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Friday, August 17, 2018

cão

Eu sou o cão de olhar perdido em noite fria debaixo de uma marquise da Cruz Vermelha, enquanto meu dono desmaia de sofrimento, cansaço e indiferença. Não consigo latir nem brincar, apenas olhar para o nada que chamam de horizonte, enquanto também sou desprezado pelos transeuntes, que me consideram o símbolo de uma derrota. Eu olho para o nada e vejo outros cães noutras calçadas, muitos feito eu e outros tão bem tratados que sequer usam coleira. Eu sou um cão da noite triste e ninguém passa a mão na minha cabeça ou me oferece um nugget. Estou aos pés do sofrimento do meu dono e do meu mesmo, sem latir e pensar, irracional que posso ser. Metros acima, as luzes indicam que as pessoas estão comemorando gols, xingando políticos e rolando em berço esplêndido de cólera. Eu sou um cão sem dono, sem latido, sem futuro e fico tranquilamente apreciando todas as horas do fim, como se coubesse num poema de Torquato Neto. Cão, cachorro, bicho de estimação sem estima, o que me resta é a solidariedade do meu dono desmaiado em cima das frias e cortantes pedras portuguesas. Eu só queria um bife, uma coberta, um dia de vida em busca deste sentimento tão nobre - e vedado aos caninos - chamado de paz. Eu, tão cão da noite e do desalento, posso ser mais humano do que os humanos que me veem com nojo. Eu, cão triste, amigo sincero do homem que passa apressado para fugir da minha miséria. Ele, tão ser gregário, tão hipócrita e eu, contando mais um dia de vida ou de pena cumprida, ou ainda do caminho inevitável para a morte, outro verso de Gil.

@pauloandel

Thursday, August 16, 2018

Por que voto em Elika Takimoto



Por absoluta sorte, tenho acompanhado a trajetória de Elika Takimoto bem de perto desde fins do século XX. Perto daquele tempo e pouco depois, ela se esfalfava para cuidar de duas crianças, seus filhos Hideo e Nara (Yuki, o terceiro, só viria mais tarde), da casa, do marido, dos estudos, do trabalho como professora e mantinha sob absoluto sigilo um talento que o tempo tratou de desvelar para o Brasil: o de uma escritora de mão cheia, uma memorialista de marca maior, digna de Zélia Gattai (com quem manteve contato, aliás).
         
De lá para cá, o que já era ótimo só melhorou: não bastasse se tornar uma autora reconhecida e premiada, Elika avançou em todos os sentidos. Quando o assunto é formação acadêmica, chegou ao doutorado em Filosofia. Como professora de física e coordenadora do Cefet-RJ, percorreu o país como palestrante aclamada e só falta dar autógrafos aos alunos, de tão querida que é. Conhece tudo sobre escola e universidade, seus aquários natais e de ofício. Seu livro “Isaac no mundo das partículas”, sucesso de vendas, baseou uma peça de teatro infantil aclamada por crítica e público.
        
Mãe, mulher, moradora de Madureira na divisa com Cascadura (mais Rio de Janeiro raiz, impossível), fiel escudeira da Educação, filha de japonês, dona de uma risada inconfundível, trabalhadora, nos últimos anos Elika arrebatou uma legião de fãs nas redes sociais por muitos motivos, sendo o principal deles a luta pela democracia que existiu um dia no Brasil, além da sua visão em 360 graus a respeito das mazelas que têm vitimado o povo brasileiro e, em especial, o do Rio de Janeiro: genocídio, violência ostensiva, desemprego a granel, demolição econômica, degradação política, saúde na sarjeta, educação à míngua, desesperança.
         
E tudo isso com uma coragem que se espera dos protagonistas da história: justamente em meio ao caos, no mar de ódio que o golpe de 2016 espalhou pelo Brasil, ela navegou contra o linchamento midiático que foi meticulosamente instaurado contra o Partido dos Trabalhadores e, em especial, a figura de Lula – qualquer pessoa minimamente informada percebe os movimentos das grandes corporações de comunicação quando o assunto é oprimir e alienar o povo brasileiro, sendo que o Rio de Janeiro sentiu o baque da implosão a olhos nus da Petrobras como nenhuma outra unidade da federação. Daí sua indignação contra o golpe, contra o cárcere privado de Lula, contra o sequestro da democracia brasileira, contra a implosão do Rio, contra a destruição das políticas de inclusão social que salvaram a vida de milhões de pessoas desde 2002, contra o entreguismo feroz que só atende aos anseios do capital rentista e mais nada, enquanto os integrantes de três famílias controladoras da holding Itaú-Unibanco receberam 9 bilhões de reais em cinco anos a título de dividendos, sendo três bilhões somente em 2017 com zero imposto de renda. Tudo em meio a uma crise que, organizada pela vilania, fez com que no mesmo período fosse dobrado o número de desempregados no país, sem contar os desalentados (aqueles que desistiram de procurar por uma vaga).

Apesar de seu extremo bom humor, Elika é naturalmente uma cidadã indignada. Ela sabe que o Rio e o Brasil podem ser diferentes do que esse arremedo golpista de agora – e diferentes para muito melhor. É disso que nasce a sua candidatura. E justamente por ela ter vindo “de fora” do ambiente político convencional, tem gás de sobra contra os velhos fisiologismos dos quais estamos todos bastante cansados. Trata-se de uma acadêmica de sucesso, uma intelectual bem-preparada que vai muito além das salas de pesquisa: por sua formação e vivência, ela sabe do riscado quando se fala de trem, de subúrbio alijado de política cultural, da saúde ausente, da segurança esquálida, de colégio abandonado, da cidade tão partida e injusta que é dividida pelo muro invisível (mas presente) entre o balneário e os bairros-alojamentos. Além do mais, quem define sobre quem vem “de dentro” ou “de fora” da política partidária, ou quem “pode” vir ou não? Ela, a política, é para todos!
         
Para finalizar, meu voto não é somente em uma mulher com enorme estofo intelectual, acadêmico, familiar, social e moral, com fartas realizações em sua vida pessoal. Aqui peço licença para falar de ética, de apreço, de honestidade, de sinceridade, de decência. Elika é uma das pessoas em quem mais confio nesta Terra. Eu a vi crescer e se agigantar sem dar um único passo se esquecendo de sua trajetória e de quem a cerca. Posso falar disso de cadeira: generosamente, ela é a prefaciadora dos meus dois livros “Cenas do Centro do Rio”, minha primeira incentivadora literária, minha querida companheira de mesas e lançamentos – e, para qualquer escritor que se preze, o que modestamente é meu caso, prefácio é coisa que só se oferece a quem se confia e se admira muito. Falando em literatura, Elika é novamente um desafio: cansada de ler as negativas mais estapafúrdias das editoras para a publicação de suas obras (ah, editoras, que pisam em seus autores sem dó...), ela pôs a mão na massa e lançou seus títulos de maneira independente, já tendo sido lida por milhares e milhares de pessoas. Convém não dizer a ela que algo de bom não pode ser feito sem um motivo muito justo e comprovado, senão...
         
Elika pensa no próximo e sofre com a dor do outro. E pensa num mundo mais justo, mais humano, um mundo de inclusão e participação, de justiça, de democracia. Embora seja jovem e com o mundo pela frente, ela é uma veterana do ensino e, por isso mesmo, tem a capacidade de dar a aula magna que o Rio de Janeiro anda precisando tanto: a da política participativa, plural e democrática, a da política popular. Eu confio e vou com ela onde estiver. Precisamos de gente com atitude para mudar o mundo, e isso começa pela nossa cidade, pelo nosso estado, pelo nosso país, e essa atitude tem que ser exercida no voto, com realizações em prol da população. Que minha amiga tenha toda a sorte do mundo nesta jornada – e creio plenamente que terá -, porque nela eu tenho a esperança de ver a política do Rio de Janeiro em seu devido lugar: nas manchetes de grandes realizações populares - e não nas de tragédias policiais, como tem sido ultimamente.



#EuVotoElika
#13021
#RioDeJaneiro


Tuesday, August 14, 2018

Retratos de agosto

(ou os corações solitários no ponto de ônibus
em frente ao prédio com pilotis)


a miséria é
livre é
grátis é
democrática:
todos estamos fudidos

mas há quem aplauda
o que está acontecendo
como se estivesse na fila
dos banheiros em auschwitz

e dissesse: há de ser
uma ducha boa!
todos estamos desempregados
humilhados, escorraçados
enquanto as manchetes da tevê
saúdam o lucro dos bancos
os condomínios de gran luxo
e a balança comercial

a miséria está em todas as calçadas
e marquises
nas praças abandonadas
no vinco dos rostos sofridos
que dormem ao relento gelado
ela, miséria, generosa que é, se espalha
e abraça cada vez mais gente
todos somos mendigos:
se não for das ruas, que seja das almas
do nosso vazio indiferente
do nosso foda-se o outro
existe no ar o misterioso sono da eternidade
quee flutua nos corpos
recolhidos na uerj e nos trilhos
do metrô
e nos restos mortais no iml
somos estúpidos demais
demais!

Sunday, August 12, 2018

manhãzinha

o silêncio profundo na manhãzinha de domingo. um ônibus corta a cruz vermelha lentamente. os notívagos deixam a boemia da lapa para trás, caminhando lentamente. um ou outro carro passa.

do lado de fora da janela do quarto mora um silêncio. a réstia de luz escapa por dentro da cortina azul.

há mil domingos ou dois mil domingos, eu achava que era mais feliz. pão, presunto, queijo prato, um litro de leite em saco plástico, muitos jornais, a família batendo os talheres no ir e vir da minúscula cozinha. a esperança de um bom jogo no maracanã, de um belo show na praça do arpoador, de uma caminhada pela praia apaixonada de copacabana.

as pessoas sofriam, mas havia uma doce ilusão de futuro, o tal país do futuro, aquele que, ao que tudo indica, jamais chegará. era triste, mas diferente deste silêncio de desalento, de morte em vida. gente que virou número, quadro, objeto a ser descartado, lixo sem reciclagem condenado a morrer sufocado pelo próprio chorume.

onde foram parar os bêbados admiráveis que passavam do lado de fora da janela, cantando e espantando a dor às seis e meia de domingo?

do lado de fora da janela existe uma cidade fantasma, incapaz de impedir a agonia que alimenta seus suicidas miseráveis e tristes. a banca não tem jornais, a padaria não abre, os talheres estão imóveis, existe sofrimento e melancolia. ninguém espera um grande jogo no maracanã, nunca mais o arpoador abrigará um show especial.

ao quase longe, os miseráveis da cruz vermelha começam mais um dia de sofrimento em seus caminhos inevitáveis para a morte. não há nenhuma celebração. não há qualquer motivo para se festejar o que quer que seja. menos mal que, daqui a pouco, crianças vão chutar uma bola velha no asfalto da rua de lazer.

está me faltando coragem física para abrir a caixa do Tom Zé, o duplo do Bob Dylan 1966 e o box do Police. enquanto isso, o sol se torna mais vivo por trás da cortina azul. os filhos vão abraçar os pais, vão chorar por eles ou tentar entender este mundo de incompreensão e tristeza, onde é normal ver as pessoas jogadas na rua feito mascates da vagabundagem - eles estão lá porque querem, diz um comentarista primitivo do cotidiano.

ah, quem me dera pudesse voltar a jogar futebol com meus amigos, sonhar com um domingo feliz, sonhar com um país e um mundo que não são meus e, na verdade, revê-los como eles nunca foram.

às vezes os pais são muito felizes. noutras, eles são abraço e fé. noutras, eles são a lembrança da réstia de sol que penetra pelo meio da cortina azul, fechada. os filhos procuram os pais, o futuro repete o passado por alguns instantes, até que ronca o motor de um ônibus e é o único sinal de oposição numa estranha coalizão de fracassos. o que vem pela frente, ninguém sabe, ninguém.

@pauloandel

Friday, August 10, 2018

cortar cortar

vamos cortar vamos?

vamos cortar as gorduras

as despesas

vamos vamos cortar

as divergências e desacertos

vamos!

que tal cortar na própria

carne?

cortar os outros, os baratos

vamos cortar nossos sonhos!

vamos cortar os números

os empregados, os investimentos

cortar postos, ora!

hora de cortar despesas: são

tudo investimento FODA-SE

vamos nos cortar uns aos outros

com belas balas

cortar o caminho, abreviá-lo

cortar, cortar, cortar

cortar as vidas de merda

até que o nada e a destruição sejam

um só: irmãos siameses

namorados de mãos dadas

celebrando uma guerra que só tem

derrotados

suicidas

e corpos putrefatos:

os pedaços podres no

chão atestam o sumo

da nossa ignorância

@pauloandel