I
A cidade não para. Ela nunca dorme, ela nunca termina. Ela é vendida para o mundo como o mais belo dos belos rostos, mas vista bem de perto tem sua pele bastante machucada pelo ser humano.
II
A cidade ganha novas tecnologias, os grandes prédios ficam mais modernos, os carros apressados são de última geração, as pessoas das classes dominantes ostentam suas novidades digitais. Ao mesmo tempo, certas coisas nunca mudam - especialmente quando o tema é degradação. Sim, porque a cidade é linda nas fotografias turísticas, mas é esgarçada à medida em que se avança em direção aos bairros mais populares e populosos.
III
A cidade é humilhada. Ou melhor, ela humilha boa parte de seus habitantes. A violência humilha as pessoas, os transportes de massa, o emprego precarizado, a desigualdade social, a falta de oportunidades, tudo isso compõe uma carga imensa de humilhação às pessoas, e muitas acabam não resistindo: aderem às drogas lícitas e ilícitas, ao fanatismo religioso e a outros recursos para tentar aliviar suas realidades brutais. Vários não aguentam e dão cabo das próprias vidas, mas este é um assunto estupidamente proibido.
IV
A cidade acaba sendo uma imensa frangueira elétrica num almoço de domingo, com milhões de pessoas fazendo o papel de cachorros, com os olhos bem arregalados, olhando e sonhando com pedaços de frango que nunca terão.
V
A cidade tem lugares lindos, mas eles não são para todos, mesmo quando têm acesso ou entrada franca.
VI
As coisas que nunca mudam. Os traficantes perigosos são levados para presídios federais, mas o tráfico continua estuprando, torturando e matando. A milícia também. Há lugares da cidade onde a polícia simplesmente não entra. Atravessar a cidade no fim da noite pode ser risco de morte, a depender do trajeto adotado.
VII
Acontece que essa também é a cidade das esmolas. Esmolinhas. Os políticos dão projetos de esmolinha para meia dúzia e acreditam ter mudado a cidade. O sonho do Carnaval é uma esmola para tanta gente tão sofrida. O sonho do futebol no Maracanã já foi uma grande esmola, mas o povo foi expulso de lá e agora se abriga em biroscas para poder vivenciar sua única alegria. Às vezes temos esmolas de grandes shows como os de Madonna e Lady Gaga, então o grande capital ganha, os trabalhadores minúsculos sobrevivem e ficamos esperando a próxima esmola.
VIII
A maior prova do descalabro da cidade está nas madrugadas, quando milhares de famintos tentam se abrigar na porta de agências bancárias. Lembre-se: toda vez que você vir uma pessoa em situação de rua desabada numa calçada à tarde, pode ser consequência da pessoa virar a noite acordada, com medo de ser morta, incendiada ou estuprada.
IX
A cidade está crescendo. Temos cada vez mais prédios, voltados para quem já tem apartamentos - a minoria. Surgem novos bairros devidamente gentrificados, onde o povo só aparece como camelô ou prestando os serviços condominiais. "
”O povo? Que se aperte nas favelas."
Nos bairros antigos, há cada vez mais lojas fechadas que nunca mais vão abrir.
Aliás, a própria rua que, no passado, era um palco de celebração da cidade, agora é cada vez mais mero percurso de passagem. As pessoas têm pressa. As pessoas têm medo. O celular virou o último refúgio das amizades numa cidade que já misturou muitos gênios em muitos bares, mas tirando os nichos da burguesia e alguns pontos esparsos, a vida na rua acabou. Ficaram apenas as pessoas oprimidas pela miséria.
X
"Miséria, miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes."
"A morte não causa mais espanto."
A cidade ainda tem beleza sim. Ainda tem poesia. Contudo, as chances são cada vez mais escassas.
A cidade humilha as pessoas, não todas, mas a maioria.
Muita gente deu seu sangue e sua vida para que a cidade fosse de todos, mas isso jamais aconteceu, e não há esperanças de que o cenário mude.
Seria possível mudar a cidade para melhor, mas as pessoas que controlam o poder não têm o menor compromisso com o bem comum: parlamentares, empresários, personalidades, banqueiros etc. Nunca estiveram nem estão aí com nada.
XI
Cidade maravilhosa.
@p.r.andel
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