor e o auto-exilado (com motivo claro) Mainardi afrouxaram seus chicotes fascistas. Todo covarde só comete seus maus atos se tiver certeza de nenhum arranhão – e hoje não parece ser este o caso.

A Globo tendo que emitir nota dizendo que “não edita a verdade das ruas” é, desde já, um marco da vitória do que vem por aí. Ninguém pode entrar nas nossas casas, robotizar nossos pensamentos e nos guiar pelas verdades que interessam apenas a grandes poderes escusos. Isso aconteceu em 1989, mas, depois dos tempos da internet, tornou-se impossível de se repetir.

O STF, tão rigoroso e poderoso nos últimos meses, recolheu-se a um silêncio enorme.

Arautos conservadores não põem a cara sequer na janela.

Mervais e Noblats sem rumo ou bússola.

Brizola, Jango, Niemeyer, Darcy, Prestes, Sérgio Macaco, Glauber Rocha, Mário Pedrosa e tantos outros mereciam estar aqui para que tudo lhe soasse aos olhos de perto.

Antonio Carlos Magalhães, não.

Alguém disse que o povo era burro.

Raras vezes a burrice foi tão bem-devolvida na cara, como se fosse uma torta.

As ruas estão cheias de pensamentos. E vontades.

Tudo o que Cazuza já cantava e não escutaram direito.



@pauloandel

Dedicado a José Augusto Freire







Cities in dust


1984

Amor em quatro estações

I

queria te ter nas quatro estações
ainda mais nesse outono que se despe
e deita para dormir em prosa e sonho
então o inverno, edredom e chocolate
tua pele crua entre lençóis devassos
minha cruz e delícia em te tocar ligeiro
devassar qualquer intimidade tua
e te namorar, namorar, namorar aos poucos
ao bom-bocado com cerejas em cor viva
como se fosse a primeira e última vez
teu corpo quente, doce, tão saboroso
em flores e flores – oh, minha dália!
entregue ao impecável paladar de paixão
tocar, beijar, lambuzar, intumescer
trazer arrepio aos teus delicados seios
viver a saudade do que eu nunca senti
o futuro que me persegue noite e dia
há um inverno chegando tão manso
e cada passo do meu sexo te pertence
mas não apenas sexo – seria pouco
é todo colo, todo toque a te possuir
pensamento, palavra e desejo casados
pensar tua nudez no melhor madrigal
mergulhar para sempre nos teus lábios -
lindos, sedentos e convidativos ao meu ter:
- eu preciso de você agora, meu bem!
- ah, meu amor, eu preciso de você também!
dois corpos nus numa encruzilhada de cama
debruçados entre o tesão e o amor-perfeito
satisfeitos feito fosse o berço esplêndido
- a te sonhar pelos dias faço-me tão vivo
lânguido, teso, tão aceso e disponível
eis um sentimento que não traduz pecado
nem hiato - é muito longe de ser castigo

II

dê um passo à frente
e não esteja mais, não mais
no mesmo lugar
então chegue mais perto
do que parece comigo

dê-me tua mão
aconteça em nossos lábios
misture nossas vaidades
e sacuda muito bem:
seremos créme de la créme
navegue meu colo
e mergulhe tua vista
em meu olhar
apaixonado
duas baías de Guanabara
caras de cão
pedras na praia vermelha
dois namorados em paz
e desimporta
se não for nada além
de um romance fugaz

III

cada passo teu
me interessa
não importa a distância
ou qualquer predicado
eu quero teu bom-dia
e boa-noite e como-vai -
e rezo pela tua voz
juvenil e sincera à beça
quero fazer teus sonhos
com ou sem pressa -
mas nada, no fundo nada
de aguardar à toa
pelo dia de são sempre:
a vida nem sempre é doce
e seria mais fácil
com você aqui do meu lado -
nosso teto sem estrelas, alvo
“dá me tu amor, solo tu amor”
a perdoar os fracassos
e me permita tentar ao menos
te levar à lua cheia
e aí sim ver estrelas de tesão -
deixe eu ser a peça
que te encaixa e completa -
pensar você, mas tigar você
é o que tanto me interessa
meu louco amor nas tuas mãos
e alguma espera singela
por um mísero sinal verde:
- alta velocidade!
- acelera!

@pauloandel

Saturday, June 15, 2013

Sai!

sai
sai da frente
a mocidade

independente
não tem tempo
de esperar
o fascismo que
se desenha  às 
vísceras nuas - 
sai da frente
que não somos
palhacinhos
marionetes
temos o que dizer
e isso tudo
não vai ficar
em vão - 
sai
sai da frente
que a paciência
tem limite tênue
e a sacanagem
vai ter seu fim
pobre de quem 
vê a si mesmo
como eterna 
autoridade:
não conhece a força
da nossa
mocidade

@pauloandel

Friday, June 14, 2013

Avenida Chile


Então VOCÊ desce a Rio Branco, sentido dos carros, cerca de cinco da tarde, as pessoas numa correria enorme debaixo do céu gris e pequeno frio que dominam a Guanabara, todos loucos pelo primeiro bar, baile funk, pagode, ônibus ou trem qualquer quer. Gente abarrotando o Burger King da Ouvidor, Pollyanna sempre gata e com mil tarefas na agência da Caixa, duas garotas comentam sobre traição depois de um fiel dia dos namorados, guardas municipais ávidos por uma ocorrência que garanta o churrasquinho de domingo. Rapazes em roupas formais carregam notebooks e falam de informática o tempo inteiro. Um respeitável senhor põe a fumaça de seu cachimbo para correr. Logo à frente, o caos copacabanense por causa do caos no edifício Avenida Central – um jovem ruivo, lembrando o médico da antiga série ER, tenta vender alguma coisa enquanto sua potencial cliente sorri.

Dobre à direita e vem a avenida – ou rua – Almirante Barroso. Consumidoras felizes andam com presentes comprados em O Boticário, a dona da barraca de tapioca é muito sexy e sempre atende todos com fidalguia impressionante. Camelês vêm e vão de todos os lados enquanto transeuntes correm para o metrô Carioca – querem ir embora, deixar os empregos longe, espantar a solidão. Mulheres e mulheres bonitas de todos os lados, o que faz qualquer um perguntar porque perde tempo com paixões não correspondidas – mulheres lindas de todos os lados! - mulheres a granel.

Funcionários apressadísimos deixam o moderno edifício Ventura e, tal como diria Eduardo Dusek, só pensam em “sartar fora”. Do outro lado da rua, já Avenida Chile, turistas católicos ficam embasbacados com a catedral em forma de funil invertido – tiram fotos, celebram Deus e nem percebem que, a metros dali, mendigos debaixo da passarela acendem uma fogueira pois a noite de mendicância não será nada fácil. Poucos carros, menos do que o esperado. Quase na esquina o moderno prédio do IBGE, não vejo Andrea e penso em meu querido amigo Claudio Bruta Bustamente, falecido tão cedo numa bobagem – morreu dormindo, uma pena, o mundo pela frente.

Quando a Avenida Chile fenece, vem a sede da polícia. Os veteranos da corporação são facilmente identiicáveis, tanto pelas roupas quanto por certa atitude. Quase todos usam capanga – ou bigodes à la John Lord – ou óculos escuros – já não há camisas floridas mas sim pretas.

O café da Gomes Freire parece ideal para se levar a mulher amada e escutar boa música com café e outros bocados – fica quase na esquina, parece ter uma jukebox. A turma da televisão anda solta nos arredores: garotas descoladas, rapazes de cabelos grandes e barbichas. Eu, que vou do nada para lugar nenhum, almejo apenas pães franceses frescos, presunto, suco de laranja e está tudo bem.

Outono no coração da cidade, fim da sexta-feira, corações a mil ora satisfeitos, ora não, saudades e a dificuldade de se entender a vida na terra quando se é adulto. Alguma coisa desacontece no meu coração. Onde estão meus pares?

@pauloandel

nunca

nunca
nunca aceitei esse mundo como ele é
as ruas com dores e mortes
enquanto a indiferença mora em sorrisos
nunca aceitei a hipocrisia
a ingratidão, o descaso
o ir e vir de quem pode pisando
em quem nada tem a perder
nunca aceitei ditaduras do dinheiro
a importância do poder
e sinto-me tão bem quando piso
respeitáveis espaços nobres
com meus chinelos humílimos
nunca aceitei o preconceito
o julgamento oco e ignorante -
até mesmo sobre amor
fiz questão de recusar o fácil
o evidente e que salta aos olhos
nunca aceitei a fome, a miséria
as pequenas esmolas dadas como anistia
das boas almas que vão para o céu
não aceitei e nem aceito
eu não mudo de opinião
e, por isso, seguirei o vale de lágrimas
o caminho das dificuldades
mas sem pestanejar em nenhum momento:
não me sentiria bem ao lado
dos infames e cretinos
dos bajuladores escrotos
dos interesseiros e mesquinhos
nunca, nunca aceitei -
ainda estou vivo e não dependo
da caridade de quem me detesta*


(*sobre “O tempo não para”, Cazuza e Arnaldo Brandão, 1988)

@pauloandel

Tuesday, June 11, 2013

Dia dos Namorados



I

ah, se eu pudesse ter você aqui
do jeito que eu queria tanto
durante todos esses anos vis
eu te daria o meu quintal, o meu país
meu pavilhão em forma de canção
e mil delicias juvenis sem mal
é que eu te quero tanto, ainda tanto
e penso no que nunca te vivi
as saudades do que não aconteceu
os desejos do que fica tão longe
ah, se eu pudesse ter você aqui
todo pecado seria delicia doce
toda beleza vista aos olhos nus
aos corpos nus e almas livres
a minha canção seria só tua, tua
e de mais nenhum outro ouvido
mas a vida não tem aquele doce
e você não está aqui nesta hora
exceto dentro do meu sentimento
agora estou longe, tão longe
mas queria a tua mão na minha mão
uma sentença de ganhar teu coração
um beijo quente de sair do chão
meu inferno e céu na palma da mão
estou longe, tão longe e sofro
eu precisava muito de você aqui

II

chocolate
chocolate
pimenta, cereja e chocolate
eu quero meu banquete
a mesa posta num lençol
um arco do triunfo qualquer
mãos que se tocam
lábios que se querem
corpos que se namoram
meu tesão num chocolate
chocolate com cereja
pecado sem receita
num domingo de sol a sós

III

quando eu estiver cantando
meus versos vão falar de você
cada trecho do poema
é para namorar você
não importa quem me adorna
acompanha ou pilota
meu desejo é você
cada passo meu na rua
procura a calçada
onde estiver você
eu não tenho nada a perder:
apenas meu coração
a solidão
e um amor de mansidão
que vem de outras luas
desde o dia em que soube
que você era tão você

IV

este teu olhar
que persigo
desde que você passava
numa calçada qualquer
traz-me riso e calor
eu te namorava
e você nem sabia
fiz poemas e canções
escrevi contos
machuquei corações
e você passeava
tranquila, infinita
sem perceber como
eu te queria e cantava
eu te namorava
e você não percebia
teu olhar que enfeitiça
amestista em brilho
uma gran covardia:
você, a linda
eu, tão supertramp
my kind of lady
is still shining
in you and your
beautiful eyes

@pauloandel

Monday, June 10, 2013

Tetraedro


I

os comunistas um dia
vão ganhar tributo do mundo
não pelo que fracassou
mas pelo que poderia ter sido
nossas grandes cidades
metrópoles consolidadas
ávidas pelo pecado capital
na verdade estão perdidas:
têm aparência, ostentação
mas um vazio enorme
quando se pensa na maioria
que vive a chorar e ter dor
sem pão, sem casa ou água -
a vida não é uma vitrine
a vida não é uma bestial
estátua da falta de liberdade
a vida não se resume a Nova York -
e o que dizer de Miami?
um dia, os comunistas terão indulto
mas somente no dia em que percebermos
toda a nossa
solidão
perdição
inutilidade do teto ao chão

II

estou mastigando a mim mesmo
salivando, sorvendo
cada pedaço do meu maltratado
corpo e especialmente
o coração a bater e bater e bater
como se fosse um carro à pista
voando longe nas estradas
e você, minha gasolina
meu combustível, minha guia
mas acontece que eu não tenho
como reabastecer em posto -
você não existe, você não chora
e nem vive o que eu vivo aqui:
como te jogar para dentro do tanque?
então fico mastigando-me
até que venha a gastrite, a dor
o sufoco porque não tenho você -
não há médico que cure
nem receitas infalíveis
apenas um carro parado, inútil
uma tarde azul de outono
e um coração descompassado
descontrolado, mas tão louco
pra te ver – é só você querer.

III

deixa eu dizer que te amo?
que te penso e te quero?
deixa eu te dar um encanto
uma oferenda ou prece?
e se eu disser que você
mora em mim? Assim!
e se perigar de você querer
um bocadinho de mim?
deixa eu te levar aos céus?
com sabor de chantilly?
ou chocolate ou cereja?
e se você bailar nua
bem no meu ventre?
e se eu te beijar de cima
a baixo por um semestre
de vinte anos?
deixa eu te dizer das mulheres?
elas ficam perto de mim sim
mas amor é um somente -
aquele que eu procuro em cada boca
pensando ser a tua boca
o que eu namoro em todo colo
pensando no teu colo -
os meus amigos riem:
“você está em grande fase”
“deixa essa besteira pra lá”
“rapaz, são todas iguais”
e nada tira meu pensamento
do querer você – eu tento, tento
tento e pratico mas você
é a imagem do meu bel prazer

IV

grandes avenidas
enormes edifícios
multidões à solta
e uma pequenez d'alma
tamanha, livre
anúncios provocantes
máquinas do estado
poderosas corporações
e a solidão é o bastante
mortes, crimes, fracassos
de um sistema que já ruiu -
a verdade é morta
a mediocridade é tributo
e o mais ingênuo
está em quem não viu.

@pauloandel

Friday, June 07, 2013

Estilingue?

agora somos céu e calor, céu sem gris
nada desampara nossos corações perfeitos
eu e você, uma cidade com suas mãos dadas
seus braços entrelaçados e perseguidores
o teu nu é o que vale e vale muito além*
nenhum porém nem pausa de atrapalhar
o meu gole é o teu gole e uma bebida mansa
para desabrochar desejos escondidos à toa
não é hora de se poupar - vou te estilhaçar
e nenhum caco será história para se contar
ninguém precisa saber qualquer roteiro
que tal viver o que lhe deixam viver sem ver?
no fim das contas, ninguém precisa mesmo saber
um estilingue, eu sou a pedra, você a vidraça
então sou perigosíssimo, uma suprema ameaça
pois eu quero te acertar, te abalroar
eis então você, chocolate ao leite, cerejas e vinho
um céu de concreto e uma relva de pano
que tal você rolar e rolar e rolar sem parar
e sequer pensar quando eu relar em você?
o resto fica por conta do que se possa fazer

@pauloandel

* "O nu que vale", Ed Motta, 1993


Lascívia, dor e desejo


Cenas de um condomínio

I

Quando dei por mim, já estava há muitos minutos beijando Mônica em meu quarto, de modo que despi-la era fundamental. Num súbito, tirei suas roupas delicadamente. A camiseta. O soutien. Então eram dois seios espetaculares, enormes, saborosos, repousando em meu rosto como oferenda do Olimpo. Dias antes eu tinha visto belas fotos de Mônica num álbum de retratos e sequer poderia imaginar que ela estava ali nua, deliciosa, provocante, louca por carinhos enquanto senti-me um vagabundo iluminado. Ah, e o resto? Completamente nua, obrigou-me a beijá-la da cabeça aos pés como se quisesse ocupar cada pedaço de pele, cada poro, tudo o que estivesse disponível. Um corpo lindo para meu bel prazer. Esqueci de outros detalhes e pensamentos, deixei de lado tudo o que me atordoa e fiz da minha boca um descobridor dos sete mares, mais visível quando senti seu ventre tremer de tanto carinho. Ah, o prazer que nos liberta, higieniza a alma, liberta as tristezas e as manda passear do outro lado da Via Láctea. Seios, coxas e dorso só para mim, todas as brincadeiras permitidas, no suculento bronze da pele. E pensar que perdi tanto tempo oprimido com meus pensamentos idiotas que levam do nada ao lugar nenhum – a vida é hoje, a vida é agora, o sexo é abençoado pela leveza do estar – qual o sentido de perder seu tempo com a mulher da tua vida que nem te dá um oi direito? - ou que te olha como um zero à esquerda? Por que desperdiçar as melhores horas do mundo com formalidades inúteis que não atendem nenhum desejo bom? Depois gastamos mais uma hora, duas, três talvez e tudo passou tão rápido que queríamos a réplica, a tréplica e todas as retóricas plausíveis. Ela gemeu quando ganhou chantilly e cerejas para ser meu banquete predileto. Apertou minhas costas com força enquanto eu a lambia e depois deu uma unhada no lençol, o que foi bom. Depois fizemos vários barulhos e suspiros enquanto nos tornamos a melhor sobremesa um do outro e o sábado foi mais feliz do que nunca. Eu não sei de quem Mônica gosta e nem quero saber, mas é bom tê-la para mim por algumas horas, talvez muitas, tantas quantas forem possíveis, mas faço questão de lhe ser o melhor amante, o amigo mais carinhoso, o homem que lhe abraça com desejo e tesão, com jeito de “quero muito mais”. Houve um momento mais tarde em que vivenciamos as melhores palavras de Rubem Braga – o sentimento do prazer cumprido – e isso tem a ver com o lirismo e a poesia que temperam a putaria deliciosa que fizemos, pois. Ao lado, a vizinha nem dá importância ou desconfiança, o que parece melhor. Alvaro Doria diria que este é o cenário perfeito.

II

Dois homens bons e pobres, muito pobres, comem em caixas de leite doadas de alguma instituição de caridade debaixo de uma marquise no coração da grande cidade, a mesma do prédio onde estive com Mônica. Falam de Deus, das famílias que perderam, do sofrimento pela dependência de drogas, a fome, a dor, a inevitável presença da morte a cada dia desperdiçado nessa terra de ninguém onde a indiferença é o reino. Uma sociedade que joga seus pobres como se fosse lixo nas esquinas. Quem precisa se preocupar com isso?

III

Patricia dorme nua em seu quarto confortável numa casa da metrópole. Mil cavalheiros a desejam e a devoram com os olhos. Elá não dá importância ao fato: preferia ser feliz com o homem que tantas vezes a cortejou sem sucesso, até que ele desistiu, mudou-se para Paris e lá conheceu uma linda mulher parecida com Madeleine Peyroux – casou-se com ela. Patrícia dorme nua e não recebe o carinho que sempre mereceu. Mônica certamente é muito mais feliz, nem que seja por apenas um instante.

@pauloandel