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Tuesday, January 21, 2025

KitKat Junky Man

Estou obcecado por KitKat. Até outro dia eu zombava dele e de seus fãs, porque o Bis sempre foi melhor. Mas agora eu sou um traidor de mim mesmo. Já nos ensinou Enrico Bianco: "a única coisa importante no homem é a sua contradição" - conheço gente que, hipócrita mesmo, praticou contradições muito mais graves. Depois de anos e anos, tenho comido KitKat como se fosse um junkie de Copacabana em P & B na calçada da Prado Júnior. Prefiro ok branco, mas o KitKat marrom também é ótimo, geladinho. Enquanto o mund fora é triste e cinza, meu KitKat traz cores de alegria. Enquanto idiotas perseguem o comunismo em 2025, KitKat traz a paz na terra aos junkies de boa vontade. Ah, o KitKat parece o beijo daquela gata cujo nome preservo, beijo de arder e suar feito tesão. E daí que eu não gostasse antes? Eu também odiei o Smashing Pumpkins até me apaixonar. Os gostos mudam. Agora eu dou um porradão em mim mesmo, ora, sorvendo cada pedaço crocante. Só os idiotas não se contradizem, só os idiotas perseguem os que traem a si próprios. Me deixe em paz com meu contraditório, porra: eu não sou perfeito. 

@p.r.andel

Monday, January 20, 2025

Madrugada

O que estará acontecendo neste instante durante o sono - ou a insônia - de tantas pessoas hipócritas, falsas e egoístas? 

Cenas de remorso ou escrotidão? 

Ninguém nunca sabe. 

O que será? 

[Só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção

Wednesday, January 15, 2025

Aprovado

Muitas pessoas comemorando aprovação na UERJ, pais e filhos. Essa alegria eu conheço bem há 37 anos, tempo demais. Em 1988 não havia celular nem computador ou internet, você comprava o Jornal dos Sports e procurava sua inscrição no Olimpo. A minha estava. Acho que foi a primeira vez - e uma das únicas - que chorei de alegria. Eu não sabia comemorar. Meses antes, meu tio - que pagou minha faculdade anterior - tinha morrido. Eu não conseguia emprego, nem estudar, não tinha cursinho e a fase final era discursiva, tinha que encarar. Bem, eu estava no bom e velho grupo de escoteiros, tínhamos organizado um bingo para arrecadar recursos para um acampamento. Eu desci, comprei o jornal, li e chorei sozinho. Não falei com ninguém, ninguém me abraçou, eu sou assim - estou acostumado à frieza. Mais tarde minha mãe apareceu e dei um abraço nela. Ficou toda contente, imagine: ela, trabalhadora, lutadora, que mal fez o primário, colocou o filho na faculdade. Naquele tempo, nossa vida era muito difícil e meu pai achou aquilo sem importância; na época fiquei triste mas hoje entendo, ele sofria demais. Passou. Tantos anos depois, aquele dia ainda é muito especial para mim. Mudou minha vida para sempre. Durante alguns anos, convivi com jovens homens e mulheres da pesada, aprendi um milhão de coisas; vivi experiências acadêmicas, culturais e artísticas incríveis - de Luiz Carlos Prestes a Cássia Eller e Tom Jobim. Vi filmes incríveis, joguei bola, beijei garotas lindas, ri com muita gente e quase todos ficaram para sempre comigo, mesmo ausentes fisicamente mas na cabeça e no coração. E ainda pude ajudar bastante meus pais em seus anos finais, fruto da minha capacitação. Eu entendo essa alegria dos pais e filhos hoje, ela ainda percorre meus sentimentos. Eu sei, a gente sabe mas não se cansa de sentir. 

@p.r.andel

Monday, January 13, 2025

Trivial

É manhã enrustida.

Enquanto o céu vai trocando de azul, sinto dores.

O silêncio da noite, rascante.

Lá longe, os trabalhadores se movem de suas casas para encarar o trabalho. Alguns choram. Eu também acuso o golpe. 

Fred faria 58 anos hoje. Mal passou dos 42. Ele faz falta. 

Agora são cinco horas. 

Os dias se repetem.

Saturday, January 11, 2025

O jeito é ficar trancado

As festas de fim de ano são importantes. A gente tem a sensação de que um ciclo acabou e virá outro, virtuoso. Passa o Natal, a gente se enche de esperança para aguentar o tranco, estouram os fogos malditos para aterrorizar os bichos, então começa janeiro e… tudo está onde sempre esteve. Os problemas, as dívidas, os desencontros e, para muita gente, o verdadeiro desespero. Por fim, a nossa querida cidade, que é linda em vários lugares mas que é um verdadeiro martírio para milhões de cariocas. 

Desde garoto, sempre gostei dos noticiários locais. Eu sempre gostei da minha cidade. Adorava espiar o Guia Rex para conhecer as ruas, saber as divisas dos bairros. E durante muito tempo eu fui um cidadão que viveu a pulsação das ruas. Minha juventude foi em Copacabana, já disse isso muitas vezes e não me canso, na verdade me orgulho disso. Durou de 1968, um ano nada fácil, até 1993. De lá para cá, estou no Centro do Rio, até onde der. Pois bem, conheci muitos bairros e especialmente quando me tornei aluno da UERJ, fiz toda a travessia do Rio, do Leme a Santa Cruz, de Jacarepaguá ao Catete e por aí vai. 

Aos poucos, o ritmo foi diminuindo. Os eternos amigos de bar somem, o tempo passa, as pessoas se afastam, você se casa e sua vida fica essencialmente caseira. Se contarmos o avanço da internet e os costumes pós pandemia, aí é que a turma se entoca. As conversas se limitam ao WhatsApp. Sim, o mundo mudou sem dúvida, e é claro que a cidade nunca foi fácil com tanta desigualdade, mas era diferente. Diferente. Muita coisa hoje atrapalha os convívios, a internet também, mas o fato é que a violência carioca já ultrapassou há muito os limites da brutalidade, o que cria uma multidão de cariocas enjaulados. 

Boa parte do Rio não tem a funcionalidade do Estado. São muitos territórios onde imperam as leis do tráfico e/ou da milícia. Diariamente milhões de cariocas são oprimidos pela vontade do crime, que submete, humilha, tortura e assassina rindo. Um simples comentário pode ser tido como fofoca e a barbárie justifica que uma garota faladeira tenha seu cabelo raspado ou tampinhas de refrigerante coladas em seu couro cabeludo. Você não pode ir, vir, não pode usar determinadas cores de roupas, não pode ir a determinados lugares, não pode mexer os braços, não pode falar e em breve não poderá mais respirar. 

Quando não é o caso das favelas e comunidades sequestradas por bandidos, a qualquer momento e em qualquer bairro você pode ser enquadrado por carros e motos prontos para te fuzilar, com total ausência policial. E não tem dia no Rio em que alguém não seja fuzilado. Quando isso não acontece, a vítima tem “sorte” por “só* ter sido agredida. Morte, morte, morte, tortura, ódio, até onde isso irá piorar? 

São oito da noite de sábado. Eu pensei em jantar na rua. Talvez comer um sanduíche na padaria. Acontece que dá medo. O Rio dá medo. Pelo menos daqui, sem sair, o máximo que escuto são os tiros de Santa Teresa. Eu fui um cidadão que viveu intensamente as ruas dessa cidade, é uma pena que isso acabou e, pelo visto, não tem mais volta. O jeito é ficar trancado. 

Gata argentina

aquela tua boca 

de gata argentina 

gata branca de Hollywood 

cacheadinha com seu

sorriso de linda e tímida 


te procuro em águas 

que não sei navegar -  

apenas mergulho

sem compromisso 

com a grande vitória, 

procurando em vão 

por uma garrafa 

que eu mesmo atirei

no Atlântico Sul -

que tal saudade? 


aquele teu sorriso

de gata argentina 

brilha numa foto antiga:

this is modern times!

Wednesday, January 08, 2025

Ainda sobre o Goldenglôbi

1) Impressionante como tanta gente teoricamente culta, intelectualizada, informada etc ainda não tenha se dado conta do tamanho da conquista de Fernanda Torres e toda a equipe de "Ainda estou aqui". Nada, absolutamente nada tem condições de diminuir essa vitória, goste-se ou não de seus protagonistas, de suas trajetórias pessoais etc; 

2) Depreciar o tamanho dessa conquista repete um velho comportamento à brasileira que já vitimou personagens tão díspares quanto Pelé, Tom Jobim, todo o Cinema Novo, Chico Buarque (como escritor), Paulo Coelho, Vanderlei Luxemburgo, Emerson Fittipaldi (argh), Piquet (argh), Éder Jofre, a própria Anitta recentemente etc: a incapacidade de aplaudir a expressiva e evidente vitória alheia. Não é uma questão de defesa artístico-intelectual, nem de orientação política, mas da mistura do velho complexo de vira latas com um recalque continental. Não surpreende: em meu minúsculo universo cotidiano, percebo direitinho quando algum trabalho meu ganha mínimo destaque, ou simplesmente quando lanço/anuncio um novo livro, e então percebo a reação de alguns "amigos"...

3) Se à essa altura do campeonato, alguém te disse que a vitória de Fernanda foi "safadeza da Lei Rouanet" e outras selvagerias mentais equivalentes, é melhor rir da criatura tosca. 

@p.r.andel

Monday, January 06, 2025

O verão também presta

Começou o ano novo. Mais um em nosso caminho inevitável para a morte. É janeiro, logo é verão, gatinhas, engarrafamento, assaltos, um calor do inferno, uma promessa de novidade que nem sempre é tão nova assim. 

A canção já dizia “É verão/ bom sinal/ já é tempo/ de abrir o coração e sonhar”. Versos bonitos com os maravilhosos vocais do Roupa Nova,que nem sempre se aplicam ao verdadeiro turbilhão de emoções que se vive no Rio de Janeiro. Tá tudo aí, para dar e vender, escapando de uma e outra bala perdida. 

No calor é mais difícil aturar os espíritos de porco, né? Por exemplo você, imagina a esquina da rua Sete de Setembro com a avenida Rio Branco, a gente fala do coração da cidade do Rio. Normalmente é um lugar que tem uma certa concentração de carros à medida que vai se aproximando no Largo da Carioca, onde o trânsito é fechado e você precisa desviar à esquerda para fazer a volta. Pois bem, quase sempre tem um desgraçado que, na hora em que o sinal vai fechar, mete o carro em cima da faixa de pedestres. 

Ele sabe que não vai dar tempo. Ele sabe que não tem como fazer, mas mete o carro assim mesmo só para sacanear as pessoas na hora de atravessar, então pacificamente elas desviam do maldito carro e atravessam fora da faixa contra a vontade, já que o cidadão está ocupando o espaço destinado ao povo a pé. Não tem um dia de segunda a sexta que isso não aconteça pelo menos dez vezes por dia: pode fazer as estatísticas, pode anotar e acompanhar. Toda vez é a mesma coisa, é um negócio realmente impressionante. 

Pra não dizerem que sou um chato, a parte marítima vai bem, obrigado. Solzão, calor mate no tanquinho, esportes, mulheres maravilhosas, todo mundo tentando literalmente o seu lugar ao Sol, os turistas se esbaldando a valer por toda parte. Mas acontece que a cidade não se limita a isso, né? E cada vez mais está ficando quente no Rio de Janeiro, um inferno. 

Muita gente trabalha e sem facilidade, né? Às vezes com ternos pesadíssimos, roupas, fardas e botas. Enfim, gente que passa mal com tanto calor, que não tem a menor facilidade na estação que muitos vibram por estarem nas férias, mas que outros sofrem de montão. Eu mesmo sofro imensamente com calor desde criança, sempre me fez mal, mas felizmente a minha situação de camelô sofisticado me permite trabalhar em minha própria loja com bermudas e chinelos. A maioria não tem essa sorte, e por eles sofro. 

Tudo bem. Ninguém aqui é contra a felicidade no verão nem contra os veranistas. É só para dizer que uma parte da turma sofre para viver nessa época. E que o Rio não é somente orla - o subúrbio tem uma longa e sofrida história. Mas é legal que as crianças, assim como os que podem viver o melhor do verão nessa vida, também se lembrem dos excluídos do bronze. Muita gente na luta, tentando sobreviver como dá. 

Para terminar, a frase da Fernanda Torres pós Bola de Ouro faz pensar: “A vida presta”. No calorão do verão ou mesmo quando o bom outono chegar. O verão também presta, ok. 

Vence o cinema

Tomara que um dos grandes lances da vitória avassaladora de Fernanda Torres no Globo de Ouro seja, sinceramente, a busca de parte dos brasileiros por sua própria arte. 

Longe de qualquer discurso nacionalesco - tou fora disso, ouço de Bezerra da Silva a Slayer -, sempre tive em mente que precisamos dar valor coletivamente ao nosso cinema, teatro, à musica, às nossas artes em geral. 

Temos uma infinita expressão artística de qualidade. No cinema, não há dúvidas: basta ver o Canal Brasil com algum tempo. Você vai ver filmes sensacionais de todas as épocas. No Rio, o movimento do Estação, liderado pela força da natureza que é o Cavi, tem formado novas gerações de cinéfilos marcando ponto diariamente. 

Viva o cinema do Brasil!

Sunday, January 05, 2025

Bosasova Bova - Zumbi do Mato

Em 2024, o Rio de Janeiro saiu da pasmaceira musical e soltou um verdadeiro rojão sonoro, daqueles típicos de avant-garde que a cidade foi especialista no passado. Tudo aconteceu com o lançamento de “Bosasova Bova”, álbum que marca a volta do Zumbi do Mato à cena musical depois de encerrar as atividades em 2013. Desde o retorno, a banda tem feito shows concorridos no cenário underground carioca e o novo álbum está disponível nas plataformas digitais.

Provavelmente a melhor maneira de descrever o som do Zumbi (mas nem de longe única) vem de seu próprio perfil na Wikipedia. Vejamos: 

“Zumbi do Mato é uma banda brasileira de rock experimental/noise rock do Rio de Janeiro famosa por suas canções bem-humoradas e surreais, escritas num estilo de fluxo de consciência e repletas de alusões mordazes à cultura popular – focando particularmente em aspectos como a literatura/filosofia ocidental, a vida cotidiana no Brasil, e figuras públicas da vida real e personagens fictícios de diversas formas de mídia –, technobabble, escatologia, nonsense, e elaborados jogos de palavras e trocadilhos. Tendo amealhado um forte séquito cult ao decorrer dos anos 1990 e 2000 que perdura até os dias atuais, o grupo teve diversas formações durante sua existência”. 

Quando o ZDM encerrou as atividades, disse o jornalista Silvio Essinger em artigo de Eduardo Rodrigues para O Globo: 

"Naqueles anos 1990, em que tudo o que uma banda do rock underground carioca poderia almejar de mais nobre era ser mais ultrajante que os seus pares, o Zumbi do Mato era uma banda ímpar. Não tinha guitarra, cultuava o lado maldito do rock progressivo (Van der Graaf Generator, King Crimson), interessava-se genuinamente pelo que a cultura tinha de mais trash e conseguia conciliar a escatologia (sempre desconcertante) com referências para lá de eruditas do avant-garde. Histórias bizarras de seus shows abundam - afinal, essa foi a banda que fez sua fama sendo uma não-banda, não-rock, não-MPB, não-vendável, não-qualquer coisa e, ao mesmo tempo, ligada em tudo. O Zumbi tocou no Garage, no Circo Voador, na livraria Berinjela, no Retiro dos Artistas... Merecia a Cidade das Artes, mas não houve tempo. Fica a poesia: Tiroteio do esqueleto sem cabeça / é um clássico da MPB brasileira / é a morfologização patética dos fonemas / é a p* que pariu te mandando ir se f*." 

Agora o Zumbi do Mato está de volta. Em “Bosasova Nova”, o grupo mostra no álbum a mesma potência que marcou sua trajetória no underground carioca. Os fãs, que sempre idolatraram a banda mesmo quando sua volta parecia impossível, vibram com os novos shows e, inevitavelmente, com a atmosfera musical desafiadora que marcou o Rio alternativo nos anos 1990 e 2000. Aliás, o Zumbi é 100% desafio em todas as perspectivas de sua obra, absolutamente atual. 

Não deixe de conferir canções como “Essa criança (ela vai ao shopping)”, “Miojo puro”, “Dor física” e “Frio do caralho”. A mão genial de Zé Felipe e a performance irreverente de Lois Lancaster trazem para novas (e velhas) gerações uma das sacadas musicais mais ricas, divertidas e criativas que o underground carioca já viu. 

Vida eterna ao Zumbi do Mato! 

Wednesday, January 01, 2025

04:13h

A doce ilusão da virada de ano já se dissipou e as coisas então voltam ao normal. 

Mais ou menos, melhor dizendo. 

Pra quem pode, o ano novo começa apenas na segunda-feira que vem. Mais quatro dias de descanso.

Já o proletariado, não: encara o batente daqui a pouco, em ônibus e trens abarrotados. A dura luta do povo pela sobrevivência. 

Na TV já tem telejornal. Ontem já teve tiroteio no São Carlos, Estácio. 

Ainda há tempo para um cochilo antes do café.

Difícil mesmo será amanhã: 18 anos da morte da minha mãe. 

@p.r.andel

Sunday, December 29, 2024

Sanduíche

SANDUÍCHE 

[ou o último domingo do ano

Numa noite de 1982, eu tinha alguns trocados e fui caminhar pelas ruas de Copacabana. Fiz isso muito até o dia em que fui despejado do bairro, caminhar por suas ruas sem um objetivo, apenas flanar, e mantive esse hábito até hoje sempre que posso. Pelo menos uma vez por mês.

Queria lembrar o nome da lanchonete que funcionava na esquina da Siqueira Campos com Barata Ribeiro. Era bem grande. Enfim, parei por lá perto das nove da noite, me sentei no banquinho acolchoado e pedi um cheeseburger com refresco. Sabe aquele bife roots, feito na casa? Era assim. Suculento. Sou capaz de rever a cena toda 42 anos depois. Só não lembro o nome da lanchonete. Ela ainda durou um bom tempo. 

Depois do lanche, desci a Barata Ribeiro até perto da esquina com a Santa Clara. Eu ia na Billboard, loja de discos, pra olhar as capas dos álbuns lançados - e torcer para o Fred comprá-los porque eu não tinha um tostão. O máximo que dava era para o sanduíche, esse nunca me abandonou. Olhava os discos, os artistas, sonhava em ter LPs - que não consegui, mas diz uma coleção legal de CDs. A gente ouvia música, conversava sobre música, ouvia rádio, apreciava os artistas, sonhava com os shows - que eram mil vezes mais acessíveis do que hoje - íamos ao Canecão com trocados. 

[Acho que pensei nisso porque também lembrei do meu amigo Xuru, que faria aniversário hoje mas já se mandou há tempos. Uma pena. Acho que toda semana falamos do Xuru no nosso grupo de Whatsapp e, de certa forma, é um jeito de mantê-lo vivo para nós. Temos ido ao Caravelle comer pizza, bem ao lado de onde ele morava. Se o Xuru não tivesse ido embora tão cedo, eu não passaria 10% das humilhações que passei. Deixa estar. 

Com catorze anos, o meu mundo era pequeno mas simples: sanduíche, loja de discos, casa do Fred, Maracanã, futebol na praia e grupo de escoteiros. Cinema. Shows. Com pai e mãe tudo é mais fácil, a gente não precisava gastar quase nada. A inflação era trágica, mas a gente consumia muito pouco. Não era fácil ser adolescente, aliás nunca será, mas a gente tinha momentos divertidos. 

Um dia resolvi emagrecer. Não aguentava aquela conversa de "você é bonitinho de rosto". Perdi 15 kg, fiquei viciado em corrida e me senti muito bem até o dia em que precisei parar de correr. Eu amo futebol, mas a corrida me proporcionou um bem estar único. Emagreci, mas o sanduíche continuou por perto. Agora eu penso em 1988, que foi um grande ano, e de outros tantos momentos divertidos que me acompanharam até aqui. Há muita dor também, mas o saldo é positivo. 

Chegamos às oito e meia do último domingo do ano. Simone está cantando na TV. Ela é das nossas. Acabou 2024. Desde 1982, meu sonho é ter uma casinha, livros, discos, conversar um pouco e ver a minha cidade menos triste e violenta. Ter um sanduíche com refresco. Se pudesse, eu sairia agora pelas ruas de Copacabana só para me reencontrar com meus 14 anos. Não tem mais Billboard, mas agora eu tenho minha própria lojinha de discos. Não tem mais Fred. Não tem mais Xuru. Nem pai, nem mãe. Sobraram alguns amigos, muitos conhecidos e gente que me agradece porque defendo o Fluminense. Às vezes alguém me abraça porque escrevi sobre alguma luz da cidade. Muita gente foi embora sem dizer adeus, os piores são os que escolherem fazer papel de mortos em vida. Deixa estar: é melhor ser um ex-amigo do que um bajulador. 

Apesar da internet ser um ímã de gente ruim, conheci pessoas fantásticas por aqui. Gente que eu idolatrava e agora conversa comigo. Gente que ajuda a aliviar as dores do mundo. Muito obrigado a todos os que, de alguma forma, têm me ajudado a sobreviver nesse mundo de tanta ingratidão e rancor.

Ah, quando eu via as capas dos discos da Billboard, também sonhava com a chance de publicar um livro. Demorou 25 anos, mas não é que aconteceu? 

@p.r.andel

Friday, December 27, 2024

Gostoso

16:30 de Brasília, coração do Rio.

Desço a Lavradio vazia e entro na rua do Senado. Vem alguém atrás de mim e saio da calçada minúscula para dar passagem. Um rapaz, um homem negro de mais ou menos uns 40 anos, parecendo estar em situação de rua, passa por mim. Para um metro adiante, vira e me olha de cima a baixo. Quando preparo meu instinto natural de defesa, o nacional dispara: "Gostoso!"

Quis o destino que eu estivesse na porta da Hamburgueria da Alfândega. Olhei pro sujeito, mandei meu polegar de tchau, entrei na lanchonete e subitamente lembrei de uma garota em quem eu nunca mais deveria pensar. Dez segundos depois, eu já era um cliente satisfeito à espera de um cheeseburger duplo, com poderosos bifões de 160 gramas. 

Você é o que come. Obviamente, sou gostoso. Mas achei que, com 130 kg e 56 anos, eu já estivesse na faixa de isenção das cantadas gays. 

As garotas também faziam isso, mas só discretamente.

Tuesday, December 24, 2024

Canalha sem convicção...

CANALHA SEM CONVICÇÃO PLENA EM VÉSPERA DE NATAL

Quando chega essa época de fim de ano, acontece uma situação que envolve canalhas e cretinos amadores, que é o remorso. Todos sabemos que um verdadeiro canalha, autêntico, daqueles que não vale o ar que respira, nunca irá se importar com os sentimentos ou prejuízos daqueles que malversou. Não é que o amador também não possa fazer o mesmo, mas pode ser que em algum momento sinta remorso, e aí a dor é inevitável. O pequeno canalha sente o golpe, fica em dúvida, cogita até ser uma boa pessoa perdida - na verdade não é! - mas o exercício do mau caratismo raiz o atordoa. As pessoas falando de Deus, de paz, de um minuto de abraços, da necessidade de resgate do sentimento gregário, da fraternidade, do amor às crianças e aos mais velhos, aos desamparados e, diante deste cenário, o calhorda amador vai se dissolvendo feito sal de frutas Eno num copo de água gelada. O calhorda sem convicção prejudica, bajula, deixa os amigos na mão, trai, é traíra mas está tão condenado quanto seus espelhos de caráter. E se dói, mesmo que não esteja arrependido: ele vive um dilema, dividido entre o canalha que deveria ser mas ainda não é, assim como o canalha medíocre que é, ainda a caminho da involução. Os canalhas que creem em Deus até apelam; já os outros, tentam fingir serenidade em vão.


@p.r.andel

Monday, December 23, 2024

Yo no tengo

Hoje não tem poesia, apenas silêncio e certa dor. As convenções exigem o Natal, mas estou cada vez distante dele. Em nenhum momento recomendo isso para ninguém, é uma questão pessoal minha. Cada vez mais perco meu pequeno espaço num mundo marcado pela ganância e consumismo desenfreados. Vejo pessoas indo e vindo com toneladas de comida enquanto as calçadas estão cheias de gente faminta. Sinceramente, não consigo ser feliz vendo tanta gente do meu povo sofrendo sem parar. E cheguei à conclusão de que estou distante de todas as pessoas que amo, a maioria para sempre. Logo, hoje não tem poesia. Espero que as pessoas se sintam menos desconfortáveis, que a maioria possa ter ao menos uma única noite de paz e reflexão, que o mundo seja menos cruel. Espero com certo ceticismo, é que o mundo é cruel demais. Sei que algun amigos queridos vão inevitavelmente chorar seus mortos - e tanta gente boa se foi nas últimas semanas tão antes da hora. As pessoas que conheci na TV vão chorar por tanta gente destruída pelo ódio que domina essa cidade, explodindo peitos e cabeças com armas violentas, ceifando vidas, destruindo crianças, humilhando a todos. Sim, a poesia existe e eu torço sempre por ela, mas não tem espaço nesta hora de guerra. Ok, as famílias pobres são muito humilhadas nesta cidade cheia de cólera. O que resta é torcer para que um pouquinho de paz prevaleça. Eu torço, eu sempre torço. Que pelo menos uma parte do pessoal possa ter um bom Natal, porque a maioria infelizmente não terá. Mesmo.

Saturday, December 21, 2024

Pro China

Lá se foi a mãe do China, meu amigo há anos. Eu sei bem dessa dor, e toda vez que isso acontece eu sinto duas vezes: pela dor do amigo e pela minha, que volta à tona. Eu revejo meu pai e minha mãe ainda jovens, ainda tendo o que viver, delicadamente mortos e mergulho a 600 km/h num abismo. Quanto custa ter o pai ou a mãe mais seis meses ou dois anos por aqui? Eu não sei, apenas sofro, isso piora em dias como esses, perto do fim do ano, onde existe praticamente uma ditadura que te obriga a ser feliz. Eu não sou feliz, eu tenho momentos felizes. Quem pode ver o mundo como está e ser realmente feliz? A não ser que não pense em ninguém. É claro que pais e mães não são eternos, é claro que filhos enterrarem os pais é o natural, mas nem por isso a gente deixa de sentir dor, que pode durar muito tempo ou até para sempre. Só sei que sinto dor e sofro, sofro muito por mim mesmo e pelos outros, pelos próximos que às vezes sequer conheço. Eu queria falar muitas coisas agora mas não vou falar nada. Só quero dizer ao China que eu me solidarizo com ele. Lembro das vezes que ele foi tão bom anfitrião em sua casa alta. E quando me prestigiou em meus lançamentos. E quando bebemos chopes maneiros. Estou deitado, a TV fala algo que não escuto direito, é noite calorenta de sábado e não vou a lugar nenhum. Sinto dores. Converso no WhatsApp com colegas diversos, a Marina também. Penso em várias coisas que não sei dizer, em gente que perdi para sempre, em gente que ficou pelo caminho, penso nesse estranho mundo cheio de ruindade e solidão enrustida. Meu amigo China está triste e eu também estou, Mitya também está. Hoje foi um dia de ficar deitado. Eu senti dor, a gota atacou, fiquei recolhido. É duro não ser mais garoto e eu, que sempre tive vocação para ser menino, agora sigo outras palavras.

Friday, December 13, 2024

Três anos no Pampeiro

O apartamento era um barato. Dois na verdade, um de frente para o outro. À direita do elevador, silêncio e paz. À esquerda, o caos juvenil. Jogávamos botão quase todo dia, nos finais de semana rolava War. Íamos até meia noite ou mais, depois víamos Goulart de Andrade ou alguma coisa assim na TV. Isso durou uns três anos, mas parecem  dez ou mais, de tão intenso que foi. Eu me divertia a valer. Ríamos o tempo todo, até de gol contra ou de pisar num caquinho. Era 1987, grandes jogos no Maracanã, grandes shows no Rio, depois passei para a faculdade e ficou melhor ainda. A gente não tinha dinheiro e nem precisava: a maior despesa era ir nas Casas da Banha comprar o lanche à meia noite, sempre podendo esbarrar com Fausto Fawcett, Roberta Close, Monsieur Limá, Rogéria, o ator Percy Aires e tantos outros grandes personagens do bairro. Terminada a farinha, voltava bem para casa, ficava a uns 400 metros - o Shopping dos Antiquários já estava todo silencioso, é o único lugar onde me sinto como um autêntico local. Claro que nem tudo são flores: havia a barra pesada. Amigos morreram em acidentes de carro, assassinados no morro, de AIDS, outros simplesmente sumiram para sempre. Eu saí do grupo de escoteiros, totalmente contra a vontade mas era necessário - all things must pass. Mas aqueles três anos jogando botão no Pampeiro ficaram para sempre - se pudesse, usaria todo o dinheiro do mundo para comprar um revival daquilo, mas é impossível e agora, como diz o poeta Gil, não tenho qualquer socorro no meu caminho inevitável para a morte, mesmo que ela pareça longe ainda - boa parte da areia da ampulheta já desceu. O que me importa é que 37 anos depois daqueles dias maneiros, meus amigos de lá ainda me chamam pelo WhatsApp. Agora eu sinto uma dor danada e lembro que este é um dia horrível, mas só de pensar nos meus 18 ou 19 anos, a gente sente um sopro de ânimo. Três anos no Pampeiro. Só faltava ter as Casas da Banha de novo. Nem falei dos Paralamas com "Bora Bora", dos Smiths no Maracanãzinho, das peladas de praia. Era bom demais. Era o meu mundo. 

@p.r.andel

Wednesday, December 11, 2024

Todo dia

Morrer, todo mundo vai. É do jogo.

O problema do Rio é que todo dia morre alguém antes da hora, ou muito antes. 

É a garotinha na praça, é a militar no quartel, é a senhora na comunidade. 

Todo dia a sujeira dessa sociedade explode o peito ou a cabeça de alguém. 

Há quem julgue ser fácil abstrair ou naturalizar a situação. 

Eu não. Isso tudo me faz muito mal.

Quem sou eu para achar normal que, por não ser minha filha, sobrinha ou parente, a morte de uma garotinha por bala anônima deve ser algo natural? Não é. Nunca vai ser. 

Os mesmos erros de sempre. As vítimas estão por toda parte. As famílias despedaçadas choram. 

Onde foi que perdemos a humanidade? 

Só quero lembrar que, antes de explodir a cabeça de alguém, a tal bala perdida fez um longo caminho. Veio de muito longe. Foi protegida por bandidos e militares, até chegar ao ponto de que ela mesmo, bala, decrete a morte de alguém geralmente indefeso. 

Uma tragédia que muitos dão de ombros. 

@p.r.andel

Tuesday, December 10, 2024

Depois o maluco sou eu

Terça, 11:15h, VLT SDU x Gentileza. 

Estou em pé no vagão vazio. Vou saltar logo. 

Perto de mim há um jovem de uns 20 anos no máximo, também em pé, navegando no smartphone. Padrão camiseta preta + óculos + 

Na Cinelândia embarca uma senhora, bonita, mais de 60 anos com certeza. Entra e não senta. 

Quando o VLT sai, ela se aproxima do rapaz, cola as costas em seu peito e começa a rebolar por uns cinco ou dez segundos. 

Para, não diz uma palavra. 

O garoto está paralisado. 

Fico pensando se não estou esfomeado...

Ela desce na Carioca, eu também.

Ela olha para mim por alguns segundos,vira e caminha para a direção contrária de onde viemos. 

Ok, sou de Copacabana. Já vi coisas N vezes mais escabrosas. 

A senhora desparece, o VLT também. 

Quando olho para a frente da estação, há um grande container na calçada da Rio Branco, ou algo parecido.

As pessoas indo e vindo no que já foi o coração da capital. 

Acima do suposto container, um homem jovem usa sua mochila como travesseiro e dorme tranquilamente. 

É o sono dos justos, quem sabe? 

Sunday, November 24, 2024

acho, só acho

[acho que ninguém vai me escutar agora

este é o horário mais silencioso de toda a semana. ela vai começar comercialmente dentro de algumas horas. 

a gente passa as semanas torcendo para que chegue a hora do descanso. alguns privilegiados têm até lazer.

torcendo para escapar da miséria, das balas perdidas, torcendo para escapar do descaso e da indiferença. torcendo, torcendo. por isso nos identificamos tanto com o futebol: vivemos em permanente torcida.

[todo mundo que me acompanhava seguiu outras trilhas 

[lá fora, salvo uma motocicleta ousada, está um silêncio de morte. aqui também está 

seguimos torcendo por esmolas insignificantes de felicidade, enquanto acreditamos no sucesso do PIB e das instituições.

eu estou procurando por alguém que já não existe, ou que talvez nunca tenha existido. 

pelo menos vai ter um pouquinho de futebol para alegrar as discussões..

quem sabe?

[agora sinto dor de cabeça

são quase três da manhã e vem aí uma semana quente. vamos continuar a rezar por pessoas desprezíveis.

Thursday, November 21, 2024

A garota

Lembrei de uma colega da faculdade. Não fomos íntimos, mas convivemos uns quatro anos. Sempre foi uma simpatia comigo, um doce. Nenhuma conversa profunda, algumas amenidades. Ela devia ficar desconcertada porque eu era roqueiro, eu era Black Sabbath e ela era Paulinho Moska. Eu também ouvia bossa nova, mas ela não sabia. Era séria, séria mas tinha um sorriso bonito. Ontem lembrei dela. Morreu há muitos anos, teve uma doença terrível. Será que depois de tantos anos e anos, ela está em algum lugar e soube que eu pensei nela? Podíamos ter conversado mais sobre qualquer assunto. Podíamos ter aprendido mais coisas. Eu lembrei dela. Será que vinte anos depois da minha norte alguém se lembrará de mim? Não sei, mas eu lembrei de minha colega. Falei com um amigo em comum a respeito dela, estudamos todos juntos. Ela era um doce. Devíamos ter falado mais. Eu era garoto, tinha pouco mais de vinte anos. Ela faz falta. Era uma boa pessoa, veio de grande luta contra a pobreza, se esforçou para chegar à universidade. Depois fez um bom concurso profissional. Acima de tudo era uma boa pessoa, tinha o mais importante de tudo. Ela faz falta. Se era doce para mim, distante, imagine para seus próximos. Pensei muito nela, será coisa de religião? Gostaria que ela estivesse num bom lugar, mas não creio. Gostaria que ela estivesse aqui para lhe dar um abraço e um beijo, também dizer obrigado por todas as vezes que foi gentil e simpática comigo - gentileza e simpatia, bens tão escassos nesta terra de sofrimento e ingratidão. Queria que ela estivesse bem. Tão jovem, tão garota, lutou tanto e tudo o que sobrou foi esta pequena lembrança: há justiça nisso? Eu era Black Sabbath mas escrevia poemas de amor e as garotas adoravam. Eu também era bossa nova e cool jazz. Eu era Bill Evans e não sabia. Queria acreditar que ela está nem. Lembro bem de seu sorriso e doçura. Não pude falar nada, porque nem maturidade tinha: eu era um garoto popular louco para conseguir um emprego e ajudar minha família - ela também acabou. Mas não é tristeza e talvez não seja só saudade: era para dizer que eu admirava uma garota que conheci pouco e lamento muito que ela não esteja por aqui. 

@p.r.andel

Wednesday, November 20, 2024

O silêncio dos escroques

Os acontecimentos das últimas horas, revelando claramente o plano de execução de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes são gravíssimos, mas não surpreendentes. Quem nunca imaginou que pessoas que debochavam da morte de milhares de pessoas por COVID poderiam até praticar crimes?

Agora, tão nojento quanto é constatar que o suor de milhões de brasileiros paga expressivos soldos a quem sempre está do lado contrário dos interesses do povo. Tem sido assim desde sempre. Muitos cidadãos que têm mais de 50 ou 60 anos de idade já ouviram falar de amigos com tios, avôs ou equivalentes que "trabalhavam na Petrobras" na época da ditadura assumida (nenhum deles sob concurso). E basta lembrar de momentos como na OAB e no Riocentro para se refletir a respeito. 

O golpe contra Dilma em 2016 já vinha desde 2013, sendo consolidado três anos depois. À época, não faltou quem justificasse o golpe com argumentação rasteira. Outros preferiam silenciar. E de 2016 a 2022 o Brasil viveu o pão amassado e chutado pelo diabo. Acabou a mamata, exceto para os mamateiros de sempre. O cinismo de parte do eleitorado era tamanho que naturalizaram negociatas de imóveis com dinheiro em espécie, a única loja de chocolates no mundo que não lucrava na Páscoa, o maior vendedor de carros usados no planeta (negócios fechados a cada 20 segundos) e outras barbaridades como o genocídio na Covid. E a mesma cara de paisagem está em voga com o silêncio sobre o plano de aniquilação de pessoas para promover (mais) um golpe de estado.

Escroques. 

Escroques. 

Escroques. 

FDPS.

Golpistas. 

Traidores da pátria. 

Saturday, November 16, 2024

G20 x [ 2(4 - 6) + 3(8 - 3)]

Para que tanto ódio? Ganância? Arrogância? Tudo é inútil. Quinze dias depois de um enterro, somente as pessoas muito próximas ainda pensam no morto. Para que tanto desamor? Para que tantos discursos que não se sustentam na prática? Para que tanta hipocrisia? 

Nascemos, crescemos e deveríamos ser gregários, mas somos escrotos. Mesquinhos. E muito hipócritas. Agora mesmo temos um grande evento no Rio, com dezenas de líderes mundiais, onde justamente vai se discutir sobre mudanças que deveríamos ter feito há vinte ou trinta anos. A 50 metros de todos os pontos de concentração do G20 há alguém passando fome e pedindo esmolas. O Rio tem milhões de pobres, falidos e foodidos mas todo mundo finge que nada está acontecendo. E assim empurramos com peito e barriga, até quando Deus quiser e o sistema circulatório colaborar. 

A água, o clima, a atmosfera, a comida, o estudo, a segurança, o conforto... Tudo isso é importante não apenas para cada um de nós, mas para todos, para o próximo. Acontece que, de uns tempos para cá, o smartphone é mais amigo do homem do que o próprio homem, então compreendemos toda essa pomba. 

Crianças chorando de fome, crianças explodidas na guerra, crianças estupradas e tanta gente fingindo cara de paisagem. 

Tanta gente jovem adulta que não tem direito de almoçar e sonha com um bife. São milhões e milhões. Não existe democracia de verdade enquanto as pessoas não podem comer, ter uma roupa, um lugar mínimo para morar. Não existe democracia enquanto trabalhadores morrem com balas na cabeça. 

As discussões são importantes, mas discursos sem prática levam a lugar nenhum. Não basta bradar contra a fome e depois fingir que está tudo bem, porque não está. Não está, nem estará. Não adianta bradar contra a violência e praticar o ódio ostensivo. Falamos tanto de roubalheira... Será que somos tão perfeitos assim? Não!

Precisamos de paz. De verdade. 

@pauloandel

Wednesday, November 13, 2024

Fluminense

Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time - e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde - o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras. Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo - dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas existe um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade. 

[no fim, tudo é desimportante 


Glauber já!

A gente precisava do Glauber agora, gritando, agitando, o escambau. Atentado em Brasília às vésperas do G20, o fascismo esticando a corda até onde puder, as pessoas alienadas e perto do feriado a mentira vai triunfar. É um alívio ter meu amigo Bigode nas conversas diurnas de bar, ufa, e aprender um pouco com ele sobre a genialidade de Nelson Pereira dos Santos. Aqueles caras geniais que nos anos 1950 e 1960 viraram a arte do Brasil de cabeça para baixo, colocando nas telas de cinema o Brasil real e, por isso mesmo, nem sempre agradável e leve. A gente precisava do Glauber nem que fosse no programa de TV por um tempo, entrevistando, debochando e até rindo, mas quebrando a p0rr@ toda de verdade. O eterno silêncio de Glauber é o nosso silêncio de torpor diante das atrocidades que testemunhamos diariamente, como se tudo fosse normal. Não, não é. O Brasil está sendo trucidado dia e noite. O Brasil precisa se levantar. Precisa. 

@pauloandel

Sunday, November 03, 2024

Vi

Vi, sim

Tenho visto quase tudo nessa estrada longa 

Que não sei onde dará 

Eu vi a dor, o choro

As mãos esmolando

Eu vi o desespero 

Vi a indiferença, o dar de ombros, o nada a ver com tudo

Vi a solidão, a melancolia e o desprezo

Mas também pequenas esmolas de felicidade

[Esta cidade tudo oferece para você que tem dinheiro 

Eu vi mortes horríveis por balas perdidas

fornos de microondas

e esquartejamentos

Vi pessoas famintas nas portas de mercados e 

em filas de hospitais 

Eu vi amores morrendo e nascendo, amores abortados, corações solitários e corpos desejosos

E vi o êxtase dos abraços no Maracanã 

As vozes da alegria na Quinta da Boa Vista 

Vi uma criança com seu balãozinho, outra com sua tampinha de garrafa e a terceira admirando um avião 

Que aqui não pousará 

Eu vi vítimas de incêndios e grandes acidentes

Mas também agradáveis companhias em ônibus de viagem 

Vi o fogo de conselho em seus momentos derradeiros e alvoradas esperançosas

O livro dos dias com trabalhadores indo e vindo 

Vi notícias populares, trágicas, quase felizes

No coração da Central 

Às seis da tarde


E ainda não posso parar

Não tenho direitos 

Eu virei uma alma penada de meu 

próprio cotidiano 

Mas ainda tenho o que dizer

Oh, lindos litorais e pontes arrebatadoras, vocês ficam para trás 

Gatas alucinantes e bares de mil conversas, também 

Eu vi o céu e o inferno no mesmo tecido da toalha que me enxuga

E rancores indiscretos

Escrevi vinte mil páginas para dizer qualquer coisa, mas não tenho mais paz - nunca tive - é uma busca inglória

Eu vi minha vida escorrendo em vão 

Mas ainda tenho algo 

a dizer - quem sabe várias coisas desimportantes?

E só preciso de uma mísera esmolinha de felicidade

Uma simplória mudança pela felicidade 

em moedinhas humildes e sem brilho 

Uma moedinha, uma república 


@p.r.andel

Friday, November 01, 2024

Sex, Sprite e Vila Isabel

CAPELINHA, PARMÊ E MICHELUCCIO 

NAQUELE TEMPO éramos duros mas nos divertíamos. No começo da 28 de setembro havia aberto a filial carioca da pizzaria Micheluccio, que começamos a frequentar e infelizmente durou pouco tempo - a pizza era maravilhosa. Depois descobrimos a Parmê e virou uma febre de bater ponto regularmente.

À noite o negócio era o Capelinha, frequentado no passado por ninguém menos do que Noel Rosa. Uma vez, Martinho entrou no bar - tocadaço - e nos disse "Boa noite, rapaziadaaaaa". E foi pro banheiro. O almoço também era excelente. 

Comecei em Vila Isabel em 1990, por falta de dinheiro. Ficava apertado ir e voltar todo dia duas vezes para as aulas, então algumas vezes eu ficava direto até à noite, das 7 às 21:30h. O almoço, baratinho, num restaurante da rua Sousa Franco - você pagava um fixo e comia o quanto quisesse - tinha que comer muito para aguentar até à noite. Depois caminhávamos, normalmente por Vila Isabel ou Grajaú, até a Tijuca mesmo. Ou voltávamos para a UERJ. Em sextas notívagas com nossas crushs, saíamos à meia noite da Praça Sete, caminhando as pé em bando até a São Francisco Xavier, na porta do campus. Colocávamos as garotas no ônibus e voltávamos para casa. Quase ninguém tinha carro, mas começamos a receber tickets refeição e era o que bastava. Foi de 1990 até mais ou menos 1994, aí nos separamos por causa do trabalho e porque a vida é desse jeito. 

Às vezes sozinho à tarde, eu ouvia o disco novo de João Gilberto no walkman, além do programa de jazz do Jô Soares, que foi um professor musical pra mim. 

Nem de longe dava para pensar que nosso playground do início da vida adulta se transformaria numa praça de guerra diária, com tiroteio para todos os lados.

CINDY

Hum, sonhei com a Cindy. De novo. É uma história muito louca, porque nunca nos beijamos, não por falta de vontade, mas por loucura mesmo - acho que era. Eu a vi uma vez na faculdade e fiquei louco por ela, mas só nos conhecemos um ano depois e mantivemos alguns anos de contato, com raríssimos encontros. Acontece que ela não era apenas linda, mas extremamente sexy, então me dava um tesão enorme, enlouquecedor. Foi a garota que eu mais vezes transei em sonho na vida, não sei ao certo sobre a recíproca, mas creio que tenha tido prazeres pensando em mim. Então não dormi muito, mas foi o suficiente para transar muito em sonho e, quando você acorda, vê que nada daquilo é real mas é impressionantemente verdadeiro - você sente nos lábios o gosto do prazer cumprido, só que imaginário. Acho que devíamos ter vivido muitas coisas, ela não quis, agora é tarde demais. Ou não. Tudo bem. Eu penso em Cindy, eu tenho boas sensações por causa dela. Não importa se não é a vida real: viver é melhor que sonhar, mas não se pode vencer todas as batalhas. O tesão permanece. 

SPRITE

Ainda bêbado de êxtase por causa de Cindy, acordei às cinco e meia, tomei banho e desci para o posto am/pm da outra esquina. Havia uma super promoção: latas de refrigerantes a dois reais, litro e meio de mate a cinco, pão de queijo a cinco. Gastei vinte reais e fui muito feliz. 

Estou cansado. Preciso de um cochilo. Hoje estou de meia folga, vou encontrar amigos geniais dos tempos da escola e, depois de meses, voltarei ao Maracanã. Ainda que não seja mais o velho estádio que frequentei, ele ainda tem um significado forte. Tem o Fluminense, tem a história, meus tempos de faculdade ali do lado, grandes cenas de 1988 a 1996. 

Daqui a dezessete horas, terá passado mais um dia. Eu terei uma lata gelada de Sprite e já saberei o foi feito do Flu. Virá o final de semana, daqueles que a gente fica esmolando moedinhas de felicidade e pequenos momentos divertidos. Se é o que temos, que assim seja. Tomara que seja um dia bom, só um pouquinho, no meio dessa terra cheia de sofrimento, guerras, genocídios e rancor. 

@p.r.andel

Sunday, October 27, 2024

Brasil, república dos biscoitos

O Brasil. Eu nasci no Brasil há muitos anos. É um país gigantesco, que conheço bem menos do que gostaria. Geograficamente, é uma terra linda, cheia de pontos culminantes. O problema é o homem poderoso, que destrói tudo, humilha e esfola. 

O Brasil é uma terra linda que pouquíssimos brasileiros podem desfrutar, já que a maioria ainda vive num regime análogo a escravidão, porém enrustido de liberdade. Nas grandes capitais, milhões de brasileiros são submetidos aos desejos do crime ou das grandes corporações - e esses desejos muitas vezes se encontram, quando não andam de mãos dadas. 

Como a maioria dos brasileiros é permanentemente humilhada, não há tempo para muita coisa além da própria sobrevivência. Não há tempo para reflexão. A única saída para uma vida humilhante e opressora é buscar um lugar no céu, sonhar com uma hipótese já que a vida real é perturbadora e cruel. Isso explica a força de tantos pastores e bispos calhordas pedindo Pix na TV. 

Não há como refletir. As oportunidades são escassas. Não há interesse por leituras, conversas, trocas. Não importa aprender: para quem tem o privilégio da escola, o que importa é passar de ano. E quando vem o grande funil à frente, o que importa é ter o diploma. 

É difícil quantificar, mas o Brasil certamente tem uma das maiores produções artísticas da humanidade. Incontáveis livros, discos, peças, filmes, obras, instalações, shows, produções diversas. Só que 99% disso vive no subsolo, se muito. Não há acesso, divulgação, políticas públicas adequadas e suficientes, afora o descaso do mundo corporativo que, salvo exceções, só tem compromisso com o lucro. Se milhões de pessoas vivem em função de lutar pela sofrida sobrevivência, muitas vezes só almoçando biscoitos, como vão buscar acesso a equipamentos culturais? 

Os números não mentem: vivemos uma das maiores desigualdades econômicas do planeta. Boa parte da população não tem acesso a bens de consumo, uma casa decente, às vezes não há luz nem água. 

Para segurar esse rojão, temos duas fontes da juventude: futebol e carnaval, com todos os problemas que os dois ambientes em questão possuem. É um paliativo, ok. 

(Continua, talvez)

Thursday, October 24, 2024

Turn It on again

1

Silêncios dizem muita coisa. Falam quase tudo. E alto.

2

O que o outro pensa em silêncio? Às vezes desconfiamos. Muitas vezes não perguntamos por medo ou hipocrisia. Noutras, por conveniência. 

3

Sobre o amor que mora em silêncios. O desejo, o sexo, o tesão explícito. Águas bravias represadas, supõe-se. 

4

O tesão guardado em silêncio é uma derrota.

5

E você olhar aquela mulher, desejá-la ardentemente desde sempre, carregar em si todas as potências sexuais e nada fluir. É um desperdício.

6

Ah, o silêncio que carrega tantas coisas. O desejo, a saudade, também a melancolia pela ingratidão, são muitas cargas.

7

Aquela linda mulher deitada nua em berço esplêndido, catedral de carne, pátria de todas as pautas de prazer.

Wednesday, October 23, 2024

Quando o poeta se vai

As palavras me interessam desde bem pequeno. Os nomes, os nomes originais. Quando ouvi o nome de Antonio Cícero, nunca mais esqueci. Primeiro, ouvi sua poesia nas grandes letras. Depois, nos livros. Para completar, AC era irmão de Marina, que o nosso mundo de Copacabana amava de paixão - ela passava pelo shopping depois de uma peça de teatro - de camiseta e jeans -, sorria e ficávamos encantados.

Muitas vezes vi Antonio Cícero nas ruas e deveria tê-lo cumprimentando, mas não o fiz. Ele estava sempre na região dos sebos. Sei lá, fiquei com vergonha, não queria interromper seu flanar, fiz a mesma besteira com João Carlos Assis Brasil, que vivia pela Carioca e Tiradentes. 

Foi gigantesco. Passou por cima da eterna comparação entre a poesia, digamos, formal e a das letras de música: brilhou em ambas muitas vezes e a quantidade destes brilhos é um argumento definitivo de sua obra. 

Tudo passa com enorme brevidade. O trem da vida dispara pelos trilhos a seiscentos quilômetros por hora. Eu ainda lembro da primeira vez que li o nome de Antonio Cícero. Tudo é brevidade. 

Quando um poeta se vai, o rombo parece ainda maior. No mundo das injustiças, ganâncias, covardia e tudo muito temperado com o azeite da hipocrisia, são os poetas que dão algum sentido à vida para que se possa prosseguir. Assim, perder um poeta é tirar o oxigênio da beleza, é asfixiar o cotidiano e apedrejar a sensação de humanidade. Mas como ir embora é inevitável, o poeta deixa seus versos para sempre, pouco importando se são extremamente sofisticados ou mais simples, se têm profundidade continental ou são mais rasos. Não importa. "O poeta é a pimenta do planeta".

As coisas não precisam de você/ Quem disse que eu tinha que precisar?/ As luzes brilham no Vidigal/ E não precisam de você/ Os Dois Irmãos também não.

O Hotel Marina quando acende/ Não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor.

Os inocentes do Leblon/ Esses nem sabem de você/ Nem vão querer saber

Monday, October 21, 2024

Gente interesseira x interessada

Era pra ser engraçado, talvez cruel ou nada disso. Há pouco me procurou uma pessoa que não falava comigo há anos.  Não uma conhecida qualquer, mas alguém que contou comigo em várias situações importantes, e que evidentemente não foi recíproca, daquelas que some para não correr o risco mínimo de algum pedido. Tudo bem,  a vida é assim e a maioria das pessoas é ingrata mesmo. Acontece que, se você só se relaciona com as pessoas que não vão te amolar, precisa estar preparado para o desprezo, a frieza e indiferença por aí. Depois de um tímido oi, a criatura vem perguntar se tem algo errado e digo que não. Insiste, persiste. Explico que não, mas...

"Puxa vida, há tanto tempo que a gente não se fala, né?" (show de cinismo)

”É, tem sim. Desde que você achou que eu ia te pedir favores ou dinheiro emprestado, simplesmente deixou de fazer contato e desapareceu." (não contem comigo para hipocrisia)

[Mensagem visualizada, silêncio e demora de réplica porque o soco foi no queixo e, se a pessoa não é completamente calhorda, ela sente

[Três minutos...

"Eu só queria saber como você está."

"Estou bem. Ótima semana".

"Fique bem". (certamente o objetivo original desta expressão era outro, mas com o tempo ela se tornou um ícone do "phoda c". reparem que em muitos casos, quem a usa gosta de manter distância regulamentar de todo mundo para "não alimentar relações tóxicas" ou "só ficar perto do que faz bem". resumo: gente interesseira que usa a companhia alheia como um objeto descartável...)

Polegar amarelo, outro ícone para dar fim a conversas desimportantes de gente que só te procura de maneira interesseira, não interessada e nem interessante. Toda relação positiva tem interesses também positivos: você tem o interesse fraternal, cordial, afetivo, amoroso, sexual etc, todas com desdobramentos. O interesseiro, não: ele só procura alguém para resolver algo, seja imediatamente ou não, mas já tendo em mente que tem prazo de validade para descartar o próximo, que vê como um simples objeto. Sua questão é apenas atender aos próprios interesses, geralmente materiais, e mais nada. É fácil identificar o interesseiro em qualquer lugar, basta pensar no nome da criatura em análise e refletir o seguinte: "Se a minha relação com fulano/a NÃO envolvesse dinheiro, poder, prestígio ou visibilidade, ela estaria aqui do meu lado?".

O jogo da vida é simples e direto. Com os recursos atuais, só não se fala quem simplesmente não quer. Se os tempos ficaram mais curtos, mandar um recado pela internet, um olá etc, não leva mais do que dez segundos. Desculpas esfarrapadas soam cada vez mais ridículas. Honestidade não faz mal a ninguém. Se você não sente obrigação de valorizar nenhum contato, este é um direito legítimo; apenas não reclame se no futuro o tratamento recebido for idêntico ao que você adotou. A indiferença é democrática e dói para todo mundo, até para os mais calhordas. Não que eu queira oferecer dor a ninguém, longe disso: é apenas uma questão de justiça. 

[O polegar foi respondido com um smile. Para certas pessoas, só cabe mesmo o silêncio sepulcral. 

@p.r.andel

Monday, October 14, 2024

Partime

Quando eu era criança, esse letreiro era a primeira coisa que me passava na cabeça quando crescesse: era um lugar onde os adultos conseguiam empregos. E foi assim por muitos e muitos anos, mesmo depois que fiquei adulto e comecei a trabalhar. Perto deste endereço eu fiz um de meus estágios, há 32 anos, na Firjan. E perto também, há um ótimo restaurante há muitos anos, que hoje se chama Caló(geras). 

Hoje resolvi almoçar justamente no Caló. Vou lá de tempos em tempos. Peguei o VLT. Antes, achei graça porque uma menininha correu para apertar o botão da porta, crianças adoram botões. Saltei na Antônio Carlos. Já tinha me deparado com os restos do letreiro muitas vezes, mas somente hoje resolvi fotografar. 

A loja está fechada há anos. O lugar dos empregos acabou. Os empregos estão acabando também. A cidade está sempre com cara de feriado, meio vazia. Nas esquinas, as piadas foram trocadas por olhares perdidos. Qualquer coisa é motivo para agressões, tiros, assassinatos. Ódio. Ódio.

Eu era criança e pensava: tenho que conseguir um emprego para ajudar meus pais. Deu certo por uns dez anos, até que eles se foram. Continuo trabalhando, as dívidas são as mesmas mas não preciso botar roupas sóbrias, ando de chinelões e me livrei da tortura mensal de viagens de avião. Para alguns colegas de faculdade, deixar a carreira de origem para virar camelô de livros é um fracasso supremo, mas cada um só vê o que sua acuidade permite - e desconfio que alguns não têm coragem de trocar dinheiro pela serenidade. De chinelos, quando chego num grupo, eu ainda dou as cartas - exceto quando sou sabotado. 

E justamente por ser um camelô de livros é que eu posso almoçar às três da tarde, me deparando antes com lembranças marcantes de criança. O letreiro da Esso já não existe mais, agora é o prédio do Ibmec, foi melhor assim. 

Ali pertinho, a uns 30 metros, sobrevive a Casa Vilarino. Só pelo fato de ter sido o lugar do primeiro encontro de Vinicius de Moraes com Tom Jobim, é um palco consagrado. Imagine as conversas boêmias dos anos 1940 e 1950. 

Saio do Caló, desço a Santa Luzia e meus chinelões me levam para o Metrô, sentido Copacabana. Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço, ou rabisco para digitar.



Sunday, October 13, 2024

Dia Mundial do Escritor

Dez da noite de domingo, todos recolhidos, então meu amigo Bigode lembra numa postagem que hoje é o Dia Mundial do Escritor. 

Bem legal. Em julho tem o Dia Nacional, bem na véspera do meu aniversário. 

Passei um dia de escritor. Em silêncio.

Trabalhei. Escrevi para um livro.  

Vi um show dos Rolling Stones e o excelente programa Persona, em reprise com Ary Toledo - um artista gigantesco que os mais jovens não têm ideia. 

Não interajo muito com escritores. Na verdade, não interajo muito com todo mundo. Já fiz muito disso, agora é diferente. E escrever é necessariamente um exercício solitário.

Pela quantidade de pessoas com quem falei nos últimos 14 anos - milhares -, provavelmente muita gente gostou do que escrevi e sou grato por isso. Muito grato. Imagine, há 15 anos eu sonhava em ser um autor publicado, mas não tinha a menor chance de acontecer. Só que veio o inesperado e, entre parcerias e trabalhos solo, foram 40 livros. Pronto. Se no futuro existirem sebos, tenho chance da minha garrafinha jogada ao mar parar nas mãos de alguém, que poderá gostar ou detestar, até ser indiferente, mas eu nada saberei porque já estarei morto há muito tempo. E isso é bonito nos livros: a sintonia entre pessoas sem contato. Meus autores prediletos praticamente não me conheceram. 

Não lucrei nada, tenho lutado como um cão, cada dia é um dia, mas não seria honesto dizer que não fui feliz. Fui e muito. Por exemplo, eu gosto muito do meu time de futebol e escrevi 26 livros sobre ele, imagine. Quantas pessoas no mundo conseguiram fazer o mesmo por seus times? É muito difícil, então me realizei. E fora do futebol foi outro monte que muito me orgulha. Basicamente escrevo sobre o Rio, as ruas, os bairros que considero minhas casas, as pessoas humildes, meus poucos ídolos, meus amigos mortos, um ou outro amor. 

Tanto faz se é um, dois, cinco ou vinte livros: a emoção é a mesma. Um novo livro é sempre um coração batendo mais forte. Começa tudo de novo. 

Escrevi coisas que acho muito boas, outras boas e outras aceitáveis. O que faço é descrever o que vejo, sinto e penso. Muita gente chorou e me disse, outros riram muito. Os haters vociferaram sem ler, é claro. O fato é que não houve indiferença e isso é ótimo. 

Voltando ao meu time: será que, naquela noite de 1973, quando virei Fluminense por causa da palavra e do nome do Félix, já estava escrito que, um dia, eu escreveria sobre o Flu? Não sei, mas eu lembro direitinho daquela noite, hoje tão longe mas tão perto. Outra noite que lembro muito é a do famoso gol de barriga em 1995: ali eu mudei para sempre. 

Minha única tristeza é meus pais não terem visto esse trabalho, nem meu irmão. Eles batalharam para que eu pudesse estudar, se preocuparam comigo e nunca me patrulharam: confiaram em mim. Teria sido muito bom ter fotos deles com algum livro meu, mas tudo bem: não se pode vencer todas. 

"Agora é noite e o silêncio prevalece. 

Daqui a pouco o proletariado vai acordar, ainda no escuro, com suas lutas e marmitas, para a longa travessia ferroviária até a gare da Central do Brasil. 

Nas ruas, famintos sem casa vão virar a noite. É o medo do estupro ou de um assassinato horrível. Não devíamos aceitar que ninguém vivesse assim mas, numa sociedade marcada pela hipocrisia e indiferença, o que temos é o desprezo. 

Agora é noite, a semana invade o meio do mês e a ampulheta do ano está se esvaziando.

Perdemos homens admiráveis antes da hora, mas os medíocres continuam firmes. 

A corrupção e a hipocrisia estão de braços dados e dedo em riste. Somos uma grande Gotham City banhada pelo fascismo. Mas é preciso resistir.

Perto da janela, um vizinho ouve rádio e a voz de Renato Russo corta o silêncio: 'Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz.'

A noite de domingo mistura estranhamente solidão, saudade, melancolia e esperança. Quem vencerá?"

@p.r.andel

Friday, October 11, 2024

Tarde de bola

SEXTA-FEIRA vadia, fria e meio silenciosa, então surge na TV Hungria versus Holanda pela Liga das Nações. Toda hora tem uma competição: Copa do Mundo, Copa América, Eurocopa, Liga das Nações. Bem, acabou a Copa das Confederações.

Jogo na Hungria, estádio lotado. Setenta anos depois de Puskás, Czibor, Hidegukti e Kocsis ainda alimenta sonhos e esperanças, mesmo que vãs. Um time daqueles de novo? Nunca mais. A Hungria fez 10 a 1 em El Salvador na Copa da Espanha, a maior goleada dos Mundiais. E também ganhou do Brasil por 3 a 0 em 1986, com um gol de Détári. Salvo engano, foi a última atuação de Leão como titular da Seleção Brasileira. Minha simpatia pela Hungria, além dos craques do passado, tem a ver com o Fluminense: a semelhança das cores. Ah, em 1982 tinha o goleiro Mészáros, que faleceu ano passado. Uma vez eu fiquei ouvindo pelo radinho Fluminense x Honved, eles ganharam por 2 a 0 no torneio de Córdoba. Não lrmbro se chegou a ter a transmissão ou só as informações da partida. O que sei é que perdemos para o grande Honved dos anos 1950. E o radinho estava colado na minha cara. 

O sonho da Holanda não tem setenta anos, mas cinquenta. O que dizer do time de 1974 que, mesmo sem Cruyff, chegou à final do Mundial da Argentina em 1978? Um bando de craques geniais, malucos e humildes: todos atacavam, defendiam e trocavam de posição. Os adversários enlouqueceram. Krol, Neeskens, Rep, Suurbier. Jongbloed, uma legenda. Van era com a Holanda: Van Beveren, Van Breukelen, Van Der Kherkof, Van Basten - e na música, Van Halen. Agora quase não tem. A segunda leva, com a turma do Gullit, foi excelente também. O terceiro vice mundial, conquistado em 2010, serviu para que, apesar da frustração, a Holanda fosse tão grande a ponto de ser a única seleção que não conquistou uma Copa, mas com status como se tivesse conquistado. 

[Máquina Tricolor e Laranja Mecânica têm tudo a ver, de ponta a ponta, da costa leste à oeste

A partida acabou sendo divertida, mas não brilhante. Prevaleceu a marcação da Hungria no primeiro tempo, quando a seleção mandante fez um belo gol: cruzamento da esquerda e finalização de primeira no alto à esquerda. No segundo tempo a Holanda predominou, mesmo com um jogador a menos, e acabou empatando no fim com bela cabeçada de Dumfries. Memphis Depay ainda não está por lá. Na hora da comemoração foi fácil ver como o uniforme holandês azul é bonito, embora a eterna camisa laranja seja imbatível. 

Ah, no primeiro tempo teve um lance sensacional, que só se compara a uma decisão por pênaltis - sempre corrigida pelo eterno Mário Vianna, com seus dois ênes: "NÃO SÃO PÊNALTIS, MAS TIROS LIVRES DIRETOS DA MARCA PENAL". Ufa! Vamos ao lance: dois toques dentro da área húngara, dez húngaros debaixo da trave, dez holandeses pensando onde a bola pode chegar ao gol, tensão discussão. A bola parada depois da marca do pênalti. A cobrança é uma bomba, mas o desfecho é improvável: o goleiro defende sem rebote.

No fim, os húngaros - que contaram com a vitória magra em boa parte do tempo - saíram meio decepcionados, mas não deixaram de cantar e gritar para seus jogadores. Foi uma boa partida. Não, não: Czibor, Hidegukti, Puskás e Kocsis, nunca mais. Cruyff e Neeskens, nunca mais. Contudo, toda vez que começa um jogo, todos os torcedores voltam a ter doze ou dez anos de idade - assim, tudo é visto com o amoroso doce licor da infância. Faz muito tempo, mas é impossível para Holanda e Hungria entrarem em campo sem abrir as cortinas do passado, um belo e fascinante passado. 

O jogo do radinho. O Honved tinha outro Kocsis. O Fluzão? Paulo Goulart, Marinho, Ademilton, Edinho e Ricardo Longhi; Pintinho, Givanildo e Mário; Osni, Tulica e Zezé. Depois entraram Edevaldo, Rubens Galaxe, Robertinho e Parraro. O Flu vivia tempos de crise e não ganhava nada desde 1977, mas ninguém sabia que, meses depois, com sete desses jogadores que perderam para o Honved, surgiria um grande campeão. Certas coisas a gente só entende depois que o tempo passou. 

Aquele radinho me traz muitas coisas.

Thursday, October 10, 2024

Gata negra

A felicidade de quem eu gosto também é a minha felicidade. Pode ser gigantesca ou ínfima, não importa: um naco de felicidade é um naco e pronto. Seja uma grande conquista ou um detalhe minúsculo, tanto faz. 

Tão estranho quanto aquele que não fortalece quem gosta é quem não tem a capacidade de elogiar nada. Todos somos capazes de fazer alguma coisa que cabe elogio. Todos. E pode ter certeza: quem não sabe elogiar acaba sendo infeliz também na hora de criticar, isso quando não revela facetas piores. 

No mínimo, causa desconfiança.

Antes eu achava que era só o jeito das pessoas, mas o tempo e a experiência só me confirmaram o básico: gente que não joga junto e não elogia carrega recalques, e poucas coisas são mais deprimentes do que a pessoa recalcada diante de qualquer êxito ou felicidade alheia, por menor que seja. Um tiquinho que seja. 

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É muito fácil distinguir um elogio sincero de uma bajulação barata. 

O bajulador dificilmente tem qualidades. No máximo, interesse pessoal. Uma ou outra mesquinharia. Chega a ser constrangedor para os olhares mais atentos. 

E o bajulado? Senhor.

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Desde pequeno, sempre fiquei impressionado e até atemorizado com o tamanho das grandes obras e coisas. Para mim, o armário de dois andares era gigante. Depois descobri que o prédio era gigantesco também. Que a praia de Copacabana era imensa. Por fim, a grandeza monumental do Maracanã. Tudo sempre me impressionou.

Hoje mesmo, passando pelo prédio da Nova Petrobras, tive a sensação de sempre: somos todos formiguinhas minúsculas diante de nossas próprias realizações. Qualquer bicho pequeno passaria com medo se os grandes prédios fossem bichos grandões, mas nós, seres humanos, passamos tranquilos - quero dizer, eu não. Sempre me sinto pequenininho, minúsculo que sou, mesmo que eu possa ter grande importância para algumas pessoas. Há quem chame isso de falta de personalidade, de confiança ou excesso de modéstia. Nada disso: é apenas um belo exercício de entendimento da nossa pequenez e fragilidade. Só. 

Depois de tantos anos, ainda me sinto pequenininho. O que mudou foi o passar dos anos e o aumento dos problemas, mas lá no fundo ainda somos os mesmos. Podemos evoluir e até piorar, o corpo envelhece, mas a essência é a mesma. 

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Na loteria da Marechal Floriano - ou seria Visconde de Inhaúma? - tem uma gata negra de arrepiar. 

Gata negra e jovem, gata e tricolor.

Se a gente ganhar no bolão, ela merece uma cota de prêmio. 

Gatona mesmo. E simpática. E educada. 

Muitas coisas boas num pacote só. 

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Falando em gata negra, eu acho graça de alguns colegas que sempre brincavam comigo, tudo por causa do meu pequeno sucesso com jovens mulheres negras. Isso vem desde os tempos da faculdade, há muito tempo portanto, já que tenho 30 anos de formado. 

O pequeno sucesso vem da adolescência até, na faculdade é que descobriram. 

O motivo, não sei. Talvez haja mais de um. É engraçado, de toda forma. Meu pequeno sucesso nunca teve limitação de cor, é bom que se diga. 

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Já são quase quatro da manhã. Eu acordo às três, perco o sono, escrevo para tentar dormir de novo e às vezes dá certo. É o que vou tentar de novo. 

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O que vai ser de mim quando eu crescer? 

@p.r.andel

Tuesday, October 08, 2024

Enquanto falamos sobre réstias de democracia

ENQUANTO FALAMOS SOBRE RÉSTIAS DE DEMOCRACIA 

(A ENSOLARADA GOTHAM CITY SEM BATMAN, COMISSÁRIO GORDON E O RAIO QUE O PARTA)

Pessoas desmaiadas nas calçadas de todas as capitais brasileiras às sete da manhã. Não dormiram à noite, porque estão nas ruas e têm medo de ser incendiadas, estupradas ou chacinadas. Ninguém liga. 

Trabalhadores dignos e honestos descem esfomeados na gare da Central do Brasil. Vão começar a trabalhar até às cinco da tarde. Quem tiver sorte conseguirá almoçar biscoitos na saída do expediente.

Em várias ruas de inúmeros municípios, bandidos armados dão as cartas com seus fuzis, definindo quem vive ou morre, quem sai de casa ou se tranca.

Crianças com suas caixas de engraxate ou de balas de açúcar fixam seus olhos nas TVs ligadas nas lojas de eletrodomésticos, sonhando com desenhos animados e ter o direito de ser crianças, mas só por alguns instantes, pois a vida real é cruel. 

Numa grande cidade como o Rio de Janeiro, em vários bairros mas especialmente no coração da capital, você vê portas e janelas fechadas, inúmeras placas de "vendo" ou "alugo", mas manchetes fajutas de jornais garantem que tudo vai muito bem, muito bem mesmo. Já os veteranos da região nunca a viram tão vazia...

Os bancos nunca tiveram tanto dinheiro. Os pobres nunca foram tão pobres. A miséria nunca foi tão miserável. A exclusão e a desigualdade nunca foram tão evidentes. Desassistência, desalento, despejos, choques de ordem. "Miséria, miséria em cada canto, riquezas são diferentes".

"As instituições estão funcionando normalmente no Estado Democrático de Direito". 

"Riquezas são diferenças ". 

A "grande festa da democracia" basicamente se limita ao dia da votação de cartas marcadas. É bom poder votar, ainda mais num país marcado por ditaduras e golpes, só que é pouco.

É muito cômodo colocar a culpa exclusivamente na população. 

Enquanto isso, nas autarquias, gabinetes e burocracias, nos escritórios e grandes almoços, os conservadores e revolucionários vão muito bem, obrigado. O mais importante de tudo é eleger e reeleger parlamentares respeitáveis, para assim manter tudo como sempre esteve.

Monday, October 07, 2024

Seis da tarde

O cachorrinho apressado faz sua dona linda quase correr enquanto puxa a coleira. Ela é muito gata, tão linda que lembra a Luciene, ou a Marina ou a Juliana, quem sabe a Ana Paula que morava na Figueiredo de Magalhães. Deve ter uns 25, 27 anos e não tem mais de um metro e sessenta, nem precisa. 

O cachorrinho parece que está num mundo novo: tem pressa, cheira tudo, olha para todos os lados. É um Basset, que a gente carinhosamente chama de salsicha. Ele fica doido com o gramado do Edifício Senado, onde fica a Nova Petrobras - talvez meu amigo Wagner Victer esteja no escritório para resolver problemas nacionais - ficamos de almoçar no restaurante asiático da Gomes Freire, mas ainda não entendemos o horário irregular da casa. 

Alguns vizinhos estão em suas janelas, espiando a beleza do cair da tarde, que se choca com a dura vida adulta no Rio de Janeiro, lindo geograficamente e cada vez mais agressivo como cidade. De toda forma, vale apreciar o azul do infinito emoldurando a meia lua, enquanto passa o trânsito de poucos carros e nenhum ônibus.


[os garotos magriços do iFood começam a dar as caras com suas bicicletas alugadas e a vontade imensa de trabalhar, mesmo que de forma injusta, por tão pouco. 

Ainda a gata. Com suas pernas torneadas  que certamente encantam a muitos fãs, ela tem um sorriso discreto enquanto puxa o maravilhoso cão salsichinha, louco por qualquer novidade na rua. Uma quadra depois, cachorros veteranos da área se reúnem perto da falecida agência da Caixa, agora coberta por tristes tapumes rosados. Logo ali, a barraca de churrasquinho faz sucesso, principalmente porque sua TV é grande e muitos espiam o jogo de futebol da tarde - assim como os cachorros espiam as frangueiras na padaria, os homens espiam a TV com futebol num bar ou equivalente. 

O azul vai escurecendo, faz até um leve frio às vésperas de uma terça feira quente.

[perto da Cruz Vermelha, um rapaz desesperado e choroso olha para cima, vê os prédios, se sente completamente desprezado e diz que só queria ter uma casinha. Nada que as eleições de ontem resolvam, porque quase nunca resolvem absolutamente nada. 

[nós somos muitas coisas, inclusive um país cheio de pessoas desesperadas, chorosas e sem casa. Quase ninguém liga. 

O imponente prédio da Nova Petrobras foi construído num terreno onde havia a maior vila operária nos primórdios do século XX. Tinha mais de 140 casas e centenas de quartos para solteiros, além de dispor de farmácia, açougue e até sapataria. Pioneiros da residência com serviços. Era a Villa Ruy Barbosa, que teve moradores ilustres como o casal Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, o multi ator - tricolor! - Mário Lago, o futuro super cantor Agnaldo Timóteo e até Silvio Santos - tricolor. Não há nenhum vestígio na moderna área da Nova Petrobras que lembre a Villa. 

Os vizinhos então deixam as janelas, os carros vão minguando, não há ônibus e até os táxis se mandam, os cachorros veteranos são levados embora por seus donos e logo, logo, a gatona das lindas pernas dará adeus com seu cãozinho salsicha. Tudo vai virar só lembranças em breve, do jeito que a vida é. 

@p.r.andel

Saturday, October 05, 2024

Quatro pílulas

a

Há quem diga que só interessa o que realmente aconteceu na vida. É um ponto de vista justo. Mas será que é assim mesmo? Não tenho certeza.

Salvo os desatentos, desmemoriados e quem viva desprezando o próximo, mesmo que o novo sempre venha - e vem - o quase é, de alguma forma, uma presença.

O beijo que quase aconteceu, a amizade que quase foi retomada, o grande plano não executado, o amor não exatamente correspondido na medida exata. O momento em que você está numa bifurcação, escolhe um caminho e muito depois pensa "E se tivesse ido pelo outro".

Muitas vezes, em segundos, os trajetos se tornam definitivos e nem sempre dá para voltar atrás. E se...?

["Sorriu para mim/não disse nada porém/fez um jeitinho de quem quer voltar/dançava com alguém que me roubou seu amor/agora é tarde demais, não sofro mais essa dor/é tarde, é tarde, arranjei um novo amor." 

b

O silêncio infalível de quem se sente sozinho num bairro inteiro. Todos estão dormindo, com exceção das pessoas que sofrem muito nas ruas. À janela, não há uma única outra janela acesa. Não passa um carro, um ônibus. O filme do Canal Brasil acabou. 

É tarde. Todos estão dormindo. Não há uma mensagem no WhatsApp. Nenhuma postagem. 

O único sinal de ruído é o ventilador estranhamente ligado na madrugada fria, menos para simular ar condicionado e mais para que o motor elétrico em funcionamento seja um sinal de vida. 

[Ao longe e nem tão longe, o Brasil queima em crimes bancados por bispos escrotos e milicianos 

c

Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time - e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde - o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras. Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo - dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas existe um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade. 

[no fim, tudo é desimportante 

d

Amanheceu. É sábado. Há frio e chuva. Poderia ter sido a melhor noite de sono do ano. 

Fracassei de forma retumbante. 

Vamos para novos fracassos.


@p.r.andel