Chove. É necessário. É parte da vida, mas da morte também. A chuva é bela, mas também humilha e mata, faz sofrer e desespera. O belo espetáculo da natureza é cheio de contradição. Quando era jovem eu gostava de desafiar a chuva correndo e jogando bola, ou ainda mergulhando irresponsavelmente no Atlântico Sul - depois que soube dos riscos, nunca mais repeti - os jovens têm medo de morrer, de desperdiçar toda uma vida. Então escapei vivo e continuo nesta república federativa cheia de árvores e enterros precoces, cheia de tanto desamor e falta de empatia enquanto fanáticos religiosos fingem o contrário. Choveu muito há pouco, eu estava protegido em minha casa postiça enquanto o mundo sofria na Cruz Vermelha, e então apareceu uma cena de enterro no novela - eu parei e chorei porque revivi as mortes de meus pais - isso sempre me acontece, volto àqueles dias terríveis. De lá para cá, produzi coisas que dizem ser belas, escrevi mais de dez mil páginas, sofri feito um porco, fiz um monte de gente feliz, juntei pessoas diversas e agora estou aqui encolhido, vivendo intensamente a arte de ser infeliz para todo sempre. Amém.
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Friday, August 08, 2025
Tuesday, July 29, 2025
tô...
FACEBOOK NEM SEMPRE É AUTOBIOGRAFIA (OU A GENTE NEM SEMPRE ENTENDE AS COISAS)
05:48 tou com fome tou cansado. tou com sono. tou com sede. tou triste. tou rindo. tou pensando. tou pensando. tou pensando. tou com dor. uma dor. várias. tou pensando, mesmo que não adiante. tou lamentando o sono perdido enquanto ouço notícias inúteis. 05:53 tou estatelado na cama. tá frio. tá escuro. tá um silêncio. tô a fim de ir embora. tô a fim de ficar até o fim. tou com saudades do que não aconteceu. tou sem força pra escrever. tou entediado. tou cansado de pessoas vazias e conversa fiada. tou com fome, tou com bastante fome, eu tou sempre com fome. tou com medo do fim do mundo, da dor, do resto. tô atento. tou ligado. tou vendo football feminino. tou com saco cheio do descaso e da demora porque a vida é agora e tenho pressa demais. 06:00 tou ouvindo péssimas notícias cariocas. tou sonhando com misto quente e café com leite. tou pensando em tudo que eu perdi. também pensando no pouco que ganhei. tou a fim de viajar e não voltar. tou a fim de esquecer de todas as coisas, mas minhas memórias não deixam. tou vendo meu amor no whatsapp. tou pensando nos livros que preciso publicar. tou sem tempo pra gente que me desconsidera. tou querendo paz, mais difícil que ouro e joias. tou ouvindo um ônibus rangendo. tou apertando meus dentes tortos. tou deitado poupando meu corpinho cansado. tou vendo o começo de volta ao começo. 06:08 tou com o dedão doendo pela maldita unha encravada. bom dia.
@p.r.andel
Monday, July 28, 2025
formiguinha
Ia fazer um lanche, passei mal estes dias. Fui à cozinha, peguei o prato e nele havia uma gotinha d'água. E uma formiguinha, tão pequenininha, tão minúscula que era quase imperceptível mas eu a vi. Nos encontramos por um segundo: a água escorreu e levou a coitadinha. Deve ter caído na pia ou no mármore. É difícil entender as coisas, mas existe algum sentido na existência de uma criatura tão frágil e indefesa, que some numa gota. Sem pai nem mãe, sem família, sem amor, nada. Oi e tchau. Bom, a gente também é meio formiguinha se olhar para cima e espiar um grande prédio corporativo. Ou se olhar na mais fascinante solidão, que é a multidão no Maracanã. De um andar alto nos arredores da Central do Brasil, é fácil ver multidões de formiguinhas humanas às cinco da tarde, loucas para fugir da depressão do emprego precarizado e voltar para casa, tomar um banho, conseguir comer alguma coisa. As filas dos ônibus são formigueiros, a barca rumo a Niterói também. E nas calçadas do Rio há formiguinhas ainda mais humilhadas, desprezadas por serem muito pobres. É difícil ser formiga. Aí me lembro de um outro dia, quando esqueci uma caixa com um pedacinho de pizza na mesma pia. Ao abrir... uma turma de formiguinhas, umas cinquenta, passeando sobre o lanche farto. Elas comeram bem antes de morrer: a pizza era gostosa, levei a caixa para a lixeira. Aquelas vidinhas minúsculas mas com um senso coletivo de humilhar os humanos, tão cheios de arrogância sem perceber que, dois dias depois da morte, não passam de carne podre e fedida. Apesar de ser considerada uma pessoa grande por causa da minha altura e peso, eu sempre me considerei muito pequeno. É melhor assim. Muito melhor. Fugir das grandezas me coloca em sintonia com a realidade. Bem diferente das gotinhas em pratos que afogam formiguinhas, os cemitérios estão cheios de mausoléus, mármore, sobrenomes, pompa e muita, mas muita empáfia dentro das tumbas.
@p.r.andel
Sunday, July 27, 2025
amizade pra boi dormir
já estou velho para isso, mas ainda me impressiono: o que leva uma pessoa a dizer que é sua amiga se ela não dá a menor atenção ao que você está sentindo/passando/sofrendo? já aconteceu isso com você?
difícil saber se é alienação, falta de empatia, de noção mesmo ou falsidade.
tenho minhas opiniões e preferências. procuro tratar todo mundo bem, mas é óbvio que tenho poucos amigos. bem poucos. detesto relações baseadas em hipocrisia: se não sou amigo da pessoa, não tenho o menor motivo para mentir sobre uma amizade. e o tempo te dá experiência para sentir quando alguém se aproxima genuinamente ou só busca alguma vantagem pessoal. nos últimos anos, me afastei de muita gente por perceber isso: eu, homem do povo, com quase nada a oferecer, ainda assim tinha gente se fingindo de minha amiga por pura desimportância. não briguei, não discuti, nada, apenas senti a energia negativa e me afastei. pra sempre. também me distanciei de gente que, nas minhas horas mais difíceis e sofridas, fez cara de paisagem e me deixou na mão pedindo esmola. nenhuma mágoa nem ressentimento, mas jogar junto nunca mais. ninguém é obrigado a ajudar? ok, e você não é obrigado a manter...
as pessoas enchem a boca para falar de amigos, mas no pouco que me cabe vejo muito pouca amizade por aí. relações interesseiras e lucrativas, tem aos montes, pelos motivos mais rasos possíveis. agora, amizade é outra coisa, bem diferente. não é isso que hoje vemos como a palavra mais malversada da língua portuguesa. amigo é presença e força, não negligência.
@p.r.andel
As vísceras da cidade
I
A cidade não para. Ela nunca dorme, ela nunca termina. Ela é vendida para o mundo como o mais belo dos belos rostos, mas vista bem de perto tem sua pele bastante machucada pelo ser humano.
II
A cidade ganha novas tecnologias, os grandes prédios ficam mais modernos, os carros apressados são de última geração, as pessoas das classes dominantes ostentam suas novidades digitais. Ao mesmo tempo, certas coisas nunca mudam - especialmente quando o tema é degradação. Sim, porque a cidade é linda nas fotografias turísticas, mas é esgarçada à medida em que se avança em direção aos bairros mais populares e populosos.
III
A cidade é humilhada. Ou melhor, ela humilha boa parte de seus habitantes. A violência humilha as pessoas, os transportes de massa, o emprego precarizado, a desigualdade social, a falta de oportunidades, tudo isso compõe uma carga imensa de humilhação às pessoas, e muitas acabam não resistindo: aderem às drogas lícitas e ilícitas, ao fanatismo religioso e a outros recursos para tentar aliviar suas realidades brutais. Vários não aguentam e dão cabo das próprias vidas, mas este é um assunto estupidamente proibido.
IV
A cidade acaba sendo uma imensa frangueira elétrica num almoço de domingo, com milhões de pessoas fazendo o papel de cachorros, com os olhos bem arregalados, olhando e sonhando com pedaços de frango que nunca terão.
V
A cidade tem lugares lindos, mas eles não são para todos, mesmo quando têm acesso ou entrada franca.
VI
As coisas que nunca mudam. Os traficantes perigosos são levados para presídios federais, mas o tráfico continua estuprando, torturando e matando. A milícia também. Há lugares da cidade onde a polícia simplesmente não entra. Atravessar a cidade no fim da noite pode ser risco de morte, a depender do trajeto adotado.
VII
Acontece que essa também é a cidade das esmolas. Esmolinhas. Os políticos dão projetos de esmolinha para meia dúzia e acreditam ter mudado a cidade. O sonho do Carnaval é uma esmola para tanta gente tão sofrida. O sonho do futebol no Maracanã já foi uma grande esmola, mas o povo foi expulso de lá e agora se abriga em biroscas para poder vivenciar sua única alegria. Às vezes temos esmolas de grandes shows como os de Madonna e Lady Gaga, então o grande capital ganha, os trabalhadores minúsculos sobrevivem e ficamos esperando a próxima esmola.
VIII
A maior prova do descalabro da cidade está nas madrugadas, quando milhares de famintos tentam se abrigar na porta de agências bancárias. Lembre-se: toda vez que você vir uma pessoa em situação de rua desabada numa calçada à tarde, pode ser consequência da pessoa virar a noite acordada, com medo de ser morta, incendiada ou estuprada.
IX
A cidade está crescendo. Temos cada vez mais prédios, voltados para quem já tem apartamentos - a minoria. Surgem novos bairros devidamente gentrificados, onde o povo só aparece como camelô ou prestando os serviços condominiais. "
”O povo? Que se aperte nas favelas."
Nos bairros antigos, há cada vez mais lojas fechadas que nunca mais vão abrir.
Aliás, a própria rua que, no passado, era um palco de celebração da cidade, agora é cada vez mais mero percurso de passagem. As pessoas têm pressa. As pessoas têm medo. O celular virou o último refúgio das amizades numa cidade que já misturou muitos gênios em muitos bares, mas tirando os nichos da burguesia e alguns pontos esparsos, a vida na rua acabou. Ficaram apenas as pessoas oprimidas pela miséria.
X
"Miséria, miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes."
"A morte não causa mais espanto."
A cidade ainda tem beleza sim. Ainda tem poesia. Contudo, as chances são cada vez mais escassas.
A cidade humilha as pessoas, não todas, mas a maioria.
Muita gente deu seu sangue e sua vida para que a cidade fosse de todos, mas isso jamais aconteceu, e não há esperanças de que o cenário mude.
Seria possível mudar a cidade para melhor, mas as pessoas que controlam o poder não têm o menor compromisso com o bem comum: parlamentares, empresários, personalidades, banqueiros etc. Nunca estiveram nem estão aí com nada.
XI
Cidade maravilhosa.
@p.r.andel
Monday, July 14, 2025
Dia útil
São 6:13 da manhã. A cidade maravilhosa é cheia de marmitas sacudidas nas bolsas e mochilas dentro dos trens e ônibus. Muita gente oprimida não tem sequer marmita, apenas um pacote de biscoitos recheados baratos. Enquanto isso, na TV pipocam matérias dizendo sobre todos os malefícios dos biscoitos recheados, sempre desprezando o fato de que, na maioria dos casos, o biscoito recheado é a única alternativa econômica para não se passar fome - é que nossos veículos de comunicação são um tanto desalinhados da realidade prática. Há muita gente sonhando com empregos dignos, mas isso é muito difícil. Você vê precarização por toda parte. As pessoas chorando, sonhando e lutando por algo que nunca vão ter direito. O céu ainda está escuro e todo mundo sonha com uma boa semana, mas será possível com tanta miséria? Será que alguém ainda acha justo ou normal o que todos vemos na rua se quisermos? A maioria finge que não vê nada disso, geralmente composta por pessoas que não precisam de marmitas e biscoitos. Reinam a hipocrisia e a indiferença. Terra adorada...
@p.r.andel
Morte e sol
Há muitos anos atrás, quase 40, atendi o telefone em casa num sábado à tarde. Do outro lado, a notícia do suicídio de meu tio. Eu tinha 18 anos, não sabia lidar com aquilo. Meus pais ficaram naturalmente devastados. Um ano antes, meu tio chorou no telefone ao me ouvir pela primeira vez desde bebê - ficamos sem contato entre 1970 e +- 1986. Graças a ele, eu pude fazer um ano de faculdade paga. Era um bom homem, cujo grande crime foi espalhar panfletos contra a ditadura em 1969, o suficiente para ser preso, torturado (perdeu a audição de um ouvido) e avisado de que deveria deixar o país. Já tinha sofrido o diabo antes disso, como órfão de pai e mãe, separado da irmã em colégio interno. Depois da reconexão de anos, tínhamos a esperança de que ele viesse para o Brasil. Deu tudo errado e pior, a morte piorou a doença alcoólica de meu pai, tornando ainda mais difícil um cenário de muita pressão e sofrimento. Então nunca conheci meus primos e tudo se perdeu. Foi uma derrota irreparável, mas a vida é assim mesmo. Vinte e cinco anos e um dia depois daquela tristeza, nasceu o PANORAMA TRICOLOR, que é uma das coisas legais que tenho feito e que, de alguma forma, serve para homenagear meu tio. A vida é assim: dores, derrotas, suspiros, pequenas vitórias. Ultimamente viver tem sido muito difícil, mas seguimos lutando até por falta de alternativa. O que resta é viver, fazer o bem e não esperar absolutamente nada de ninguém, porque este é o país da ingratidão. Cumprir uma missão, seja lá com que objetivo.
@p.r.andel
Saturday, July 12, 2025
Bar
Meu bar. Sinto muita falta dele. Quando o frequentei eu era garoto, só bebia refrigerante e vitamina de morango, bastava. A gente vivia lá, era na porta da minha casa. E o que fazíamos? Conversávamos por horas e horas em pé. Quando entrei para a faculdade então, descia do ônibus e já encontrava a turma. Não importava ser pobre nem jovem: todo mundo te escutava. Ríamos de tantas situações inusitadas. Os personagens fixos da região eram impagáveis. Falava-se de tudo, tudo. Não era um tempo fácil pra mim, aliás nunca o tive, então conversar com a turma era um alívio. Às vezes só íamos embora à meia noite, quando o Zezinho começava a lavar o chão. No fim de semana a gente esticava para o Rondinella, na esquina da Siqueira Campos com a praia. Nos ditos dias úteis, eu ia pra casa, entrava bem devagarinho e sentia uma paz enorme quando via a família dormindo bem. Já esperava o dia seguinte, a noite seguinte, rir junto e conversar paca. Foi um pedaço bem legal da minha vida, pena que passou tão rápido. Um dia, parte do pessoal brigou e a turma rachou. Eu fui embora, mas nunca me esqueci daquelas pessoas divertidas e especiais. Minha amiga Ana, também frequentadora, me incentivou a escrever um pocket book sobre o bar, que publiquei em 2019 e relancei em junho passado. O bar já tinha morrido, assim como quase todos os seus personagens dos anos 1980, mas a celebração valeu do mesmo jeito. Foi lá que vi o gol do Cocada, a morte do Chacrinha, as eleições de 1989 e tantas coisas mais. Num sábado como hoje, estaríamos batendo papo e comemorando a vida. Acontece que tudo precisa passar e, por isso, só resta a saudade. Foi outro dia e lá se foram 35 ou 40 anos. Por isso Cazuza foi genial: é que o tempo não para.
@p.r.andel
Tuesday, July 08, 2025
O Flu do mundo
O FLU DO MUNDO
08/07/2025
@p.r.andel
Panorama Tricolor
Desde o dia em que virei Fluminense até este oito de julho, escorreram 52 anos. Muita, muita coisa. Todos os sentimentos, todos os amigos e amores, jogos, gols, celebrações, decepções. O futebol é a própria vida, só que em volta de um campo.
Nos piores momentos da minha vida, e não foram poucos, o Flu foi minha única alegria. Por sua vez, quando ele precisou eu também estava lá. Temos uma boa parceria.
Neste, que é um dos maiores dias da história do clube, todo o passado parece um grande filme.
Não dá pra prever o que vai acontecer em campo, mas uma coisa é certa: ao ficar entre os quatro do mundo, o Fluminense ficou de bem com sua própria história.
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Seis da manhã e o céu é um breu enorme, frio. Os trabalhadores já se movimentam por toda a cidade. Os corações tricolores ficam mais apertados. Estamos em todos os lugares.
Onde será que estão todos os meus queridos tricolores mortos? Estão mais vivos do que nunca? Quem sabe dizer ao certo? A gente sente alguma coisa inexplicável no ar. Parece que todos estão numa grande torre de vigia a celebrar o Fluminense. Meus pais, João Carlos, Neil, Tato, Fernanda, são muitos nomes. Em 50 anos a gente perde muitos queridos, mas ainda estamos aqui para testemunhar a história.
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O Fluminense entra em campo com seu time bravio e mais 123 anos de futebol nas costas. Essa é uma estrada de grandes pedras esculpidas pelo caminho. O goleiro Waterman foi uma muralha. Oswaldo Gomes, um aríete que garantiu a sobrevivência do clube. Depois, tivemos o demolidor Welfare. E Laís e Chico Neto. Foi Barthô quem garantiu o 3 a 2 imortal do primeiro Fla x Flu, um placar que se mistura com a nossa própria história. E quando veio a primeira Copa do Mundo em 1930, o primeiro gol foi de Preguinho enquanto nosso goleiro Velloso era uma garantia.
O que dizer do monstruoso Marcos Carneiro de Mendonça, goleiro pioneiro da Seleção Brasileira, ídolo, sex-symbol que enlouquecia as torcedoras, campeão no campo e na presidência?
O que dizer de Arnaldo Guinle, o maior de todos?
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O Fluminense, antes de tudo, é uma longa história. É cinema e literatura. É um épico centenário: há 100 anos, já distribuía pelo país os paradigmas do futebol. Inventou o campo, a arquibancada, a torcida, o campeonato carioca, a federação e a Seleção Brasileira. Ganhou títulos imortais e, quando foi ferido de morte pelos rebaixamentos, foi uma fênix. Encantou o Brasil e o mundo. As feras dos anos 1930 e 40 foram Romeu, Tim, Hércules, Brant, Batatais e, mais tarde, por um breve ano, o fenomenal Ademir Marques de Menezes. Nos anos 1950, fomos Castilho, Didi, Pinheiro, Telê e Waldo. Nos 1960 fomos Félix, Samarone, Denilson, Cláudio, Flávio. Nos 1970 fomos Máquina, mil vezes Máquina! Viva os meninos campeões de 1980 e o timaço tricampeão. Viva todos os times humildes entre 1986 e 1994 que lutaram muito para que o Fluminense tentasse o título! Viva 1995!
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No século XXI ganhamos títulos eternos e fizemos campanhas inesquecíveis como a da Libertadores de 2008. A Copa do Brasil, os Brasileiros, as grandes finais cariocas. Depois veio a estiagem, até que a partir de 2022 o Fluminense sentou praça na cavalaria. Vimos grandes craques, vivemos vitórias imortais, depois quase sucumbimos - porque o Fluminense vive no fio da navalha - e, numa recuperação fascinante, agora estamos no BIG4, entre os quatro maiores do mundo. A emoção é indescritível. Se
O que distingue o Fluminense de todos os grandes vitoriosos no futebol mundial é a sua humildade e humanidade. Enquanto tantos brindavam o caminho do título com absoluta empáfia, nós fomos desprezados e subestimados. Mas a nossa humanidade e humildade são justamente o fruto de uma longa história de protagonismo. E é por isso que estamos entre os quatro do mundo: nossa vocação não é a das manchetes, mas a das realizações históricas.
Lá atrás éramos Romeu, Tim, Carreiro. Agora somos o espetacular Jhon Arias, Martinelli, Thiago Silva, Fábio. Cano é ele mesmo e Waldo. Nós somos o Fluminense e não temos o que temer. Chegamos no alto do Everest, mas ainda podemos mais. Estão rolando os dados porque o tempo não para.
O teste do placar eletrônico deu 3 a 2 para o Flu. Claro que é uma brincadeira, mas como se esquecer de 2012, 1995, 1969 e até de 1912? As três cores da vitória já fizeram os ateus abraçarem milagres. Se é Fluminense, convém não duvidar.
Friday, July 04, 2025
Futebol é muito mais do que um jogo
(sobre uma conversa com André Luiz Amaral Horta e Marcelo de Carvalho)
Nunca vai ser só futebol. Não tem como ser apenas futebol. Há muito mais do que uma arquibancada em volta. Há gente, há histórias, há sentimentos, lembranças e saudade. Há paixão. Pode ser o garotinho de mãos dadas com seu pai. Pode ser o grupo de molequinhos felizes da vida porque ganharam o ingresso e, por isso, sobem a rampa do Maracanã enlouquecidos de alegria. Ou o velho sábio que tudo viu, e que espia a arquibancada abrindo a cortina do passado. A jovem senhora que, num passado não tão distante, embeveceu os olhares com sua beleza de poesia. O garoto camelô de bebidas sonhando com um mundo melhor. O velhinho carregando uma pesada caixa de isopor. Nunca vai ser só futebol porque os amigos reunidos num bar fitam a tela da TV como se fossem crianças e, num pulo, reveem seus amores, lembranças e ausências enquanto seu time corre em campo. Lembram dos ídolos com a mesma veemência que recordam dos perebas. Grandes lances e jogos são cardápio da memória. O futebol está eternizado em botões que mais parecem gente. Nunca vai ser só futebol porque o jogo faz os ateus ficarem perto de Deus, porque os inimigos dividem as mesmas cores por uma causa e descobrem que são mais parecidos do que gostariam. Futebol é o preto e o branco abraçados comemorando o mesmo gol, o gordo e o magro, o rico e o pobre, o gay e o hetero, todos juntos como se o mundo fosse bom fora dali. Futebol é Pelé parando uma guerra para que todos pudessem vê-lo em campo. Os doentes nos hospitais apaixonados ouvindo o radinho de pilha ou espiando uma pequena TV. No alto da favela tem um garotinho completamente apaixonado por futebol e que vai fazer de tudo pará ser um craque de verdade. Futebol para o mundo inteiro chorar a morte precoce dos irmãos Jota, para aplaudir o incrível Fluminense cuja força nunca seca. O futebol é o único lugar onde o pobre tem vez, onde o fraco tem força e que ampara milhões e milhões de corações pelo mundo afora, dando esperanças, evitando suicídios, deixando os corações solitários mais perto do amor. Ah, as crianças correndo loucamente atrás da bola numa vila, num campinho ou na areia da praia, todas sonhando com idolatria. Quando para uma vez por ano na TV, o futebol deixa os domingos vazios e um torcedor se lembra dos versos de um poeta inesquecível: "quando não estás aqui/meu espírito se perde/voa longe."
Tuesday, July 01, 2025
Essa coisa da vitória tricolor
I
Foi bom demais nesta segunda-feira. O Fluminense fez seu papel mais apurado, o de mosca na sopa, e venceu a poderosa Internazionale de Milano para a surpresa de muitos desavisados. Quando o jogo acabou, passei um bom tempo respondendo a mensagens de congratulações pela vitória. E aí veio gente a granel. Desde cedo, sou lembrado por muita gente como um exemplar tricolor, nos tempos da escola e do grupo escoteiro vindo até hoje. No WhatsApp apareceu gente de todos os lados: colegas tricolores que não vejo há tempos, pessoas admiráveis, crushs, amigos e colegas que torcem para outros times, teve até ex-namoradas. Será que também fui lembrado por quem não fala mais comigo ou que me esqueceu/despreza? É possível. Minha ligação sentimental com o Fluminense é muito forte, então até quem me detesta deve ter se lembrado de mim quando Hércules fechou o marcador. O futebol oferece uma fraternidade que não se vê em mais nenhum outro traço da vida brasileira. Por alguns instantes isso é bom e aquece a alma, dá um alívio para encarar o dia seguinte cheio de dúvidas e problemas, literalmente ajuda a viver. O futebol, ainda que com todos os seus problemas extracampo, é um dos traços mais bonitos da identidade brasileira. Mesmo que virtualmente, os abraços e parabéns mostram que ainda há uma gotinha de salvação. Bom, agora é o dia seguinte, uma terça-feira nublada, a rijeza do trabalho, os dissabores da vida adulta e lá vamos nós, tricolores, marcando um novo encontro para sexta-feira e tentando reviver por algumas horas o Reino do Nunca.
II
Eu estou contente. Meu Fluminense venceu. Só lamento não ser criança hoje, do jeito que eu era com 11 e 12 anos em 1980. Poder levar um botão da sorte para a escola, comemorar na hora do recreio, marcar uma pelada na vila depois do almoço, sonhar em jogar num campo oficial de grama, feito o do 18. Ficar espiando a revista Placar, a ficha dos jogos, as fotos e as matérias. Juntar o troco do lanche para comprar um escudo bordado do Fluzão. Se eu estivesse em Copacabana em 1980 ia comemorar com o Léo e o Rubinho, com os gêmeos, ia procurar o Fábio na esquina da Santa Clara para comemorar - ele tinha um timaço de galalite do Flu. Depois iria para a praia jogar bola e imitar Edinho ou Gilberto, ou Cláudio Adão - ele era infernal feito Arias e Cano.
Agora também é bom, mas é ser diferente. O tempo, senhor implacável, escorreu com enorme velocidade. Quarenta e cinco anos escorreram feito filete d'água no ralo da pia. E você está inevitavelmente mais perto do fim do que do começo. Mas ainda pode e deve ser muito divertido. Nessa terra de tanto egoísmo e ruindade, o futebol ainda é uma benção. O Fluminense venceu e isso nos ajuda a respirar melhor. Nós, tricolores, estamos iguais aos personagens da letra de "Mais do mesmo", feita pelo ícone tricolor Renato Russo: "enquanto isso na enfermaria/ todos os doentes estão cantando/ sucessos populares". Ou ainda outro mestre das três cores, Tom Jobim: "os olhos já não podem ver/coisas que só o coração pode entender".
Onde está minha lancheira do Fluminense?
@p.r.andel
Sunday, June 29, 2025
Nunca mais
É a mais dolorosa expressão da língua portuguesa. Nunca mais. O final para sempre, sem chance de reversão. O último abraço. A morte, serena ou sofrida. O amor de cristal que se espatifa no chão, ou o amor que sequer se consolida. Os amigos que rompem à toa, por bobagem. As mesas de bar que não vão se repetir. Fogo de Conselho, nunca mais. Aquele Maracanã maravilhoso, nunca mais. O sorriso de Vera oferecendo um picolé, não mais. O sorriso de Vera no apartamento do Catumbi, não mais. Chorar de alegria vendo a matrícula da faculdade aprovada no jornal cor de rosa, nunca mais. Os amigos no botequim jogando conversa fora. A ligação telefônica da garota bonita às 15 para as duas da tarde em ponto. O carinho da mãe vendo juntos desenhos animados. A vida sem pressão financeira esmagadora. O sanduíche de Copacabana às duas da manhã. Nunca mais. O Cine Condor, o Art, o Bruni, o Caruso, o Roxy, o Metro. A casa do Fred. A casa do Xuru. A casa do Ricardinho. O Pampeiro. A minha casinha. Nunca mais. O beijo da mãe, a fala do pai, o riso do irmão. A mensagem da bailarina. A doce voz da garota de Ipanema, nunca, nunca mais. As noites de prosa e chutes na bola com voos na areia. Mais futebol na quadra do corpo de bombeiros. Jogo nas Laranjeiras, meu Deus - nunca mais. O hall da faculdade, a camaradagem, o escritório, outros colegas, nunca mais. Quanta gente foi embora tão cedo, tão sem motivos, quanta coisa se rompeu à toa, quanto amor se desperdiçou. É preciso lutar contra o nunca mais. Talvez ainda haja algum tempo, alguma chance, alguma caridade ou esmola de alegria que justifique a vida nesta terra ingrata, ao contrário do ódio, da arrogância, da incompreensão e do egoísmo que nos apartam. Talvez, talvez. Quem há de voltar do nunca mais?
@p.r.andel
4:47 am
QUINZE pras seis de domingo e ainda tá bem escuro. Tá frio. Eu acordei às 4:47am e o único motivo pra isso é não ter paz. Eu não tenho paz. O mundo não tem paz. O que nos resta são pequenos momentos divertidos, ao menos para quem não é cínico. Mas eu queria dormir melhor. Estão passando alguns ônibus, o pessoal voltando da night, tem também os trabalhadores, começa a ter um barulhinho na rua. A padaria ainda não abriu. Eu queria descer para tomar um café bom mas não consigo. Não gosto mais de sair, a não ser para o estritamente necessário. Se tivesse uma casinha em Paquetá, aí eu sairia bastante só para aproveitar a beleza da ilha. E depois ficava em casa, sonhando com coisas legais e admirando meus botões antigos. Eu queria dormir melhor mas não dá. Será que um dia vai dar? Não sei dizer, não sei se acredito. Eu queria dar o fora, mas não consigo. Vai dar seis da manhã de mais uma noite mal dormida e confesso que ando cansado disso. Será que ainda vai ter jogo? Tou bem cansado. Vou tentar cochilar. A gente precisa descansar um pouco.
Sunday, June 22, 2025
De repente
Lulu Santos
1985
De repente
A gente sente que já não sente
o que já sentiu
De repente
Naturalmente
o que era novo envelheceu de novo
De repente
Não há mais saco
pra tanto papo que já se ouviu
De repente
A moda muda, o mundo roda
Não há nada a ganhar
A não ser o prazer
de ser o mesmo, mais mudar
Não há nada só bom
Nem ninguém é só mau
Se o início e o final
de nós todos é um só
Eu digo só!
De repente
A gente saca
que só não passa o que já passou
Sem vergonha e sem orgulho,
nós somos feitos do mesmo pó
Mais uma vez
Não há nada a perder
Não há nada a ganhar
A não ser o prazer
de ser o mesmo, mas mudar
Não há nada só bom
Nem, ninguém é só mau
Se o início e o final
de nós todos é um só
Saturday, June 21, 2025
Guerra
Friday, June 20, 2025
Noites no campo - Vale do Sol
Chácaras Vale do Sol
1984
A ronda é minha. Estou sozinho nessa. Os chefes foram de carro para algum lugar onde houvesse uma birosca. São duas da manhã. Há um silêncio enorme debaixo do céu de azul cobalto e estrelas. Todos estão dormindo em suas barracas. Eu tenho um rádio e posso escutar música, mas o mistério do silêncio me agrada e então prefiro manter o aparelho desligado. Gostaria de beber um Toddy quente mas é inviável ligar o fogareiro; além do mais, tudo é racionado e é preciso respeitar a programação. Tenho vontade de ligar para minha mãe, mas está tarde e eu só tenho um monte de fichas telefônicas - cadê o orelhão?
[Todos estão dormindo, das crianças aos adolescentes, todos cansados depois de um dia de atividades, cada um com seus sonhos, todos juntos. Somos uns cinquenta, talvez. Sessenta. Somos muita gente reunida em prol dessa vida escoteira cheia de encantos e, a cada noite no campo, silêncios que fazem viajar no tempo e espaço.
Ao longe, no terreno vizinho, surge uma solitária vaca. Como assim? Uma vaca notívaga? Pois é. Lá vai ela com passos bem lentos, tranquila, talvez a caminho do descanso.
O céu. Onde ele vai parar? Na Via Láctea, ok. Céu de mistérios, que talvez abrigue os bons que já se foram, quem garante? Em Vale do Sol o céu parece íntimo demais, próximo, familiar.
Lembro que tenho um gole de vinho barato. Vou à cozinha de bambu e pego uma caneca. Volto e me sento numa espécie de tambor. Eu também sou um silêncio enorme.
Provavelmente o Fred estaria aqui comigo, mas ele não veio acampar. O Coruja está deitado, cortou o dedo. Pedro já capotou há tempos.
Nenhum sinal dos chefes.
Do nada, sorrateiramente, aparece Patrícia, vitimada pela insônia. Ela pede para sentar ao meu lado, sem qualquer problema e começamos a conversar. Então bate certo vento frio já perto das três da manhã, ela sorri e puxa minha mão para a sua, querendo aquecê-la. Por alguns minutos, paramos a conversa e ficamos ali no relento de Vale do Sol, plenos de silêncio. As mãos se abraçam com aquele carinho fraternal que talvez só os jovens saibam oferecer com pureza. Talvez pudéssemos virar a noite ali, já que a alvorada é às seis horas.
De longe, o Chevette branco acende seus faróis de milha. Os chefes estão voltando. Eles param, saltam do carro e alguém pergunta "Tudo bem com vocês?". Balançamos a cabeça, como se disséssemos "Melhor, impossível!". É noite em Vale do Sol. Eles beberam bem, mas estão em boas condições. Brincam e riem. Enquanto isso, as nossas mãos namoram pelo calor mas nem desconfiamos estar nos melhores anos de nossas vidas. Ainda é cedo para se entender as coisas.
@p.r.andel
Tuesday, June 17, 2025
Pensando
PENSANDO. Pensando. Eu penso em muitas coisas muitas vezes, nas pessoas, em muitas pessoas. Eu lembro de muitas coisas de vinte, trinta ou quarenta anos como se fossem ontem. As coisas que acabaram e as que continuam, alegres, tristes, coisas que fazem pensar ainda mais e chega a doer a cabeça. Eu penso muito. Quando estou na rua, penso em como sou minúsculo perto dos edifícios, penso na tristeza que sinto pelo sofrimento de pessoas que eu nunca vi, mas sinto. Em quantas vezes dei meu incentivo, apoio e força para quem sequer me tratou como gente, ou que pisou na minha mão quando eu estava agarrado ao precipício? Quantas vezes fui incompreendido, subestimado e sabotado covardemente? Também fui roubado. Uma vez me acusaram injustamente de roubo, mas provei a injustiça. Na rua, eu vejo um lindo dia frio de sol e penso que nos dias bonitos também acontecem enterros e assassinatos e crimes horríveis. Então continuo minúsculo diante dos grandes edifícios, sou um número republicano qualquer, um CPF que anda pelas ruas cheio de dívidas, sem amigos nem apreços, sem uma única pessoa que se comova com isso - o que não deixa de ser libertador. Meus colegas de escola são avós, estão com suas belas famílias em garbosos endereços enquanto eu vivo escondido. Então penso em arte, música, trechos de filmes, trechos de livros, frases, coisas bonitas que algumas garotas disseram para mim e nunca mais vão se lembrar. Penso que ando em qualquer lugar em que ando sou um estrangeiro, mas fui expulso de minha terra natal por ser pobre. Ah, eu lembro de frases e conversas, diálogos inteiros de muito tempo atrás - alguém também se lembra disso? Lembro quando eu namorava os LPs na porta da loja Billboard, e agora eu torço para que eles sejam vendidos em minha lojinha. Pensando. Pensando. Será que ainda vou ter tempo de viver momentos divertidos ou a porta já se fechou? Eu quer escrever muitas coisas mas não vai dar. Queria também falar coisas, mas não tenho quem ouça - e isso é também libertador. Penso em como era contente com os feriados, a praia nublada, a dupla de praia até escurecer e não enxergarmos mais a bola na areia - um casal transando à beira mar, um nacional fumando um becão. Eu penso na minha família e aí sinto uma facada no peito. Os meus amigos de verdade, poucos, estão mortos muito antes do devido - eram jovens. Me restou um ou outro amigo no WhatsApp. Lembro dos colegas no futebol. Os jogos no Maracanã, meu Deus! A casa do Fred - Ah, Ah, tinha uma das garotas cujo nome não lembro, mas que sempre implicava comigo até que um dia ela riu muito, então paramos os dois e nos aproximamos até não trocarmos o beijo que merecíamos, tão jovens - 1989. Lembro das noites nos acampamentos escoteiros, lembro dos dias nas quadras de futsal dos Bombeiros, das conversas no bar Sniff's e sinto dor porque está tudo longe demais e irrecuperável. "Será que é tudo isso em vão?". "Até quando esperar?". Eu penso nos meus pais e no meu irmão, sinto muita falta deles. Penso nos garotinhos tristes que volta e meia vejo chorando numa esquina, aí me lembro que tirando minha velhice e meu corpo cansado, eu também sou um garoto que chora. Eu penso no futuro e tenho medo, penso no passado e agradeço por ainda estar aqui, mesmo que com tanta tristeza e medo - afinal, era isso ou nada. Pensando mesmo para quê? Será que faz algum sentido?
@p.r.andel
Saturday, June 14, 2025
Já (2015)
SÁBADO à noite e você escuta uma canção na televisão para passar o tempo, enquanto sua namorada não manda um beijo de boa noite pelo Whatsapp. Pensa em escrever fragmentos de um livro ou se deixa tomar pela preguiça generosa da noite descompromissada. Lá fora a chuva perdeu força, o frio permanece e nem todos se lembram de que debaixo da marquise nem todos são esfaqueadores enraivecidos. Nem todos, nem metade ou metade da metade. Numa cama quente de um quarto idem, você ainda pode sonhar. Mas já pensou no sujeito com o rosto na chuva e a pele sofrida sendo cortada pelo vento leve, mas gélido? Pois é, a rijeza da vida não bate somente na cabeça de assassinos numa noite fria de sábado. No coração do Centro do Rio são muitas dezenas de pessoas, algumas centenas na verdade, dormindo e vivendo o esplendor da miséria em ruas onde não passa ninguém nos fins de semana. Crianças de colo pretinhas, algumas maiores, senhores de idade, adultos sem força para viver. Gente à procura de um pedaço de pão, um gole de café, a chance de poder tomar um banho, uma vida onde o sono é o desmaio interrompido pelo horror de acordar e dar de frente com a realidade. A indignação contra a injustiça deve ser o primeiro passo de ações – a indignação pela indignação é apenas um suspiro. As ruas estão desertas por causa do frio. Estamos indignados em nossas confortáveis casas com luz, TV a cabo, computador, água, calor, lençóis limpos, amor safadinho, pensamentos que voam longe. Os miseráveis sofrem com seus dias de horror, sofrem com um ou outro bandido ao lado, com a chacina silenciosa do Estado, com a impossível chance de reverter uma desgraça, com a desagradável sensação de não serem humanos sentados no chão enquanto as respeitáveis pessoas de bem passam pela Rio Branco, Assembleia ou Presidente Antonio Carlos
– Cinelândia também, Carioca, vários lugares. A internet voa longe e você está aqui por causa dela. Somos primitivos demais quando nossa indiferença se limita a esta bela tela. O que vai ser de nós até a próxima manchete fraudulenta, a verdade editada, a democracia ditatorial, a vida de alguns que vale a vida de uma multidão? Somos primitivos demais e está frio lá fora. Frio demais. Uma das crianças pretinhas chora com o frio e nunca mais vai se esquecer da vida na rua. Se ela crescer e der tudo errado, mandamos prender. Se der certo para o belo sistema vigente, ela morre antes. Não somos racistas: o que acontece nas penitenciárias, casas de infratores, delegacias, comunidades, hospitais da rede pública, bairros humildes e outros mais são tudo “coincidência”. A vida escorre. Pena de morte, mortes sem pena. Alguém vai sofrer logo mais. Na verdade, agora. Agora. Agora. Já.
Publicado originalmente em "Cenas do Centro do Rio", Vilarejo Metaeditora, 2017, página 83.
Thursday, June 12, 2025
Eu queria ter doze anos
Não é exatamente um desejo de ser mais jovem, mas de voltar no tempo mesmo. Acordei neste junho frio do Rio - para nós, cariocas, 17 graus são praticamente a Patagônia - e do nada me entorpeci com o sonho de voltar a ter doze anos de idade exatamente em 1980.
Aquilo tudo passou rápido demais e certamente não aproveitei 99% do que poderia.
Por várias coisas, um garoto de doze anos daquele tempo é bem diferente de agora, 45 anos depois. Em tudo. Quase tudo.
Eu queria ter doze anos de idade para sentir aquele velho calor de expectativa aos domingos, quando em algum momento meu pai dizia “Paulo, toma banho logo!”, o que significava que iríamos ao Maracanã e eu andava pelas estrelas só de pensar. Quem viveu isso sabe como ninguém. E não era um Maracanã simplesmente, mas aquele Maracanã - o de 100 mil torcedores, o da nuvem mágica de pó de arroz que mais parecia uma viagem do Pink Floyd, do meu time todo de branco subindo o túnel com uma multidão de crianças em volta - o que eu nunca pude fazer. Bom, o mais importante era ter a mão do meu pai me guiando de Copacabana ao estádio imortal.
Eu queria ter doze anos para poder voltar a lanchar o cachorro quente das Lojas Americanas da Figueiredo Magalhães. Pão, salsicha e molho de tomate com cebola. Que delícia! Igual, nunca mais. E perto da loja tinha a galeria do Cinema Condor, maravilhosa - o Condor era gigante, ir ao cinema era um luxo!
Eu queria ter doze anos para jogar bola com meus amigos na Tenreiro Aranha, a vila, bem em frente à minha escola. O progresso trouxe o metrô da Siqueira Campos, a Tenreiro acabou e a escola já tinha fechado antes. Pelo menos eu falo com meu amigo Leo no WhatsApp, ele mora em Juiz de Fora. O Fredão morreu há anos e me deixou na mão. Dureza. Ele tinha que estar aqui.
Em 1980 a gente sonhava com os LPs da vitrine da Billboard, ao lado da Modern Sound na rua Barata Ribeiro - de lá para cá, mataram e ressuscitaram os discos, que agora são muito mais caros. Dureza.
Eu queria voltar a ter doze anos de idade porque estava descobrindo a beleza feminina. A Márcia e a Simone passavam ali perto de casa toda hora. Elas eram lindas, mas claro que só olhavam para os super-homens de quinze anos, o que nós, garotos, somos incapazes de compreender pelo resto da vida inteira. Não importa: como era bom vê-las e admirá-las. A Leila era linda também.
Eu queria ter doze anos de novo para ver desenhos animados com minha mãe e poder provar a comida maravilhosa que só ela fazia. A gente ria, via os desenhos, jogava até botão mas não dava certo porque ela queria fazer gol com a mão, jogando o dadinho na rede. E queria abraçá-la e dizer “Eu amo você, mãe!”, como fiz dos doze anos de 1980 até 2007, quando meus dois sóis explodiram.
Ser garoto era tudo. A gente nunca entende, quer ser adulto logo até que percebe o erro e o tempo, este senhor do universo, nos leva de forma implacável pelos caminhos da vida, até que um dia as cortinas se fecham sem perdão.
DEATH FLIGHT
Há muitos anos, tive um vizinho de porta. Parecia uma boa pessoa. Não era de muitas palavras. Muitas vezes, nos encontramos no fim da noite e fazíamos uma breve viagem do térreo ao oitavo andar, mais os pavimentos de garagem, limitados às burocracias da educação - boa noite. Nossa história de poucas palavras, silêncio e respeito começou no fim de 2000 e acabou em 2002. Sua última viagem foi respeitosa como todas, trocamos o boa noite e abrimos as portas dos apartamentos. Mal fechei a minha e ouvi gritos desesperados no apartamento da diagonal: ele entrou, deu dez passos até a janela de sua sala e voou para a morte.
Sunday, June 01, 2025
Aquela garota
Nunca mais vi, nem ouvi falar. Eu gostava dela, gostava muito, queria namorar com ela mas nunca tive chance. Eu a achava linda, linda demais, muito doce e linda mas desconfio que a gente não tinha nada a ver com o outro, exceto pelo tesão. Sim, ela me dava muito tesão, acordei várias vezes de pau duro depois de sonhar que a gente estava transando muito. Eu sonhei mais de uma vez em chupá-la e olhar para a sua reação, aí acordei e encarei a realidade: era tudo sonho, fantasia, sem prática. Na primeira vez que a vi, descartei um ex-amor e só pensei nela por muito tempo. Eu queria acordar junto com ela, enchê-la de beijos e depois fazer todas as putarias possíveis mas não rolou. A gente não tinha nada a ver um com o outro, mas a simples lembrança dela me enchia de desejo, mas não apenas isso: eu queria sua companhia, sua proximidade, sua voz doce perto e também seu corpo delicioso. Eu queria várias coisas mas infelizmente não sobrou nada além de lembranças do que poderia ter sido tão prazeroso. Eu penso nela quase todo dia, eu transo com ela nos meus sonhos e fico esperando que o impossível ainda tenha alguma chance, minúscula chance, mesmo que os anos tenham passado, mesmo que tudo seja inútil.
Sunday, May 25, 2025
Maio
Maio está no final, diz uma canção pop. A gente mal suspira e já chega o meio do ano. Outro dia foi o Réveillon, depois o Carnaval, depois o super feriado de abril, a Lady Gaga e pronto: o tempo escorre a 200 km/h. A gente olha pro lado e a Copa de 2014 tem mais de dez anos, a virada do milênio vai para vinte e cinco e os gols do Assis têm mais de quarenta. A gente acorda, trabalha, sofre, volta pra casa, responde no WhatsApp e quando se dá conta o tempo foi supersônico. Maio, muita gente está muito pobre, muita gente remediada acha que é rica, os devedores pedem a Deus para escapar da morte. As guerras tão matando geral, as balas perdidas também. Os corações estão muito sufocados, o amor é desencontro e a indiferença é a regra. O outro que se dane. Que morra. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Egoísmo em primeiro lugar. Ok, é compreensível porque temos muitos analfabetos funcionais e isso atua diretamente numa compreensão egoísta do mundo. Ao mesmo tempo é uma desgraça. Os proletários estão montando suas marmitas. Os famintos têm a calçada como mar da desgraça. Pobres são humilhados pela polícia. Maio está no final, o tempo galopa e seguimos em nossos caminhos inevitáveis para a morte, enquanto deixamos escorrer grande tempo de vida em empregos, pensando em consumir e ter poder. Eu não. Não. Só queria ter tido algum conforto, ter tempo ainda para fazer coisas legais, ver o mar, namorar, ver desenhos animados, ver crianças e bichos felizes. Realizar uns dois sonhos eróticos. Comprar um forninho elétrico, alguns times de botão e pagar os condomínios atrasados. Eu queria ver menos gente chorando na rua, as pessoas podendo almoçar um bom prato de comida. Eu queria outras palavras. Eu queria encontrar de volta aquele amor que só minha mãe me ofereceu. Vamos ver o que dá pra fazer enquanto o tempo voa, a indiferença cresce e a crueldade se finge de predicado.
@p.r.andel
Sunday, April 20, 2025
MORTOS IMPORTANTES, VIVOS DESPREZÍVEIS
Acho que já escrevi em todos os turnos e situações possíveis. Muita gente ainda se assusta quando sabe que escrevi todos os meus livros desde 2015 no celular, deitadão, geralmente à noite ou de madrugada. Fato é que, entre sucessos e fracassos, viralizados e invisibilizados, já são milhares e milhares de páginas escritas desde a virada do século, quando nunca mais parei de redigir. Parte considerável está preservada no Museu do Futebol, outra parte no PANORAMA e o resto está por aí. E daí? Tudo vai passar mesmo e o destino dos livros será rodar de mão em mão pelos sebos - que continuarão vivos no século XXI. Mas acontece que escrever vai muito além do ato de querer ser lido ou vender livros, na verdade é um oxigênio. Às vezes tento relaxar um pouco mas a vida não me permite - escrever é ótimo mas ler é melhor ainda. Às vezes a coisa não acontece e o carro não tem arranque, caso de agora, quando eu ia falar da importância dos mortos dignos e da desimportância dos mortos vivos. Tenho amigos mortos há muitos anos que são influências fundamentais para mim, enquanto outros vivos, ex-amigos, perderam todo o significado por diversos fatores. Eu ia falar disso mas revi o documentário do Barão Vermelho há pouco e me toquei mais uma vez: como o Barão é phoda! Deu orgulho de ser fã da banda desde o começo, de ter Rodrigo Santos e o saudoso Mauro Santa Cecília como parceiros literários, de ter conversado algumas vezes com Guto Goffi e cumprimentado o Peninha na rua. Ainda preciso conversar um dia com Maurício Barros e conhecer o Fernando Magalhães, que além de ser um tremendo músico é uma unanimidade: todo mundo só fala as melhores coisas a respeito dele. Cazuza, cara, como era phoda e como faz falta. Eu conversava com o Mauro no WhatsApp e certa vez ele disse que seria melhor para mim evitar discussões na internet. Perguntei o motivo e ele disse que eu era grande demais para discutir com figurantes. Fiquei emocionado. Eu ia falar também de gente falsa que me sabotou e, uma vez por ano me procura para fingir uma consideração que não existe. Dane-se: o que passou, passou. Ficou quem tinha de ficar. Enfim, é isso: muitos mortos ainda dão as cartas, muitos vivos fazem tudo para ser cada vez mais desprezíveis.
@p.r.andel
Monday, April 14, 2025
Bar
Era do lado da minha casa. Nós, amigos da época, nos encontrávamos quase que diariamente. Ainda éramos garotos, não bebíamos - eu não bebo direito até hoje. Eu estava no segundo grau ainda. A gente ria. Lá estavam nossos chefes escoteiros, que eram jovens de vinte e poucos anos. Entre sucos de morango e refrigerantes, nos misturamos aos boêmios do meio dos anos 1980. O bar ficava aos pés da escada rolante que levava ao teatro Teresa Raquel, o que nos permitiu ver de perto astros daquele tempo: Bruna Lombardi, Marina Lima, Paulo Betti - que sempre trazia debates politizados ao balcão -, Louise Cardoso, Fausto Fawcett, a espetacular Lídia Brondi e grande elenco. Todos importantes mas não menos importantes do que os ícones locais: Paulinho Cana, Paulinho Bailarino, Paulinho Ceci, Seu Visconti, Fred, Catatau, Mussum, Seu Pauzinho - assim chamado por um pauzinho da sorte que carregava no pulso -, o grande jornalista Arthur Laranjeira, o jornalista Jorge Mascarenhas - sempre de passagem, com sua jovem e linda filha -, além de outros próceres desconhecidos do público mas fundamentais para a Copacabana de 40 anos atrás. De longe, Charlie sempre dava adeusinho - havia a desconfiança que ele fosse um mercenário, pois ia trimestralmente ao Paraguai e voltava sem uma única mercadoria. As garotas das termas L'uomo nos adoravam, viviam de sarrinho conosco. Regininha, que um dia teria o Brasil a seus pés, passava do nosso lado jovem e linda demais. Oswaldo Montenegro não chegava a ser agradável, mas fazia questão de falar conosco. Vimos de tudo ali: beijos incríveis, porradas, o gol do Tita, o gol do Cocada, o gol do Maurício, a morte do Chacrinha, a dor da derrota de Darcy Ribeiro em 1986, a Constituinte, a luta eleitoral de 1989. Uma vez, o jornalista William, um dos únicos chatos do ambiente, disse que eu era um garoto bobo e arrogante, sem carreira - quis o destino que, trinta e tantos anos depois, eu fosse 100 vezes mais lido do que ele. Uma vez, a Cissa me viu triste e disse que eu deveria mudar de ares. Muitas coisas aconteceram muitas vezes, outras apenas uma vez. Choramos, rimos, nos abraçamos. Foram uns sete anos por lá, que valeram por uma vida inteira. Eu me mandei em 1990, mas carreguei aquele tempo para sempre, até quando me dediquei a outros bares. Só do original eu escrevi um livro. O bar venceu tudo: crises, planos econômicos, mortes, até que perdeu a parada para a pandemia. Foi lá que a gente suspirava pela Anne, foi lá que a Tatyana riu de uma piada sinistra e que o Fred, cliente irretocável, falava deliciosas incorreções políticas. Lá se foram quase 35 anos mas eu ainda carrego aquele balcão comigo. As dores, os risos, as pequenas histórias fundamentais. Era meu bar, eu era um adolescente que só bebia suco, que depois voltava para casa e ficava feliz quando a família estava dormindo tranquila. A vida não era fácil, mas no bar havia goles e goles de felicidade. Eu vi.
@p.r.andel
Thursday, April 10, 2025
As famílias
elas são felizes, mas poucas/ são muito poucas/ já que a maioria vive/ debaixo da dor e ilusão/ na selva da grande cidade/cheia de imponentes edifícios/ não existe pena ou compaixão/ elas carregam caixas de doces/ e suas mãos estendidas são completamente desprezadas/ elas são felizes, mas poucas/ enquanto quase todas/ só encontram abraço nas asas largas da humilhação/ agora é tão tarde que logo a noite acabará/ há quem acredite num novo dia/ mas é só o novo capítulo de uma novela permanente
@p.r. andel
Wednesday, April 09, 2025
Conversa
Lembrei do Pedro. Meu amigo há mais de 40 anos, o tempo é avassalador. Ele morava em Ipanema e o Coruja no Leblon. Éramos escoteiros em Copacabana. Jogávamos bola no Corpo de Bombeiros da Xavier da Silveira. Volta e meia íamos aos bares perto do escotismo, tudo para ver o pessoal. Quando terminava o expediente dos botecos, a gente ia para a porta do Shopping dos Antiquários, saída Figueiredo Magalhães. Havia uma loja de ferragens e dava para sentarmos no pé da porta. Então ficávamos mais uma meia hora conversando até eles irem embora. Isso se repetiu muitas vezes. O Coruja era mais calado. Eu falava pelos dois. Passavam alguns carros pela rua. No canteiro de flores, volta e meia pulava um simpático e solitário rato - a gente olhava e ria. Meia noite, uma da manhã. Não tínhamos um níquel no bolso mas ríamos de tudo, o que era compreensível: tínhamos casa, comida e um futuro em promessa. O resto era planejado pelo acaso.
@p.r.andel
Quando peguei em Cássia Eller
Reprise 10/12/2022
NOTA: esta crônica tem várias versões, todas verdadeiras. Nem tudo é mentira: estávamos muitolokos. Hoje Cássia Eller faria 60 anos e faz uma falta filhadapoota, mas ao mesmo tempo sua grande voz não para de ecoar. Viva Cássia!
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Numa noite de quinta-feira de novembro de 1998, eu estava com meu amigo Bolinha em Copacabana. Resolvemos beber chopes. Estávamos ferrados emocionalmente mas juntos, um dando força para o outro. Bem ferrados mesmo. Bom, agora estou bem pior mas tudo bem.
Chegamos tarde ao Sindicato do Chope no Posto Seis. Pedimos frango à passarinho, caldo de feijão e chopes. Já passava de meia noite e tínhamos trabalho cedo. Não bebemos de cair, éramos quase responsáveis, mas dava para rolar umas tropeçadas e até se machucar no calçadão. Mentira: bebemos pacarai. Comemos também, mas a doideira prevaleceu.
Uma da manhã, bar vazio, o garçom esperando que pedíssemos a conta, eu pedi foi uma empolgante caipirinha - beber liberta! -, e subitamente chega ao bar ninguém menos do que Cássia Eller, acompanhada de dois brous. Enchi meu peito de emoção e o Bolinha logo inflou a ideia: "Porra, cara, Cássia é foda demais, você tem que ir lá falar com ela!". E a vergonha? E o risco do toco? A gente nunca sabe. Eu sempre tenho vergonha. Já entrevistei Gilberto Gil e Maria Bethânia, mas continuo com vergonha.
O Bolinha sussurrando que nem o Diabo: "Cara, quando ela for no banheiro, você vai em seguida e cerca ela no corredor". Os dois banheiros eram um de frente para o outro. Mas eu já tinha ido umas cinco vezes de tantos drinques. Oito, talvez.
Um chope, dois, três, cinco, oito deliciosos, eu já tinha aliviado toda a tristeza daquele dia mas o destino foi implacável: Cássia se levantou, Bolinha me deu um cutucão, ela foi para o banheiro, contei até três, fiz o mesmo mas o tanque já estava vazio. Então fiquei lá dentro num silêncio típico de minhas noites de ronda escoteira, ouvindo os ventos, as folhas e o horizonte livre no campo, esperando que, no outro compartimento, surgisse um som de torneira aberta - sinal de que ela estava prestes a sair. E aí eu a abordaria.
Segundos, segundos. Tchoook.
[A água da torneira batendo no dorso da pia.
Dou de cara com Cássia Eller. Ela olha e quase ri. Eu paro e digo "Cássia...". Ela para, eu me aproximo e aí um dos pares de olhos mais expressivos da música brasileira se arregalou: provavelmente ela pensou que eu a agarraria, mas não foi nada disso, mermão. Não. Eu coloquei minhas mãos nos ombros dela, peguei firme e disse "Tu é fodaça pracarai. Eu cantei muito lá na UERJ quando você fez um show no Teatrão. Meu amigo Rubens estava lá mas não desceu quando você sorteou a caixa de Brahma (patrocinadora do evento) - ficou com vergonha de ser a bicha da letra. Só sei que tu é fodaça. Teu show na Apoteose foi demais, você, Bob Dylan e Rolling Stones. Caceta!".
Nós dois, cara a cara, olho no olho, a poderosa rockstar encolhidinha com medo de um gigante anônimo e gentil.
Ela, pequenininha, já calma quando tirei as mãos de seus ombros, olhões quase arregalados. "Pô, cara, brigado pela força. Valeu mesmo.".
Cássia realmente se assustou com a possibilidade de um beijo roubado, mas a um verdadeiro cavalheiro bêbado só interessam as causas amorosamente perdidas. Algo que a gente encontra parecido na literatura de Borges.
Mais de vinte anos depois de sua morte, ela continua com presença avassaladora na música do Brasil.
@pauloandel
Monday, April 07, 2025
Choro
Reprise: Setembro/2020
É fato que tenho chorado muitas vezes neste século e no outro que me cabe. São os que tenho e que me restam.
Tem sido assim desde criança, quando vi minha mãe chorar ao ver uma jovem mãe chorando com sua pequena filha, bem em frente ao Cine Metro, desprezada pelo grande público que saía da sala.
Ou quando meu pai, num ataque de desespero, quebrou tudo em sua última loja numa véspera de Natal, aterrorizado pela miséria à vista.
Também porque ficava nervoso a cada prova da escola para não perder a bolsa de estudos, mesmo que ninguém me cobrasse em casa.
Ao ver a jovem mulher negra andando de quatro por suas limitações físicas, sem direito a uma cadeira de rodas no meio de Copacabana.
E o homem debaixo da marquise perto da porta do shopping, numa cadeira de rodas e usando uma sonda, enquanto seu filho dormia no chão de pedras portuguesas.
Chorei de alegria pela primeira vez na vida quando passei na segunda versão do vestibular anulado. Eu tinha passado antes, era a única chance de mudar minimamente a minha vida. Foi difícil mas deu certo.
E quando me despedi da faculdade. Revejo minhas lágrimas descendo a escada em vez das rampas, que sempre usei.
Muitas vezes no Maracanã lotado ou vazio, sem que ninguém percebesse do meu lado.
Em grandes shows de música, filmes, exposições artísticas ou numa mesa de bar.
Olhando a cidade e lembrando das grandes cenas de geografia, tanto as da praia quanto do subúrbio.
Chorei quando consegui meu primeiro emprego de salário digno. Não se repetiu quando saí, muitos anos depois.
Chorei quando me senti traído ou usado por pessoas falsas, ou por constatar que alguns amigos não eram lá tão amigos assim.
Por Tatiana, Alessandra e Juliana. Por Fred, Xuru e João. Pelo Marcão.
Desde criança chorei na cama que me abriga, a mesma onde nasci e meus pais morreram. Também pelo meu irmão.
Chorei pelas corridas que nunca mais pude fazer, pelo futebol que nunca mais pude jogar. Pelo medo de morrer sozinho e infeliz como nunca.
Pelo país, pela cidade, por meu amável bairro perdido cujos habitantes só vivem em minhas lembranças.
Pelo botequim da adolescência.
Pelos cariocas, fluminenses e brasileiros, tanta gente admirável, honesta, trabalhadora e humilhada diariamente.
Chorei por conviver com péssimos seres humanos que se autoproclamavam doutores, quando na verdade eram empresários fascistas de merda.
Posso ter chorado nas raras vezes em que reli trechos de meus próprios livros, não acreditando que o motivo da emoção fosse algo que eu mesmo escrevi.
Chorei pelas guerras inúteis, que matam e destroem por nada, pelo prazer do ódio.
Chorei por muitas injustiças que sofri, a maioria vinda de pessoas para as quais estendi a mão, o coração e os gestos. Essa vergonha não é minha.
Já chorei em grandes avenidas, hoje mortas, pensando em seus admiráveis personagens, hoje todos esquecidos.
E pelo sofrimento das pessoas humildes, muitas vezes manipuladas, incapazes de perceber que colaboram para seus algozes.
Chorei porque há muito tempo vi crianças chorando num orfanato, querendo que eu as levasse comigo, mas eu não tinha como.
Dia desses chorei porque passei pelo centro da cidade, bem nas entranhas desconhecidas, e vi que muitos populares ainda moram em cortiços.
E por ter relido o ódio da classe média pelo famoso cortiço "Cabeça de Porco", que resultou na desgraça infinita de quatro mil pessoas.
Ao ver fotos de judeus sofrendo em campos de concentração, porque eu poderia ser um deles.
Crimes horríveis, hediondos, muitas vezes cometidos por "pessoas de bem" com a benção dos hipócritas.
Por saber que muitos suicídios têm ocorrido porque as pessoas são apedrejadas por conta da cor, sexualidade ou pobreza.
Pela obesidade também. Muitos riem.
Ver o esgoto moral de alguns governantes brasileiros a céu aberto, in natura, e toda a farsa que destruiu o bem estar de muitos pobres.
Chorei por ter vergonha de feras assassinas.
Choro porque conheço a vida. A vida.
@pauloandel
Wednesday, April 02, 2025
BURNING
no chão, as folhas mortas avisam que o verão deu adeus
e transeuntes derramam lágrimas silenciosas enquanto caminham
a miséria sorri em olhos infantis
enquanto as rugas expelem dor
ao longe, os falsos democratas riem
- militantes da desgraça alheia, mais
preocupados com as próprias carteiras
enquanto arrotam inutilidades sem chão
nos hospitais, os pobres resignados
esperam as despedidas depois do sol
nas ruas, é fácil ver gente mexendo lixo
em busca da sobrevivência dolorosa
à madrugada, tudo está fechado: ninguém responde, o silêncio é a vez
corações solitários soluçando em vão
e corpos humilhados nas calçadas vis
[eu estou sozinho nessa terra tão triste
e linda, cheia de natureza e indiferença
[nenhum abraço me navega
[tristes os bares sem boemia, cerrados
[ninguém estende a mão para ninguém
basta um mísero segundo e abril é fato
as folhas mortas são a grande cartada
escravos imploram para ter vã alforria
tempos modernos fazem castas antigas
nunca fomos tanto ninguém
nunca fomos tanto ninguém
@p.r.andel
Escritores vaidosos e outras histórias
ESCRITORES VAIDOSOS, ARROGANTES E OCOS
Quando o caso é de escritores e poetas, senhor... De cem você tira quatro. Um show de arrogância oca e excesso de auto estima, vendo a si mesmo como gênios incríveis, embora na maioria dos casos não houvesse genialidade alguma além do discurso. Em sua maioria vaidosos ao extremo, individualistas, incapazes de jogar em equipe - falo do que vivi, não do que ouvi falar. Dezenas e dezenas de pessoas. Claro que há exceções valiosas. Bigode, querido amigo, é uma delas - foi a personalidade que mais me fortaleceu publicamente, e olhe que temos uma amizade recente, de uns cinco anos, valiosa e intensa. Volta e meia testemunho a humildade de André Felipe de Lima, que é um monstro escrevendo até post de três linhas.
Ainda sobre a empáfia, várias vezes tive vontade de rir vendo, ouvindo e lendo as declarações de pico celebridades literárias, geralmente vendo ouro em seus próprios trabalhos quando só havia urina, ou desancando o trabalho alheio gratuitamente. Eu não sou vigia da poesia alheia, cada um que desenhe seus próprios versos.
Eu não inventei a língua, o livro, as técnicas de escrita, nada disso. O que faço é contar histórias que vivi e pesquisei do meu jeito. As pessoas adoravam me ouvir em bares e tentei levar essa mesma fala para os livros. Fazer o que dizia Ivan Lessa: "o cronista fala sozinho na frente de todo mundo". Só comecei a cogitar que poderia escrever bem quando tirei o terceiro 10 na redação do vestibular. Eu era tão ingênuo que, com as duas notas anteriores, pensava que tinha tido sorte... E depois que meus textos receberam mais de um milhão de cliques em meu site, mesmo que isso se limite a 50.000, 20.000 ou 5.000 pessoas, não dá pra dizer que muita gente não voltou para novas leituras.
Se vivêssemos num outro tempo, provavelmente o meu trabalho seria muito mais conhecido. Escrevo num tempo em que as pessoas não têm paciência para ler. Gostaria de ser dignamente remunerado. Afora isso, eu não estou nem aí. Fiz várias coisas legais, ainda estou fazendo pouco me importando se chegam a 100, 1.000 ou 10.000 pessoas. O importante é jogar a sua mensagem dentro da garrafa no mar, o resto a gente vê depois. Estou pouco me lixando para críticas e observações de casuísmo barato. O que importa é o conteúdo da mensagem. Ninguém melhor do que eu mesmo para saber quando fui regular, bom, ótimo e excepcional - tenho exatamente a noção disso em tudo que publiquei. E quando fui bom ou regular, é porque ousei, arrisquei e nem sempre dá certo - arte sem ousadia é banalidade.
Se parasse hoje, já teria a sensação de dever cumprido, mas sei que ainda posso mais, quero mais e espero poder realizar muita coisa escrevendo. Quem gostou, gostou; quem não gostou, paciência. Meu texto é minha vida: vivi 25 anos em Copacabana, já passei muita necessidade, ando de chinelos e bermuda. Tenho pressa, muita pressa.
Ah, sim: a opinião de gente que despreza literatura de futebol eu nem considero. São tantas coisas e histórias espetaculares que desconfio de quem debocha do tema. Ninguém é obrigado a gostar, mas subestimar o futebol como combustível lítero-poético é um atestado de ignorância.
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FATO RELEVANTE
Muitas vezes em minha vida, de forma exagerada, diversas pessoas me apontaram como alguém "fora da curva" em termos de capacidade intelectual (detesto pensar nisso mas tem algum sentido). Sinceramente, nunca levei isso a sério até os tempos recentes, mas aí surgiram os antivax, os fãs da terra plana ou quadrada ou trapezóide, e fui obrigado a abdicar do que alguns dizem ser excesso de modéstia.
Não é incrível que nenhuma delas, mesmo as que tinham muitas possibilidades, tenha me oferecido qualquer chance de mostrar a tal capacidade? Ou mesmo de dar uma simples opinião? Ou sugestão?
Entendem o que é o Brasil?
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Paulo Leminski é o grande e merecido homenageado da FLIP em 2025. Ao mesmo tempo, seu filho luta pela sobrevivência e para não ficar nas ruas, indignidade que nenhuma pessoa deveria sofrer.
Entendem o que é o Brasil?
Friday, March 28, 2025
Money above all
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Thursday, March 27, 2025
Light: padrão milícia
LIGHT: PADRÃO MILÍCIA
Que o serviço da Light é uma OSTA no RJ, todo mundo sabe. Coitada da empresa bilionária, tão sofrida... Estou no trabalho, cheio de dor na coluna, quando recebo mensagem do excelente funcionário do meu prédio pelo Whatsapp: "Ó, o rapaz da Light mandou avisar que a luz pode ser cortada a qualquer momento". Isso depois da empresa encher você de mensagens no WhatsApp e no e-mail 10 minutos após o vencimento.
Não bastasse o constrangimento ilegal previsto no CDC, regularmente a Light intimida seus clientes mesmo quando as contas JÁ ESTÃO PAGAS, porque ela se vale de um prazo absurdo de até 05 dias para conferir um pagamento via PIX, que é INSTANTÂNEO. Em nome disso, repetem procedimentos típicos da milícia para constranger seus clientes. Simplesmente mandam um capanga ir aos endereços constranger as pessoas e sequer conferem pagamentos instantâneos, sem contar a mudança das datas de vencimento das contas.
E se você tenta simplesmente COMUNICAR UM PAGAMENTO FEITO, a resposta digital é "aguarde até cinco dias". No Whatsapp, a pomba da assistente virtual exige o seu CEP para prosseguir; quando você digita, a cara de pau te diz que está errado, mesmo você tendo decorado o número porque reside há 25 anos lá.
O assistente virtual serve para baixar segunda via e só. O resto volta e meia trava.
Se você quiser ser atendido pessoalmente em pleno 2025, precisa se deslocar a uma agência cheia de gente (porque o número de clientes lesados é muito maior do que o dos atendentes, que também se estressam naquele INFERNO).
LIXO DE EMPRESA. VERGONHOSA.
E pensar que, quando era criança, eu também sonhava em trabalhar nessa porcaria..
Que ERDA depender do capitalismo sem concorrência. Que ERDA é o atendimento da Light, que por receber em sua maioria pessoas do povo feito eu, nos trata como lixo sem chance de reciclagem.
@pauloandel
Monday, March 24, 2025
Rô-Rô, pra fechar o verão
Como os tempos voam a 1.000 km por hora, a gente mal falou dos fogos do réveillon e já estamos a caminho de abril. Agora somos outono, de duas com as folhas no chão e certa chuva pontual. Note que em fevereiro não havia caído uma gota d'água. O calorão foi barra pesada, mas passou. O Carnaval dominou o mundo e se mandou. É, o verão acabou. Logo, logo, ele volta.
O meu verão ia acabar no primeiro Fla x Flu da decisão do campeonato, uma quarta-feira. O Rio teve uma chuva maluca, que ignorou vários bairros mas castigou outros. No Centro o caldo estourou: várias ruas viraram riachos, árvores e postes caíram e, se eu mesmo não pusesse a vida em risco, atravessando uns 30 metros com água no joelho, não veria o Fla x Flu no conforto da TV. Deu Fla, ainda tinha jogo, esfriei a cabeça. Então percebi que ainda tinha verão até domingo, com o segundo jogo da final e, antes, a despedida dos blocos no Centro.
Chegou a quinta-feira e tirei onda. Vi um dos grandes shows da minha vida. Ângela Rô-Rô, símbolo do Rio, aos 75 anos botou pra sacudir o Teatro do BNDES lotado de fãs, bem no coração da cidade. Não bastasse ser uma das maiores cantoras do nosso tempo, Ângela é uma garantia de risos, danada para contar histórias e causos hilariantes entre as canções - que ela tem aos montes, mesmo quando se trata de ex-amores. Uma tremenda companhia para se conversar por horas.
Enquanto faz piada com a própria idade, mas espantada com as cantadas que recebe “das novinha”, ela assoa o nariz, ajeita a roupa mil vezes e dispara clássicos eternizados da MPB como “Simples carinho”, “Só nos resta viver” e, claro, sempre fechando a apresentação, “Amor, meu grande amor”.
No meio do caminho, interpretações vigorosas do cancioneiro internacional como “Night and day” e “Ne me quittes pas”. Ao lado de R2, seu inseparável maestro Ricardo Mac Cord, pianista cristalino e parceiro de décadas. Enfim, um espetáculo para ninguém botar defeito e de graça: o teatro do BNDES tem uma programação semanal às quintas e sextas, vale conferir. Artigo Barnabé virá em breve.
Garota carioca, suingue bluesy bom, botando rock nas baladas, a maravilhosa Angela Rô Rô não tem herdeiros musicais. Ninguém faz essa mistura tão bem dosada de baladas, standarts e underground como ela ainda faz. Aliás, tínhamos uma, que infelizmente perdemos precocemente no caminho: Cássia Eller. Vamos usar e abusar de Ângela, vamos ouvir tudo que Ângela tem pra cantar pois ainda há muito tempo, mas a vida é hoje.
No fim de semana seguinte ao show, os blocos deram adeus e o Flu perdeu o título. Paciência. Foi aí que realmente entendi que o verão tinha assentado praça na quinta mesmo, com a plateia inteira do Teatro do BNDES cantando “Amor, meu grande amor” de pé. As águas de março já estão partindo, mas a tricolor Rô-Rô volta em maio no Teatro Rival. Vale a pena ver de novo.
Acordado
Queria uma lata de leite condensado agora, nova, com bastante leite condensado dentro.
Vou dormir de novo e comprar mais tarde.
É um pedaço de felicidade possível, real.
A felicidade acessível.
Um pouco mais de sono e a busca por uma semana de paz, mínima que seja.
II
E por que estou acordado agora? Por medo. Simples medo do que virá daqui para frente. Eu não preciso sair cedo para a loja, não tenho mais que madrugar no ônibus para chegar à faculdade, nem bater ponto no escritório. Não deveria ter medo, mas tenho. Pensando bem, devo sim.
Então são vinte para as cinco, eu escrevo um pouco, espio a ausência de recados - com ou sem medo todos estão dormindo - e então me toco de que sonhei com um dos meus passatempos prediletos do passado: viajar de ônibus à noite. Lembro de estar chegando em alguma rodoviária próxima do Rio, coberta, talvez a duas ou três horas daqui porque fiz contas pequenas de chegar ao Rio à meia noite. Me lembro brevemente do desembarque e que alguém me acompanhava.
Quando acordar de novo, pesquisarei preços para o irmão do Piccoli, irei para a loja e sonharei com a vitória na Lotofácil, que literalmente pode salvar a minha vida e prolongá-la - afinal, não adianta parecer ter 40 e poucos anos se na realidade tenho quase 60. É bom apenas por uma vaidade oca e só. Eu sei o peso que carrego literalmente, em quilos e tristezas.
III
Seria bom demais ter uma lata de leite condensado agora, mas é impossível. O que resta é um trago de Coca-Cola.
IV
Bom mesmo é ter paz. Ter saúde, uma casa, uma boa família. Ter amigos, poucos mas verdadeiros. Bem poucos. Poder escrever e publicar. Ver o mar, caminhar por ruas incríveis. Ficar deitadão sem medo das contas. Escolher a paz.
V
Todos os dias, de maneira infalível, eu penso em pessoas importantes da minha que se foram, nem sempre para a morte mas também para a indiferença. E todos os dias eu penso em como este mundo humano é egoísta, escroto, opressor e praticamente escravagista. Também penso em coisas legais e consigo produzir ainda coisas em alto nível, sem precisar da ilusão boboca do mundo belo e perfeito porque ele está longe disso - basta não ser um alienado e perceber que não há uma única rua sem tristeza nesta cidade.
Monday, March 17, 2025
O Fla x Flu do trem da Central
Segunda-feira, cinco da manhã. Começa a semana, bem cedinho para os trabalhadores do Rio. A maioria proletária se desloca de trem para a gare da Central do Brasil. São dezenas de milhares de trabalhadores, muitos flamenguistas e tricolores também. É a continuação do Fla x Flu de ontem, quando o Flamengo foi campeão no empate sem gols. Os flamenguistas viveram a felicidade do título, que lhes servirá de combustível nestes dias de luta. Os tricolores, coitados, amargaram o vice e seguirão na labuta sem a efêmera, mas deliciosa, alegria da vitória. Talvez a escolha clubística seja a única coisa que separa esses trabalhadores; de resto, eles pertencem a um grupo homogêneo e sofrido, que disputa um prato de comida como se fosse uma bola, que muitas vezes vive humilhado pela opressão criminosa do tráfico e da milícia. Homens, mulheres e crianças que saem de madrugada e não têm garantia de que conseguirão voltar para casa, nem que poderão comer algo além de biscoitos baratos no decorrer do dia. A maioria destes torcedores não conseguiu ir ao Maracanã: viveram o Fla x Flu final em biroscas, na rua, em radinhos de pilha ou pelo celular. São excluídos do estádio pela opressão financeira que vivem noite e dia. Agora, depois desta viagem longínqua para centenas de milhares de torcedores, que logo chegará à Central, começa o Fla x Flu da vida, a luta, o corre, a batalha para se chegar vivo até o próximo final de semana, com a vida dignamente cumprida. O Fla x Flu não termina nunca, é o jogo que não acaba, é também o único combustível de alegria para muita e muita gente que tem no jogo de bola a sua única esmolinha de alegria. O Fla x Flu tenta driblar a natureza e ser feliz num mundo duro, pesado e desumanizado, mas a vida continua. Ainda estamos aqui e todos querem apenas viver com dignidade. Daqui a pouquinho, quando o trem sentar praça na Central do Brasil, o Fla x Flu continua. Com ou sem luto, a vida continua em riste. Muito mais siameses do que adversários, tricolores e rubro-negros seguem acreditando, tentando, mirando a efêmera felicidade.
@pauloandel
Saturday, March 15, 2025
Os pernósticos
Eles se acham o máximo. São o tipo de gente que ri das pessoas humildes, que não praticam a farsa da norma culta. Acreditam piamente que são seres superiores por causa disso. Vivem a cafonice pueril do Português perfeito. Não, eu não quero abrir uma guerrilha léxica, mas apenas dizer que a mensagem e o conteúdo são mais importantes do que a forma em si, assim como o presente é mais importante do que sua embalagem. O Brasil é um país de pessoas humildes e sofridas, oprimidas. Muitas passam longe da discutível norma culta. Merecem ser desqualificados por isso? Claro que não. Temos a linguagem popular brilhando na cultura brasileira em muitas manifestações do Norte-Nordeste. Temos a fala das ruas, urbana, contemporânea. Sim, vamos estudar a língua, vamos aprimorar as falas e escritos, mas que fique bem claro: nenhum pernóstico engomadinho com sua gramática de decoreba é capaz de oferecer boas mensagens com paixão, fúria, tesão e sede de liberdade. O talento do texto se mede por fatores muito além do simples domínio gramatical.
@p.r.andel
Money, it's a shit
Parei pra ler uma besteira na internet e um grupo de pessoas discutia um post de possível golpe do empréstimo e tal. Isso tem toda hora. Mas eu acho graça como o dinheiro muda tudo. E começam as desgraças: amigo que é amigo não pede dinheiro, dinheiro estraga amizade, eu não empresto nem pra quem eu confio. Repararam a hipocrisia? Confiam em tudo, menos quando há dinheiro. Que merda de amizade é essa? Eu já emprestei dinheiro paca quando tinha, raramente me dei mal. Infelizmente perdi uma ou duas amizades numa história mal contada sobre dinheiro, que a gente só percebe a besteira aos 27 anos quando já tem 50 e não mudou o mundo. Um dos poucos amigos meus de verdade me deu dinheiro pacarai e eu também salvei a vida dele umas duas vezes, mas infelizmente ele morreu e não volta. Teve gente que se dizia minha amiga demais e, na hora em que eu mais precisei, me deu um chute na bunda. A questão é que o mundo dá voltas e isso é um perigo. Já dei dinheiro, já torrei dinheiro, já fiz coisas maravilhosas com pouco ou nenhum dinheiro. Nunca me interessei por isso, nunca medi nada nem ninguém pelo dinheiro. Minhas pequenas felicidades foram em noites no campo, silenciosas, com uma barraca e alguma comida. Ou no Maracanã vazio, deserto, numa noite de jogo com pequeno público. Nas incontáveis sessões de cinema onde estive sozinho ou com no máximo três pessoas. Sentado na areia olhando o infinito do Atlântico Sul e sonhando com uma garota que jamais me beijaria. Foda-se o dinheiro: ele só serve para sobreviver. Enquanto isso, esses idiotas economizam dez mil reais no banco e se acham ricos, mas quando alguém está doente ou à beira da morte, fazem cara de paisagem e depois escrevem lindos posts de merda. Eu não tenho nenhum amigo em que eu não confie por dinheiro; se não confiar, não serve para ser meu amigo. E sinceramente, a melhor coisa que me aconteceu na vida foi me livrar para sempre de gente que não confia em mim por dinheiro, porque eu sou muito mais do que um bolo de notas de papel, porque minha cabeça vai muito além do que um bolo de dinheiro, um carro ou uma casa. Eu não trocaria os milhares de sentimentos e emoções que despertei nas pessoas por dinheiro. A minha amizade não tem preço. Cada um sabe de si e eu é que sei de mim: todo dinheirista é, no fundo, um limitado diante da vida. Pode ter posses, bens, a porra do dinheiro em espécie mas não tem alma, não sente a vibração do poema, não percebe a cena por trás da cena. Todo dinheirista é limitado. MONEY, IT'S A SHIT.
@p.r.andel