Chácaras Vale do Sol
1984
A ronda é minha. Estou sozinho nessa. Os chefes foram de carro para algum lugar onde houvesse uma birosca. São duas da manhã. Há um silêncio enorme debaixo do céu de azul cobalto e estrelas. Todos estão dormindo em suas barracas. Eu tenho um rádio e posso escutar música, mas o mistério do silêncio me agrada e então prefiro manter o aparelho desligado. Gostaria de beber um Toddy quente mas é inviável ligar o fogareiro; além do mais, tudo é racionado e é preciso respeitar a programação. Tenho vontade de ligar para minha mãe, mas está tarde e eu só tenho um monte de fichas telefônicas - cadê o orelhão?
[Todos estão dormindo, das crianças aos adolescentes, todos cansados depois de um dia de atividades, cada um com seus sonhos, todos juntos. Somos uns cinquenta, talvez. Sessenta. Somos muita gente reunida em prol dessa vida escoteira cheia de encantos e, a cada noite no campo, silêncios que fazem viajar no tempo e espaço.
Ao longe, no terreno vizinho, surge uma solitária vaca. Como assim? Uma vaca notívaga? Pois é. Lá vai ela com passos bem lentos, tranquila, talvez a caminho do descanso.
O céu. Onde ele vai parar? Na Via Láctea, ok. Céu de mistérios, que talvez abrigue os bons que já se foram, quem garante? Em Vale do Sol o céu parece íntimo demais, próximo, familiar.
Lembro que tenho um gole de vinho barato. Vou à cozinha de bambu e pego uma caneca. Volto e me sento numa espécie de tambor. Eu também sou um silêncio enorme.
Provavelmente o Fred estaria aqui comigo, mas ele não veio acampar. O Coruja está deitado, cortou o dedo. Pedro já capotou há tempos.
Nenhum sinal dos chefes.
Do nada, sorrateiramente, aparece Patrícia, vitimada pela insônia. Ela pede para sentar ao meu lado, sem qualquer problema e começamos a conversar. Então bate certo vento frio já perto das três da manhã, ela sorri e puxa minha mão para a sua, querendo aquecê-la. Por alguns minutos, paramos a conversa e ficamos ali no relento de Vale do Sol, plenos de silêncio. As mãos se abraçam com aquele carinho fraternal que talvez só os jovens saibam oferecer com pureza. Talvez pudéssemos virar a noite ali, já que a alvorada é às seis horas.
De longe, o Chevette branco acende seus faróis de milha. Os chefes estão voltando. Eles param, saltam do carro e alguém pergunta "Tudo bem com vocês?". Balançamos a cabeça, como se disséssemos "Melhor, impossível!". É noite em Vale do Sol. Eles beberam bem, mas estão em boas condições. Brincam e riem. Enquanto isso, as nossas mãos namoram pelo calor mas nem desconfiamos estar nos melhores anos de nossas vidas. Ainda é cedo para se entender as coisas.
@p.r.andel
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