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Wednesday, May 30, 2007

Casa

dentro do peito, carrego uma casa
que é tua, tão tua que parece nua
não importa se teu mar agora é outro
se a madrugada tem outro namorado
não importa quem me toma pela mão
ou quem te guia na friagem da noite
a casa é tua, sempre e somente tua
quando a deixas vazia, por certo tempo
acontece efêmero e modesto inquilinato
mas é tudo tão passageiro, temporário
a casa é tua, tão nua que parece crua
quando deito cansado, na escuridão
enxergo apenas as luzes da cidade alta
que abrem passagem para tua imagem
e recordo dos teus olhos adolescentes
a formosura do teu corpo em repouso
deitada em berço esplêndido, róseo
tão nua e crua como a casa que é tua,
carregada pela solidão do meu amor


Paulo-Roberto Ândel, 22/05/2007

O nada

eu era um zero
na ponta direita
no meio do nada
oh, nada
lá fora, mundo girava
com suas penas, dores

era canto de janela
era riso de morte
na varanda, infarto
no coração despedaçado, esperança
eu era um meia-direita
na ponta do nada
cantava amor e despedida
enquanto era chuva na relva
oh, fato
lá fora, mndo girava
cá dentro, desmilinguia
parecia um domingo cinza
antes da noite mais longa
que bem podia negar o que via
era vida vazia, derramada
a garrafa de vidro sem gás
era turma desamparada
mal-aquinhoada aos vinténs
desacreditada merda


Paulo-Roberto Ândel, 20/05/2007

Das pedras que rolam

por vezes, as pessoas relutam em mudar
por conta da natureza humana, conservadora
parece natural manter tudo em seu lugar
eu, contudo, oponho-me com veemência
acredito na importância da mudança
não se trata de rasgar as convicções
mas sim a saudável alternativa de mudar
feito o vivenciar de um novo pleno amor
feito o escutar de uma nova música
ler e ver outras coisas, personagens
até mesmo desfazer o rol de inimizades
a mudança renova o viço da vida
e permite novos enfoques, perspectivas
modificar detalhes, reparar nuances
viver a vida de outros outros modos
mesmo que signifique encarar espinhos
e deixar pelo caminho o que muito se amou
eu mudo a cada instante, cada mudança
e mudo, renovo incessantemente
eu mudo para não ser pedra com limo
feito certa poesia que definiu o mundo


Paulo-Roberto Ândel, 11/05/2007

Friday, May 25, 2007

Teus olhos

ao fundo, dorme o encanto da noite
e as águas beijam o ligeiro d'areia
durante o vaivém da baixamar
a praia, hoje quase deserta
é repleta de luzes da cidade
é moldura ideal dos teus olhos
que emanam faíscas enluaradas
e fazem conjunto com tua tez
da cor, não sei dizer os nomes
duas ágatas? ametistas?
jóias, quase garanto que são
feitiços do mar de copacabana
teus olhos, vivos, flamejantes
que remetem-me a certo dia
onde tudo era mais que uma vez,
onde ipanema era de pedro brito
sucedeu um acontecimento
e daí aprendi o que era beleza
tal como hoje, ela brilhava madrugada
morava nos teus olhos

11/05/2007

O dezenove

eu, pequeno e frágil de vida
tomava os bondes apinhados
e, repentinamente, encantava-me
pelo ponto chic, pela estação da luz
e a famosa avenida de são joão
foram idas e vindas curtas,
rápidas como nossa vida exige
todas desembocavam idênticas
na mesma noite, no mesmo mar
na mesma vista do palácio
eu, pequerrucho de vida
desfraldava meu coração à toa
mas fazia escoar toda dor e miséria
quando era um dezenove qualquer
onde parecia desesperança,
cerrava meus olhos de jabuticaba
ao abrir, copacabana era meu afago
eu era um dezenove qualquer
e o mundo sorria, quase falso
era um mar que só chacoalhava
terra firme, só copacabana

06/05/2007

Luciene

veio-me certa canção de trás dos montes
ela me falava de um bem que se quis
foi doce a voz que me serviu de trilha
enquanto via, saudoso, na lembrança,
a imagem da moça no teto fosco de gelo
via seus cachos, nos arredores, fartos
tangenciando o vigor dos olhos claros
e toda a formosura do nariz itálico
via o alvo e belo corpo de maios atrás
enquanto as frass da canção corriam
misturando-se a outra delicada voz
de tom suave e inabalável leveza
mais que isso, eram meus os céus
em toda rua de são francisco xavier
a turma do metropolitano no lanche
pelas vielas da dias da cruz, santa
quando a canção tomou encerramento
temi pelo desaparecimento da moça
mas era engano, era mais que bela vista
era bela como sempre, européia
não sei onde mora, com quem anda, solta
ando meio desligado

06/05/2007

Friday, May 11, 2007

O berro da estátua

Escrevo porque não me basto
É preciso espalhar-me em letras
Para compensar os fonemas
Que rumino diariamente
Enquantos os ouvidos são expectadores
Imersos no mais profundo desdém


Paulo Roberto Andel, 11/05/2007

Monday, May 07, 2007

NYC

faço-me nativo da noite chuvosa
enquanto a Bahia é Guanabara
ao longe, ouço rufar de tambores
ecoando de New York City

lá, certo mendigo dança reggae
ao mesmo tempo em que dois moços
afrodescendentes
relembram seus mortos de fome

os três ocupam a mesma calçada
onde se vê estampada bandeira
cheia de cores e vida, contrapartida
metáfora da paz entre iguais

existe um melodioso barulho, mutante
nas vias públicas de New York City
ele vem das buzinas e campainhas,
do ir e vir das gentes, todos os povos

desfilam um carnaval de nações
e fazem vezes de legiões urbanas
John Coltrane silenciou seu jazz
e Lou Reed pode parecer ausente

mas nada abala o calor de vida
da cosmopolita New York City
uma réstia opaca de sol a pino
ainda reluz em New York City

Paulo Roberto Andel, 07/05/2007

Destroços da liberdade

minha liberdade é tonta,
é bêbada e torta
escora-se pelos cantos,
pelas vielas baixas
e, num beco de curta saída,
vive entorpecida
para não encarar o vil,
a torpe realidade
minha liberdade é cidadã natimorta
realidade é a natureza morta
ausente da liberdade tão ansiada
e que só vive nos sonhos fugazes
desejos cristalizados quando sou tonto,
bêbado e torto, morto e vago
eu sou minha frágil realidade
e resta-se a singeleza do cárcere
estou isolado por grades que não se vê
e guardas que não se nota muito bem
um dia novo traz anunciação
estou cego para a alforria
tão cego quanto o abraço que promete
mas não me aquece
tão surdo quanto o beijo que se molha
mas não me deságua
eu sou minha liberdade


Paulo Roberto Andel, 04/05/2007

A poesia torta

é hora de subverter a poesia
torná-la simples, trivial
a poesia tem de ser plural
paratodos, valer a escrita
versos de amor e fé, construções arrebatadoras
tudo deve ser espalhado
repartido, compartilhado por todas mentes vivas
derramar poesia pelas praças, alamedas e travessas
cabe a poesia na porta dos botecos
e mesmo nas marquises mal-frequentadas
é tempo de subverter a poesia
para que sopre leve e faceira, mas intensa
feito a brisa de primavera
abençoando cada colo de mulher
cada corrida de criança a brincar
cada balão que fugir para os céus,
desamarrado e livre
tão livre como devem ser nossos sonhos
e nossa poesia
todos a céu aberto
namorando azul de atmosfera


Paulo Roberto Andel, 04/05/2007

Rascunhos

eis minha vida, em rabiscos
sobrescrita pelos cadernos
repensada, toda feita a lápis
com a sincera ingenuidade
que toda borracha apagaria
não fosse tudo ledo engano
pois o látex pode tirar a cor
ou o viço impresso no papel
mas nunca os vincos
pois o texto foi escrito com vigor
e as marcas beijaram com sede
a folha de caderno espiralada
são marcas permanentes
retratos de vida para sempre
no calor de beijo eterno
tatuagem que não se remove


Paulo Roberto Andel, 04/05/2007