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Friday, May 27, 2011

LOS MUERTOS ESTÁN A VIVIR

I

Então o telefone tocou antes da partida de futebol na televisão, jogo do Vasco. Alvaro Doria, que adora frases bombásticas ditas como se nao fossem nada, assim comunicou:

- O marido da Silvia morreu de infarto.


II

Jose era um homem bom, engraçado, divertido. Há coisa de anos, quando frequentava a Livraria Berinjela quase diariamente por conta de minha amizade com um de seus sócios, Maurício, esbarrava com ele. Era o cunhado do outro sócio, Daniel. Eu sempre o via trazendo um carrinho e isopores, por conta dos sanduíches que vendia pelo centro do Rio e arredores. Vindo da Argentina sob crise nos anos noventa, tentava prosperar no Brasil. Na mesma livraria, jogávamos fabulosos campeonatos de futebol de botão, geralmente num domingo a cada mês. Para matar a fome, lá estava Jose com seus sanduíches. Lembro de que ele tinha um dedo da mão parcialmente amputado, o que naquela época era motivo para recusas em processos seletivos de emprego - e há quem diga que o Brasil nunca foi racista nem preconceituoso. Eu me pergunto se os crentes nesta tese vivem como avestruzes. Apesar das supostas dificuldades, sempre chegava com algum sorriso ou piada. Parecia feliz.

Tinha o cabelo liso feito os índios que, de alguma forma, habitaram o solo portenho. Era gordinho, atarracado, de óculos e o portunhol carregado era uma verdade indisfarçável. Era um fã das mulatas cariocas e, entre os amigos cariocas, ficou famosa sua expressão "Negra linda!". Noutra situação, ao admirar as formas da então namorada de um conhecido comum que tínhamos, me chamou e sussurrou:

- Peitinho gozztoço, hã?

Não tínhamos um tostão mas passávamos bem os dias da semana.


III


Nada é para sempre. Um dia, Jose se divorciou e voltou para a Argentina. Não deu tempo de despedida. Mais tarde, Maurício desfez a sociedade. Sempre me lembrava, mas não havia por onde fazer o contato. Assim, os anos escorrem. Estamos sempre muito ocupados com nossos computadores, nossas contas, o ir e vir do nada para o além. É chato ser adulto, tal como conversei com Bola ontem. Campeonatos de botão, nunca mais. Ou quase.


IV

Então o telefone tocou no começo do expediente há coisa de uns vinte dias. Depois de quase um ano, era o Maurício, ligando de outra livraria. As palavras continuavam as mesmas. Tantos anos depois, Jose estava no Rio por conta do aniversário da filha e o tinha visitado. Perguntou por mim, queria meu contato, Mauricio passou, ele acabou não ligando e voltou para a Argentina. Queria tê-lo visto; em compensação, dei um pulo na nova livraria e vi o velho amigo livreiro, pouco antes de ver o maravilhoso show de Elton Medeiros na terça-feira retrasada, no CCBB. Conversamos rápido, fiquei de voltar. Ainda não fui.


V

Então o telefone do Maurício tocou no começo do expediente de ontem, cirurgicamente dez da manhã. Conversamos e falei do ocorrido. Seria uma despedida o que aconteceu antes? Nunca saberemos, talvez. A vida é muito breve.

Jose foi um amigo muito divertido nas inúmeras conversas rápidas que tivemos. Não há uma foto, uma gravação, um registro formal mas sim várias lembranças engraçadas de alguém que, por amor e sobrevivência, não hesitou em tentar a sorte num outro país.

Qualquer morte me dói. Sou ateu. Tenho certeza do fim.

Por outro lado, os mortos nunca foram tão vivos ao meu lado.

Meus maravilhosos pais. O Xuru. O Fred. O João. O Bruta. 
Atores que vejo, escritores que leio.

Tanta música que ouço.

Craques que me deram tanta alegria nos gramados de antigamente.

Será que a morte é morte mesmo? De alguma maneira que sei ser abstrata, estão todos aqui bem perto. A vida persiste enquanto estou por estas bandas.


VI

Voltar no tempo é experiência rara. Fiz isso ontem com meu amigo Bola, ao revirar uma caixona de cds no Extra de Niterói, feito os tempos em que íamos até a Barra para fingir comprar discos, mas na verdade com o intuito de conversar e experimentar essa estranha sensação na terra, que é a da amizade - afinal, hoje é tempo moderno, de redes sociais, amigos virtuais e nenhuma troca.

Bola está muito vivo.

E acho que eu também.


Paulo-Roberto Andel, 28/05/2011 

Thursday, May 26, 2011

RESTOS

nunca pareceu
tão cru aos próprios
olhos,
tão cão vadio
sem lenda ou miséria,
tão liberto
frente ao próprio
vazio -
foi então que,
dolorosamente,
experimentou
sua humanidade
na mais estranha
plenitude.


Paulo-Roberto Andel, 27/05/2011

Tuesday, May 24, 2011

OS CLÁSSICOS SÃO ETERNOS



Hoje, Bob Dylan faz 70 anos.

Não se trata de dizer apenas que é um dos aniversários do rock n' roll, ou da música norte-americana.

Trata-se de um dos aniversários mais esperados da Terra. Para muitos, Bob Dylan é o artista norte-americano mais influente de todos os tempos em qualquer área.

Há quase 50 anos, Bob Dylan dá as cartas na cultura mundial, com sua poesia fantástica, sua reverência ao passado, seu sem-par de temas que serviram (muitas vezes, sem a intenção dele) como música de fundo para protestos, questionamentos e novos paradigmas a partir dos anos 60. Sem Dylan, os pais e quase-avôs de hoje seriam mais pobres do ponto de vista intelectual. E o que dizer de quem influenciou diretamente a ninguém menos do que os Beatles?

Quando tudo parecia perdido e Bob fingia sugerir que tinha perdido a mão, em 1997 ele grava "Time out of mind", um de seus grandes clássicos e, desde então, uma retomada com discos maravilhosos como "Love and Theft" e o magistral "Modern Times". Sim, depois de incendiar toda uma geração do ocidente, já depois dos cinquenta anos ele ainda tinha fôlego para trabalhos espetaculares. Sua "The Neverending Tour" começou em 1988, passando por grandes palcos e ginásios até cabarés do Velho Oeste. Incansável, Dylan é pau para toda obra.

Incansável. Questionador. Provocador. Menestrel. Influência decisiva no pensamento mundial das últimas décadas. Tudo é pouco para descrever o gênio de Bob Dylan.

Quem me dera estes setenta anos pudessem ser cento e cinquenta.

Abraço de sempre e obrigado por tudo, Bob. "The times they are a-changin'"

Paulo-Roberto Andel, 24/05/2011 


Tuesday, May 17, 2011

TARDE NUBLADA

por vezes
me esqueço
das intempéries -
não as da natureza,
feito a tempestade lá fora,
mas as que falam da dor
do ódio, o rancor
a pobreza d'alma humana
que faz tão mal
a certos corações.


por vezes,
desapareço
de meus próprios dramas -
busco exílio
em meu próprio peito
e navego velhos mares
imaginários
ao olhar para o teto
enquanto o silêncio
se faz de cais


por ora,
caminho em minha própria
e emocionante
perdição
quando me deparo
com as tolices da vida-
o que para muitos,
significa fascinação!


Paulo-Roberto Andel, 16/05/2011

Wednesday, May 11, 2011

EXUMAÇÃO DA INFÂNCIA



"Lar doce lar" (para Maurício Maestro), de Cacaso:

"Minha pátria é minha infância: por isso vivo no exílio"

Tuesday, May 10, 2011

CHEGA!

Monday, May 09, 2011

SOMOS ESTRANHOS

Alguns dos melhores livros já escritos não tiveram leitores em demasia; alguns, sequer leitores.

O mesmo vale para discos de música e peças e quadros e telas.

Excelentes - embora poucos - programas de televisão não têm audiência alguma.

Dentre os anônimos na Terra, há alguns dos melhores exemplares de bons humanos, vivos ou mortos.

Somos estranhos.

Estranha a natureza do homem que se basta em poder e dinheiro, fingindo não ver as mazelas do mundo e do próximo, inevitavelmente condenado à apoteose da mediocridade em todos os sentidos.

Não podemos saber todas as coisas do planeta, é evidente. Mas isso não deveria fazer de nossa maioria um perdido entre robôs consumistas, analfabetos com sede de luxo ou um bando de zumbis, esperando uma nova ordem do Jabor, do Mainardi ou do Obama. Não deveria. Mas infelizmente faz.

A parte que nos cabia neste mundo contemporâneo era muito maior do que viver falando sobre o nada nas redes sociais, buscar especialização em fofocas, gastar o tempo com temas e teses comprovadamente inúteis.

Deveríamos ser bem mais do que isso.

O que resta é a dor e o que venha a seguir, nem que seja o fim.

E nada de recomeços.

Reprisar a mediocridade é, em qualquer estágio, abominável.


Paulo-Roberto Andel, 09/05/2011

Wednesday, May 04, 2011

DESANOITECE



desanoitece
quando tento
entender as mazelas
do mundo

e vem
certa alvorada
trôpega
trocando passos
flácidos
entre a esperança
e a ilusão:
ampulheta contra o tempo,
uno frente à multidão


desanoitece
quando me vejo
bicho-homem,
permissivo diante do caos
que se tornou
a extinta fraternidade:
havia uma cidade
em meu bairro, ela
encolheu e calou
para agora, agora,
viver em solene angústia –
a dúvida sob fissão.


longe do antes,
exilado no futuro,
por onde navego à vida?




Paulo-Roberto Andel, 04/05/2011