Acordei por volta das cinco e meia da manhã. Era dia de levar meu irmão para se apresentar ao garboso Exército. Bebemos um café rápido e descemos para tomar um táxi. Tarefa difícil nos dias de hoje: poucos motoristas atrevem-se a parar antes da alvorada para apanhar como passageiros dois sujeitos de casaco, mesmo que no inverno. Depois de cinco rápidas tentativas, conseguimos.
Simpático o motorista. Quando demos o destino da corrida, pôs-se a falar com orgulho do filho, um estudante que tem ojeriza ao serviço militar e que está estudando para concursos enquanto trabalha. Felicidade do pai era pouco, rapaz, na madrugada, trabalhando e radiante. A filha está em processo seletivo na IBM e isso o deixou feliz; pensei em Trino e logo concluí que mal sabe a moça o que lhe espera.
Estácio, Mangueira, Triagem, chegamos ao quartel. O Exército gosta das “pegadinhas”, era assim desde os tempos em que eu era um menino e cruzava a madrugada da Atlântica rumo ao Forte de Copacabana, cinco horas em pé sem grandes razões que se justificassem. Um dia era limpar parede, no outro era atender telefonemas. Uma vez me puseram fazendo as contas dos itens gastos na limpeza do quartel, divergi matematicamente de vários companheiros e isso até parece com algo dos noticiários atuais. Dezoito anos depois, uma fila enorme e uma faixa: “Bem-vindos ao Exército Brasileiro!”. Gostei. Deixei meu irmão na fila e torci para que não aplicassem-lhe humilhações que sempre acontecem nestes momentos, todas inexplicáveis e nenhuma capaz de realmente formar algum homem de verdade. Diversos garotos ainda vinham correndo pela rua Doutor Garnier, desesperados, o medo, a adolescência estampada. Garotos com suas mochilas, pastas, alguns mais abonados, outros humildes. Antigamente eu ia sozinho, hoje em dia tenho que ser companhia. Havia outros irmãos e alguns pais também. Madrugada que não seja na Zona Sul não é mole.
Seis da manhã, missão cumprida, desci o curso da rua. Nos tempos do escotismo resolvia-se tudo na bússola; achei que seria possível chegar até a estação do metrô pelo caminho que escolhi. Ledo engano. De repente, havia apenas uma fábrica, dois galpões abandonados e, no fim do horizonte, um trem passava. Rua vazia, sem carros, sem gentes, só um garoto vindo de longe. Aproximou-se, perguntei-lhe como fazer para chegar à estação. Disse-me que seria melhor seguir com ele e retroceder: o caminho da reta na rua daria numa favela cheia de “moleques marrentos” e que estranhariam “um senhor só de olhar o que vestia”. Aquilo me intrigou; segui o conselho amigo, recuei com ele e voltei para o quartel. Agradeci. Era um menino que não devia ter mais de vinte anos, com sua mochila tão surrada quanto as dos conscritos, a indefectível e não menos surrada camisa do Flamengo por baixo de outra flanelada xadrez, moda dos anos oitenta. Despedimo-nos. Ratifiquei o agradecimento: eu, burro velho, sem bússola, entrando na favela por engano às seis da manhã e o garoto me ajudando antes de partir para o trabalho.
Voltei ao regimento Pandiá Calógeras; sem entrar em questões relativas ao “heroísmo” do militar que batiza a unidade, gosto deste nome. Meu irmão, mais outros duzentos garotos, já tinha entrado e não havia mais fila do lado de fora. Dei a volta no quartel, adentrei a estação de Triagem e, nela, atentei de que era a primeira vez que eu buscava condução ali. Seis e meia da manhã, sozinho, parado na estação, tempo frio, sol abafado e um silêncio de amém. Veio o trem. Gentes e gentes que não mais acabavam. Lotação absoluta. Há quantos anos eu não pego uma condução de manhã? Não sei dizer. Houve quem dissesse que o metrô iria aliviar o sofrimento da turba, que não iam mais passar humilhação em ônibus lotados. Engarrafamento não há, sejamos justos – quando não dá problema ou enquanto o terrorismo ainda não nos descobriu. Um aperto só, tudo bem refrigerado. Mangueira. Estácio. Linha um. Aliviou.
Saltei na Central. Sete da manhã. Um batalhão de estranhos, gentes correndo pra todo lado. Algumas prostitutas, uns batedores de carteiras, milhares de humildes desesperados para trabalhar ou para encontrar trabalho remunerado. À esquerda, a velha torre da Gare Dom Pedro I, o velho relógio, o Ministério do Exército. Uma fita de um segundo, deparei-me vendo João Goulart berrando ali, as cem mil pessoas nas ruas, o Lacerda conspirando, o Brizola defendendo, todos muito mortos e a sujeira muito viva nas malas, nas contas numeradas e na escrotidão que assola o país. Gente, gente e mais gente à minha volta. Uma correria que é digna mas tira a humanidade, tira o amor ao próximo.
Apareceu o CACO, o velho de guerra das lutas estudantis. Ninguém mais luta, a não ser por si somente. Um bar na esquina, certa vez estive encontrando Raul ali. Podia ter sido semana passada, mas tem uns dez anos. O Moraes e o Hugo também estavam, suponho. Era uma birita matinal, daquela que os garotos adoram quando têm seus vinte anos – e deveria ficar por aí mesmo. Tinha algum salgadinho ou sanduíche ruim, era certo. Os tempos voam velozes.
Voltei a pé para casa. Em frente ao hospital Souza Aguiar, gentes lendo capas de jornais. Escândalos. Sujeira. Havia um jornal que circula em Caxias mas é vendido por estas bandas, a “Hora Popular”, se não me engano. Duas manchetes: uma, de um tarado pedófilo; outra, a foto de um corpo em putrefação com uma bala na cabeça, história de cemitério clandestino na Baixada. Dizem que o brasileiro não gosta de ler; se é facto, porque se apinham nas bancas em busca de uma notícia qualquer? Gostam sim. Deveriam ter mais acesso à Drummond e Braga, não a fotos de corpos podres.
Cheguei em casa. Fui ver as notícias da TV. A putrefação é outra. Caráter. Segunda chamada do café. Hora de trabalhar.
Dez da manhã, meu irmão continua atolado no quartel. Minha sala é cheia de silêncios. Mandei um beijo para Cris, não falei com Max.
Olhei para trás, vi o velho quartel, a corrida desesperada da garotada, o menino me ajudando na entrada da favela, as gentes apertadas no coletivo e correndo pela Presidente Vargas. A Central, o CACO, a banca de jornais, os curiosos, o corpo putrefato.
Era tudo um pouquinho de Brasil.
Simpático o motorista. Quando demos o destino da corrida, pôs-se a falar com orgulho do filho, um estudante que tem ojeriza ao serviço militar e que está estudando para concursos enquanto trabalha. Felicidade do pai era pouco, rapaz, na madrugada, trabalhando e radiante. A filha está em processo seletivo na IBM e isso o deixou feliz; pensei em Trino e logo concluí que mal sabe a moça o que lhe espera.
Estácio, Mangueira, Triagem, chegamos ao quartel. O Exército gosta das “pegadinhas”, era assim desde os tempos em que eu era um menino e cruzava a madrugada da Atlântica rumo ao Forte de Copacabana, cinco horas em pé sem grandes razões que se justificassem. Um dia era limpar parede, no outro era atender telefonemas. Uma vez me puseram fazendo as contas dos itens gastos na limpeza do quartel, divergi matematicamente de vários companheiros e isso até parece com algo dos noticiários atuais. Dezoito anos depois, uma fila enorme e uma faixa: “Bem-vindos ao Exército Brasileiro!”. Gostei. Deixei meu irmão na fila e torci para que não aplicassem-lhe humilhações que sempre acontecem nestes momentos, todas inexplicáveis e nenhuma capaz de realmente formar algum homem de verdade. Diversos garotos ainda vinham correndo pela rua Doutor Garnier, desesperados, o medo, a adolescência estampada. Garotos com suas mochilas, pastas, alguns mais abonados, outros humildes. Antigamente eu ia sozinho, hoje em dia tenho que ser companhia. Havia outros irmãos e alguns pais também. Madrugada que não seja na Zona Sul não é mole.
Seis da manhã, missão cumprida, desci o curso da rua. Nos tempos do escotismo resolvia-se tudo na bússola; achei que seria possível chegar até a estação do metrô pelo caminho que escolhi. Ledo engano. De repente, havia apenas uma fábrica, dois galpões abandonados e, no fim do horizonte, um trem passava. Rua vazia, sem carros, sem gentes, só um garoto vindo de longe. Aproximou-se, perguntei-lhe como fazer para chegar à estação. Disse-me que seria melhor seguir com ele e retroceder: o caminho da reta na rua daria numa favela cheia de “moleques marrentos” e que estranhariam “um senhor só de olhar o que vestia”. Aquilo me intrigou; segui o conselho amigo, recuei com ele e voltei para o quartel. Agradeci. Era um menino que não devia ter mais de vinte anos, com sua mochila tão surrada quanto as dos conscritos, a indefectível e não menos surrada camisa do Flamengo por baixo de outra flanelada xadrez, moda dos anos oitenta. Despedimo-nos. Ratifiquei o agradecimento: eu, burro velho, sem bússola, entrando na favela por engano às seis da manhã e o garoto me ajudando antes de partir para o trabalho.
Voltei ao regimento Pandiá Calógeras; sem entrar em questões relativas ao “heroísmo” do militar que batiza a unidade, gosto deste nome. Meu irmão, mais outros duzentos garotos, já tinha entrado e não havia mais fila do lado de fora. Dei a volta no quartel, adentrei a estação de Triagem e, nela, atentei de que era a primeira vez que eu buscava condução ali. Seis e meia da manhã, sozinho, parado na estação, tempo frio, sol abafado e um silêncio de amém. Veio o trem. Gentes e gentes que não mais acabavam. Lotação absoluta. Há quantos anos eu não pego uma condução de manhã? Não sei dizer. Houve quem dissesse que o metrô iria aliviar o sofrimento da turba, que não iam mais passar humilhação em ônibus lotados. Engarrafamento não há, sejamos justos – quando não dá problema ou enquanto o terrorismo ainda não nos descobriu. Um aperto só, tudo bem refrigerado. Mangueira. Estácio. Linha um. Aliviou.
Saltei na Central. Sete da manhã. Um batalhão de estranhos, gentes correndo pra todo lado. Algumas prostitutas, uns batedores de carteiras, milhares de humildes desesperados para trabalhar ou para encontrar trabalho remunerado. À esquerda, a velha torre da Gare Dom Pedro I, o velho relógio, o Ministério do Exército. Uma fita de um segundo, deparei-me vendo João Goulart berrando ali, as cem mil pessoas nas ruas, o Lacerda conspirando, o Brizola defendendo, todos muito mortos e a sujeira muito viva nas malas, nas contas numeradas e na escrotidão que assola o país. Gente, gente e mais gente à minha volta. Uma correria que é digna mas tira a humanidade, tira o amor ao próximo.
Apareceu o CACO, o velho de guerra das lutas estudantis. Ninguém mais luta, a não ser por si somente. Um bar na esquina, certa vez estive encontrando Raul ali. Podia ter sido semana passada, mas tem uns dez anos. O Moraes e o Hugo também estavam, suponho. Era uma birita matinal, daquela que os garotos adoram quando têm seus vinte anos – e deveria ficar por aí mesmo. Tinha algum salgadinho ou sanduíche ruim, era certo. Os tempos voam velozes.
Voltei a pé para casa. Em frente ao hospital Souza Aguiar, gentes lendo capas de jornais. Escândalos. Sujeira. Havia um jornal que circula em Caxias mas é vendido por estas bandas, a “Hora Popular”, se não me engano. Duas manchetes: uma, de um tarado pedófilo; outra, a foto de um corpo em putrefação com uma bala na cabeça, história de cemitério clandestino na Baixada. Dizem que o brasileiro não gosta de ler; se é facto, porque se apinham nas bancas em busca de uma notícia qualquer? Gostam sim. Deveriam ter mais acesso à Drummond e Braga, não a fotos de corpos podres.
Cheguei em casa. Fui ver as notícias da TV. A putrefação é outra. Caráter. Segunda chamada do café. Hora de trabalhar.
Dez da manhã, meu irmão continua atolado no quartel. Minha sala é cheia de silêncios. Mandei um beijo para Cris, não falei com Max.
Olhei para trás, vi o velho quartel, a corrida desesperada da garotada, o menino me ajudando na entrada da favela, as gentes apertadas no coletivo e correndo pela Presidente Vargas. A Central, o CACO, a banca de jornais, os curiosos, o corpo putrefato.
Era tudo um pouquinho de Brasil.
2 comments:
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