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Friday, December 29, 2006

Um poeta recolhido

vejo um poeta na rua em silêncio
parece tão reflexivo, contido
sorve um chope com delicadeza
e senta o copo na mesa solitária
ouvi falar de seu talento, ocluso
hermético para grandes platéias
trata-se de um poeta cansado
pela denúncia das grandes olheiras
e também do cigarro mal tragado
parece fitar uma rua abandonada
tudo diferente da minha calçada
vejo o poeta, vejo-me calado afim
e o que sinto agora seria fadiga?
sede? sombra de dúvidas? distância?
descreio de tudo o que cogitei
agora entendi a distância do poeta
rascunhando num guardanapo
rabiscando um devaneio de amor
ainda não temos uma noite de carnaval
e raras são as festas da cidade
contudo, o poeta não pára
o que parece-me distância, na verdade
é sua quase única razão de viver
rabiscar, expulsar amor dum coração para um papel vulgar


Paulo Roberto Andel, 29/12/2006

O aviário

Depois de tantos anos morando pelo centro da capital, ainda sinto-me um estrangeiro morador.
Estou mais do que acostumado ao frenesi das ruas na condição de trabalhador assalariado, muitos estão.
Habitar, contanto, é outra coisa. Sei das ruas e dos caminhos, mas não tenho os endereços em mente como os de minha tribo nativa, que sempre será Copacabana. Vez ou outra, palpito e dá certo. Um estabelecimento, contudo, sempre chama-me atenção: um aviário que fica na rua André Cavalcanti.
Nos meus tempos de criança, na velha Toneleros, havia uma casa de aves também. Impressionava-me: primeiro, não era tão comum para crianças da zona sul depararem-se com animais vivos que não cão, gato e pombo, variedade que só fui ter no zoológico e, tempos depois, quando tornei-me escoteiro. Contaram-me também que os pobres bichos ficavam ali à espera do sacrifício, entre as grades apertadas. Tive muito medo daquilo, e tal fato volta e meia traz-me a idéia de necessitar parar de comer cadáver.
Sei que são muito gostosos.
Gente muitíssimo mais importante do que eu, como Nelson Rodrigues, já sonhou com bifes em crônicas, de modo que em minha condição de reles mortal aceito-me. Às vezes. A pena, entretanto, existe em mim. Pobres bichos. Pobres.
O dono do aviário da André tem um perfil cansado, por vezes entediado. Sempre está sentado em uma cadeira, do lado de fora do balcão de atendimento, tragando um cigarro, à espera de ávidos consumidores que, em busca de carne fresca, disponham-se a mandar abater os coitados patos, galinhas, porcos e associados. Tem um ar triste nos bichos, assim como tinha na Toneleros. São irracionais, feito eu, consumidor; não sei como, sopra em suas estampas a síndrome da morte a seguir. Saddam deve estar sentindo isso, ou já sentiu, ninguém sabe ao certo.
Promessas de ano novo não são tão válidas, sabemos. Podem soar como início de regime alimentar às segundas-feiras. Eu queria diminuir a carne do cardápio, sei que é difícil. Adoraria extingui-la do meu cenário, sei que é impossível. Creio que me faria bem e sentimentos melhores viriam ao meu pensar, descontados todos arrependimentos que tenho pelos milhares de bois, frangos e peixes mortos em nome da minha fome e da minha saúde. Isento as estranhas criaturas que dizem ser a receita dos hamburgers Mac.
Estamos no fim de mais uma etapa, mais um ano, novas promessas à vistas, velhas perspectivas. O que virá mais à frente? A esquina, outra vez. O aviário. O dono.
Eu não tenho pai do céu para fazer promessas, promessas. Promessas. Resta-me apenas um incômodo neste momento de fim de tarde.
Parece que os bichos da minha infância no aviário da Toneleros reviveram nos da André. Trazem-me medo, apreensão.
Algo em meu subconsciente traz algum alerta para a demolição da Frei Caneca ontem. Grades, bichos enjaulados à espera da morte e algum sujeito sentado tragando um cigarro despreocupadamente. Alguma coisa tem a ver.
Pior ainda.
Pensar nas gentes enjauladas pelas janelas de vidro dum ônibus, ardendo vivas no inferno, morrendo para satisfazer a insanidade de bandidos cruéis, que trouxeram de volta os tempos da inquisição. E que uns insistem em defender que são meus semelhantes.
Eu sou um bicho menos insano. Arrependido, sirvo de amparo para que a carne não humana seja bom negócio no planeta. Longe de mim incendiar um galeto em vida.
Mais perto, do veículo, tem gente sentada tranquilamente e tragando demais, como se nada estivesse acontecendo.
Desisto do passeio e volto para casa. Amanhã, outro dia, é um novo ano. Novas grades.
Paulo Roberto Andel, 29/12/2006

Thursday, December 28, 2006

Onde mora liberdade?

Liberdade, santa insana liberdade
Utopia inalcançável, mais que desejada
Vejam o exemplo de nossa velha cidade
Cada um de nós busca o jeito de ser livre
Num dia de folga, tarde de mar ou no futebol
Desfraldando uma bandeira e gritando firme
Tudo feito de pequenas liberdades, efêmeras
Os humildes buscam liberdades nas palafitas
Nas casas de beira de estrada, alto da colina
Os trabalhadores caçam liberdades na mercearia
Com os minguados dinheiros, de farto suor
Os mendigos perseguem liberdade de sobreviver
Entre a mão estendida e a cachaça de anestesia
Mesmo o abonado, o bem-nascido, abastado
Não conhece bem a ciência de ser tão livre
Uns fogem de impostos, outros da miséria ao léu
Que lhes incomoda olfatos e visões
Outros, blindados, correm das balas perdidas
Das patrulhas noturnas, ensandecidas
E também do fogo infernal das ruas
Nem mesmo um falecido é totalmente livre
Com exceção do ateu que acerte a tese
Senão, é capaz de ainda precisar de senha
Para ser atendido nas portas dos céus



Paulo Roberto Andel, 28/12/2006

Sunday, December 24, 2006

Caso encerrado

Flanava na tarde vadia às vésperas do Natal.
Contrariando planos feitos instantes antes, desistiu de um rumo e seguiu para outro. Adentrou uma taberna. Lá entrando, deparou-se com um silêncio típico de contradição com o local. Permaneceu assim. Pouca gente, poucas canecas tilintando, certo ar de monotonia e leveza.
Pediu um trago.
Parou, pensou, refletiu sobre a vida. Tudo em dedicado silêncio, sem vizinhos, ocupantes de mesa ou outros interlocutores.
Houve um rompante, interrompeu-se aquele mesmo silêncio por causa de um tapa nas costas.
Era um conhecido, um ex-amigo, embora não qualquer.
No passado, eram muito ligados, pertenciam a uma mesma turma, cortaram dias e noites pela Guanabara, parecia até amizade de verdade que, no entanto, esvaiu-se à frente. A turma quase toda ainda se mantém, tirando o sujeito do tapa: afastou-se de todos, por umas razões um tanto quanto esquisitas, deixou murchar carinhos. Posta a estranheza de lado, após o cumprimento, falou feito cântaros de chuva. Nada que fosse empolgante como as histórias de alegria e humor do passado; os tempos às vezes tiram o sabor das coisas, ou azedam-nas.
Contou de seu sucesso profissional, de suas conquistas financeiras, de sua afirmação intelectual, de seus novos rumos, desinteressado que estava dos vínculos da antiga, considerando-os todos desimportantes. Mostrava uma incessante obsessão em parecer bem, em ter encontrado o sucesso, talvez comprado num desses livros de receitas que pairam pelas bancas de jornais. Gastou um tempo considerável falando sozinho, quase como se fosse um político em campanha; mais ainda, parecia até uma versão caricata dos estadistas, normalmente nesta posição por meios não democráticos, que ficam dispostos a cultivar a própria imagem. Tudo em vão, tudo frívolo e fugaz. Uma conversa desinteressante pelo passado de amigos, pelo presente de bons conhecidos. Era quase um Narciso envolto num espelho de trezentos e sessenta graus. Em troca, sutilmente, recebia o olhar que se fazia de atento mas que continha um dos piores sentimentos que um ser humano pode nutrir por outro. Nojo. Indignidade para com o passado fraterno.
Houve uma hora em que o discurso mostrou-se fatigado. Um pequeno momento de bom-senso do palestrante, aproveitou-se para despedir-se amigavelmente, mas sem grande calor: talvez tivesse percebido que sua prosa rançosa só não tinha sido rechaçada por boa educação da parte ouvinte. Não deixou telefone, contato, absolutamente nada, menos ainda recebeu solicitação para tal. E foi melhor assim.
Quem muito ouviu, deixou a taberna logo a seguir. Resolveu novamente mudar rumos. Buscou ar livre, ruas arborizadas, gentes caminhando por entre as réstias de sol a bater nas calçadas. Quando chegou perto do mar, reavivou o discurso pedante da taberna. Pareceu-lhe feito o desapontamento que, por vezes, cada um de nós tem quando reencontra a pessoa amada do passado, ouve-a e depois toma-se pela imaginação de como poderia, um dia ter desejado alguém daquele jeito. No caso real, tratava-se de bem maior, pior ainda: amizade é para superar todas as mazelas, todas as barreiras, é para ser indestrutível - ou, ao menos, deveria ser caso fosse embebida pela essência da sinceridade. Triste a sina de deparar-se com a piora de quem já recebeu de nossa parte os maiores votos de boa companhia.
Sobre o assunto, seu último pensar foi o de que quando certas coisas ficam distantes, em alguns casos, é melhor deixá-las intocáveis, para não saborear o amargo da decepção e nem malversar as lembranças de um passado, mesmo que não seja lá tão distante assim.
Mirou em frente, havia a enseada de Botafogo. Não sorriu. Admirou.
Seguiu em frente, como toda vida. Sem espaço para petulância.
Paulo Roberto Andel, 24/12/2006

Memória

Certa brisa tenra acaricia meu rosto nos arredores da pedra do Leme
Minha vista namora um horizonte, encontro de dois azuis cativantes
Ao fundo, eu procuro o que vem por depois, o paradigma, infinito
Não é fácil enxergá-lo, saber ao certo o que de lá se pode esperar
Enquanto o futuro não vem, um garotinho senta-se à minha vizinhança
Trazendo biscoito de polvilho numa das mãos, mate gelado noutra
Branquinho, de sorriso inconteste, tem no chapéu que usa um peixe
Não sei bem qual a razão, imagino-o que seja como fui por um dia
Um rompante, um triz, um pequeno caco do que parece ser vida
Talvez uma história sem fim de muito, mas muito tempo que se foi.


Paulo Roberto Andel, 24/12/2006

Friday, December 22, 2006

Alessandra

Eu sou pobre, louco, para descrever o encanto
Que teu alvo sorriso fez viver meu coração
Ainda me lembro da tua voz em frases eternas
Incapazes de enjoar ou cansar, cativantes
Jamais igualadas por outras autoras, muitas
Eu não tenho vocabulário que possa descrever
A alegria que um dia brotastes em mim
Por isso, ofereço-te meu canto, minha fala
Meu pensamento solitário que te busca nas regiões
E faz de ti a minha melhor companhia escondida
Pois moras onde ninguém vê com clareza
E ninguém escuta as melhores palavras que te dou


Paulo Roberto Andel, 20/12/2006

Retrato do artista quando morto-vivo

Olhei para um pequeno espelho de casa
Parecia-me um homem velho, fatigado à vista
Com vincos profundos de tempo no rosto
E mãos de veias sobressaltadas, púrpuras
Na esguelha, um terno pendurado na cadeira
Uma fagulha de janela, noite ilustrada
O homem fitava a si mesmo, lentamente
Como que sorvesse cada segundo da vida
E podia até parecer canção da despedida
Com a firmeza dos inabaláveis olhos pretos
Talvez tentasse atravessar o brilho do vidro
Para recuperar sua mocidade, sua infância
Dos tempos da praça do Lido, liberta
Ou, mais ainda, do jogo de bola na vila
Houve um rompante inimaginável, subitamente
E toda verdade de dor e morte teve fim
Olhei novamente e não havia um ancião
Nem mãos machucadas, nem rugas delatoras
Era uma singela alucinação da melancolia
Ao contrário da minha vã certeza
O espelho era todo reflexo de mentira
Doce mentira que livrou-me do mal
Ainda assim eu não digo amém
Pois morto, vivi dois mil anos a mais
Sem morte, sem dores ou maiores dramas
Sem buscar a tristeza da face num retrato qualquer


Paulo Roberto Andel, 22/12/2006

Natale

Quando chega o fim dos dias de um ano, tudo pela contagem que um dia estabelecemos, nas grandes metrópoles tudo fica diferente.
As pessoas muito preocupadas com o Natal, a festa do Ano Novo, a roupa branca, os presentes da moda.
Tive um Natal muito triste em minha vida quando era criança. O seguinte foi bom, um dos únicos. Ganhei Polly, brinquedo de armar. Notícias davam conta da morte de Charles Chaplin. Todo mundo dizia que tratava-se de um gênio; eu não tinha dez anos e, graças ao bom tempo, consegui ratificar a voz popular. Chaplin morreu velhinho, viveu bem, fez muita coisa boa, muita gente sorrir, uns poucos ficaram vermelhos de raiva. Dia desses foi o Barbera. Eu não acredito em céu, mas em caso de meu erro, muito o merece: só pensar no Barney, Zé Colméia, Scoody e tantos outros para saber o quanto esse sujeito fez de criança feliz no mundo.
Natal, a princípio festa cristã, abraçada por todas as causas, mas parcialmente. Falam de solidariedade, de cumplicidade, de amor ao próximo, mas eu só vejo isso por uns cinco minutos. Passa o ano, os mendigos continuam dormindo entre os ratos, as crianças chorando pela miséria e a injustiça por todo canto. Há uns quinze anos atrás, fingiram acabar com o comunismo e estabeleceram uma nova ordem capitalista - vejam o que está pelas ruas do planeta.
Falta solidariedade. Amor ao próximo. Respeito. Isso independe de religião, menos ainda dos presentes comprados após estafantes filas nos centros comerciais. Não importa a roupa branca.
A vida é todo dia, até que se esgote, encerre.
Pessoas têm fome todos os dias. Precisam de casa, comida e saúde todos os dias, um teto também.
O que fazemos em relação a isso? Damos nosso real de esmola, que é importante mas pouco? Atravessamos a rua para não encarar o produto de nossa ganância consumista? Levantamos a cabeça para não enxergarmos as "criaturas repugnantes", quando repugnante mesmo é a nossa indiferença.
A cada dia que passa no mundo, um quarto de toda a comida produzida no planeta é inutilizada, não doada, jogada no lixo absoluto. Enquanto isso, África e América Latina carregam duros fardos da pobreza.
Consertar todo o mundo pode ser uma utopia flagrante, e é. Mas parte dele não é sonho, devaneio, trata-se de apenas resgatar os valores de todos os credos religiosos, mesmo da boa vontade de ateus e agnósticos. Repartir. Ajudar.
O patrão trata o empregado com salário mínimo e ameaça de emprego, pois "tem gente para aquele lugar".
O sujeito paga impostos e acha que o poder público é também seu empregado, basta pagar e exigir serviço, sem participar de nada.
O funcionário público quer trabalhar pouco.
O estudante acha que "colar" é melhor do que aprender e vai arrastando-se.
Esses, e todo mundo junto, vêem o pedinte esmolar na rua e balançam a cabeça, como que dizendo ser uma mazela impossível de se corrigir. Nada disso. Falta vontade. Vontade mesmo.
O mundo que defende Bush, o Clube de Paris e os juros brasileiros não pode mesmo ser digno de boas festas.
Em janeiro, começa tudo de novo. Porque, na verdade, nunca terminou.
Paulo Roberto Andel, 22/12/2006

A última canção

Não te espantes com o fim das luzes, dos dias
Somos todos repletos de silêncio nos espaços
Até o dia em que este mesmo calado é maior
E sobrepuja todo e qualquer milhar de palavras
Exatamente feito agora
É o silêncio que te serve de voz ao pé do ouvido
Adornado pelo brinco de argola olímpica, prata
É o silêncio que será teu mar de mim
Lembre-se por sempres daquela velha canção
Pois será minha última tua, nunca mais outra vez
Não atravessei doze mares dos Açores à toa
Menos ainda abandonei os poemas do Atlântico
Por conta de qualquer disparate barato
Fiz por convicção dedicada e duradoura, sofrida
Não chegastes aos pés de Copacabana ou Tatiana
Não fostes dourada feito os cachos de Luciene
Todas passaram, deixaram terra pelo mar bravio
Mas guardaram em mim sementes de doçura
Que trazem frutos e flores, de carinho e lembrança
Enquanto tu fizestes questão de rasgar teus versos
A ti, só cabe o silêncio dos memoriais e féretros
O silêncio de última estrofe da tua derradeira canção


Paulo Roberto Andel, 21 de dezembro de 2006

Wednesday, December 13, 2006

Coisas e pessoas

As coisas passam, quase tudo passa
Feito a folha que desaba no outono
E dissolve-se, falece, vira combustível doutras folhas
Muitas coisas passam
Como o nublado da tarde vadia na ponta do Leme
Vem chuva, vai-se, um novo sol toma assento na poltrona do céu
As coisas passam como as dores de amores, os choros
A derrota do amado time, a segunda época da turma
As coisas transigem por mais que nós, soberbos homens,
Insistamos na surda guerra da intransigência
As coisas passam em todos os lugares
Todos os casos e modas, todas as prosas
Exceto num único e modesto lugar, casa forte
Que trazemos todo instante a tiracolo, involuntário
Delicadamente batizado de lembrança
Nela, coisas passam; pessoas não.


Paulo Roberto Andel, 14/12/2006

Tuesday, December 05, 2006

Buena ación

Ontem, voltando na madrugada pelo Botafogo, recordei momentos de muito significado da minha juventude. Tem mais de vinte anos. Tempos de calouro.
Eu era estudante da faculdade de estatística de Niterói. Não eram tempos bons. Meu pai, num dos seus últimos suspiros profissionais, buscou emprego em São Paulo, de modo que vinha raramente ao Rio, e isso era bom mas também muito mau. Estava atormentado com o inferno que era saber ou não estar livre do quartel. Pouco dinheiro, muitos problemas, não me adaptava bem ao ensino superior: muita gente mais velha do que eu, sofria muitos preconceitos, sem contar que uma preferida dos marmanjões resolveu cobiçar-me. Rotina era diária: acordar, estudar, procurar um emprego que jamais viria enquanto não tivesse o maldito certificado de dispensa de incorporação, nome que, por si somente, já define a aporrinhola que o cerca. Tarde era preparar um lanche, guardá-lo na mochila e seguir para as barcas: um ônibus qualquer para a praça XV, depois atravessar a baía e saltar em frente à avenida Amaral Peixoto, para depois descê-la até o final. Era tudo muito escuro ao fim da trilha.
Uma lembrança foi do Andorinha. Era um prédio veterano da Almirante Barroso. Servia para o funcionalismo público; pegou fogo numa tarde. Um engarrafamento danado, saltei do coletivo na entrada da rua México, percebendo que havia uma grande confusão. Quando cheguei à esquina do prédio, mal deu tempo de evitar: alguém suicidou, pulando por uma das janelas. Aterrorizado, desisti da aula e voltei para Copacabana. Foi o noticiário do dia em todos telejornais. Focaram numa janela esfumaçada, era possível ver o braço de alguém, pedindo socorro com muita fraqueza, já debilitado; de reprente, o braço abaixou e desapareceu da vista. Era a morte. Para as pessoas que têm uma gota de amor no coração, é muito difícil de ver aquelas cenas sem alimentar tristeza e dor. Houve um herói: chava-se Eugênio, não esqueço. Tirou seis ou sete pessoas das chamas, voltou para buscar mais uma, não conseguiu e entregou a vida. Salvo familiares, ninguém lembra mais. Somos assim, lamentavelmente. O para sempre é por duas semanas, três talvez. Nem para todos, ainda bem.
Durante meses, tive a imagem da morte em meu caminho, até porque de segunda a sexta era preciso passar nas imediações dos escombros do prédio, donde vinham pensamentos ininterruptos sobre a tragédia. Meses. Piorava quando tinha de voltar de Niterói na barca: um silêncio, um negrume, uma solidão e saber que a antiga vista do Andorinha ficava na mira de chegada. Felizmente, não era comum - retorno padrão era tomar o 996, com modelo de Mercedes-Benz dos anos sessenta, primeiramente pintado todo de azul, depois branco com um friso vermelho e outro celeste. O letreiro era GÁVEA, assim mesmo, letras garrafais. Bonito e veloz descer a Ponte com firmeza, depois vinha um caminho que eu tinha pouca afeição, a deserta zona portuária, depois Santo Cristo, mas o ônibus raramente parava ali - geralmente, só descia público já em Laranjeiras. Eu tinha três caminhos: saltava frente as Sears, tomando alguma condução que fosse para Copacabana via rua da Passagem; ao perceber que, na cola do 996, vinha algum 434 ou 35, descia toda a São Clemente e tentava a baldeação imediata no primeiro ponto possível; por último, não havendo caixa disponível, descer Real Grandeza toda, passar pelo cemitério (grrrrr!), atravessar o túnel e encontrar Siqueira Campos, alguns amigos no bar Sniff que está por lá até hoje.
Houve uma noite. Uma senhora bem velhinha com uma trouxona de roupa pediu minha ajuda, no mesmo velho ponto da Sears. Não era mendiga, nem pedinte. Velhinha, velhinha, de pele maltratada, negra, balbuciava. Estava à procura de seu neto, que trabalhava em algum órgão público do bairro...mau sinal. Como ajudar naquela hora da noite? Deveria tudo estar fechado. Eu só tinha o dinheiro da passagem de ônibus, mais nada. Pedi-lhe pequeno tempo, bolei um plano do Cebolinha: chamar um motorista de táxi para colaborar. Fiz sinal, parou um rapaz, expliquei a situação de que uma carona era urgente, para local incerto. Não é que o moço topou?
Colocamos a grande trouxa de roupas no porta-malas, descemos São Clemente. Ela balbuciava com dificuldade, de modo que não conseguíamos ao certo entender o que dizia. Parecia vir de longe, e muito estranhei que estivesse sozinha. Longe e sem dinheiro. Desamparo.
Um estalo do motorista fez pensar que o local procurado fosse o arquivo que funcionava na praia de Botafogo, o que exigia retorno. Comentamos, ela sorriu, inconclusa. Fizemos a tentativa.
Na mosca.
Quando nos identificamos com o vigia de plantão, ela conseguiu falar "Naldo". O funcionário chamou o colega de turno, o próprio. Entregamos a ele a trouxa, ela entrou a passos curtos, curtíssimos, lentos, enquanto o moço vinha na contramão distante. Ainda consegui ver pela fresta da porta não fechada o abraço de avó e neto, muito bonito. Eu não tive avô nem avó para me abraçar, só a Tia Maria de São Paulo, umas duas vezes.
Não falei com Naldo, nem o motorista. Ele entrou no carro e ofereceu-me carona, mas fiquei encabulado por já ter abusado de sua ajuda e, inclusive, ter desviado seu serviço. Agradeci em muito, falei-lhe até de um Deus no qual eu, ingênuo, acreditava à época. Não lembro de seu nome. Foi embora, parecia com semblante de dever cumprido.
A velhinha entregue sã e salva, o motorista seguiu seu rumo. Restava eu, como sempre sozinho no fim da missão.
Pensei num lanche, mas só tinha o dinheiro da passagem. Tinha que optar. Passei na padaria, ainda aberta depois das onze da noite, comprei um picolé de limão. Naquele dia, decidi ir a pé até em casa, saboreando a compra gelada, o ocorrido e talvez o fato de que havia libertado-me, naquela noite, das imagens do prédio em chamas, ao menos fixamente falando. Ajudei alguém a ser feliz por um instante, e isso me fez apagar o incêndio da memória, baixou intensidade.
São Clemente, Real Grandeza e Siqueira Campos. Em tempos que nada dava certo para mim, aquela foi uma noite feliz, de alívio. Nem parei no bar: corri para casa contar à mãe, senti-me orgulhoso de ajudar alguém e de ter dado certo, mesmo que minha participação fosse mínima.
Muitos anos depois, muitas outras razões depois, vi-me tomado em caminhar atravessando Botafogo a pé de novo. As vacas estão magras, mas dinheiro para o táxi há. Tudo parecia ter voltado ontem: um momento em que nada dá certo, que tudo parece perdido mas que, por um instante, um ponto, as coisas parecem oferecer uma réstia de felicidade.
Desci Humaitá até a praia, até o velho depósito que lá está. No caminho, eu pensava nas coisas: não há mais velhinha, nem o motorista amigo, nem Naldo nem o trauma de pensar permanentemente nos mortos do Andorinha. Todos mortos, tudo muito morto. Menos dentro de mim, de minha memória juvenil.
Frente ao depósito, ri. Tal como ontem, efemeramente, lembrei de um instante em que me senti muito feliz, enquanto a lua trazia um sorriso indestrutível antigo, muito antigo. Sorri. Um pouco mais, até.
Atravessei pista, tomei táxi, voltei para casa.
Certas coisas nunca mudam.
Outras, para sempre. Sempre. Advérbio de tempo, sempre, feito ensinamento de Tia Acy.
Paulo Roberto Andel, 05/12/2006

Serenata de amor

noite de azul profundo, madrugada minha
flanando aos poucos numa alameda solitária
com garbo de valente voluntário da pátria
soldadinho de chumbo da minha infância
parei a passada, dediquei olhar ao vasto céu
e namorei a lua, tão solitária lua
formosa e cheia, voluptuosa
fazia da névoa seu baby doll rosado
era fugitiva, sem um motivo certo
solitária, sem estrelas a cortejá-la
trouxe-me um inexplicável sorriso
cativante, indestrutível
que há muito eu não via, desde o longe
mas que sempre morou dentro de mim


Paulo Roberto Andel, 05/12/2006

Monday, December 04, 2006

Copacabana, rosa

Ponho meus pés na beira do mar de Copacabana
Bem em frente a uma certa rua onde muito morei
Faço-me me rosa dos ventos, lembrando infância
Dos tempos idos de corrida de chapinhas n'areia
Ao sul, duas avenidas monumentais, abarrotadas
Com seus carros e gentes, veias abertas e morte
Oeste, meu Leme de Vera, Simone, tarde lunar
Silêncio e solidão, picolé na mão, volta para casa
O leste traz-me beleza, Tatiana, jogo de peteca
Madrugadas negras no perdido sentido no Forte
E meu norte, onde mora meu norte, minha direção?
Mistura-se fundo a nordeste e noroeste, celeste
Minha vista juvenil enxerga n'orizonte o fim da linha
Ao longe, quando céu e mar passam a ser um só?
Onde é que a terra termina? A vida termina? Será?
Quem é que mora agora depois do pôr do sol?


Paulo Roberto Andel, 04/12/2006

Sobre renúncias

raro é o que sugere-me mais beleza do que a renúncia
a capacidade de abrir mão, entender todas diferenças
reparar o mais belo pássaro mortalmente engaiolado
é saber que seu lugar está nos verdes, nos céus, longe
justo é deixá-lo partir, viver, cantar em dias incertos
beber água doce duma janelinha generosa qualquer
tenho vivido muitos anos praticando muita renúncia
abrindo portinholas aos pássaros que me cercavam
felicidade não é bem o termo adequado a tais casos
certo é chamá-los de alívios, calmas, ou quase paz.


Paulo Roberto Andel, 04/12/2006

Friday, December 01, 2006

Auto-flagelo

eu, terrorista de mim mesmo, delinquente
sou refugiado em meu leito solitário, pacato
e tenho uma bomba-relógio ardente no peito
com data de validade para explodir ou falhar

minha cabeça de negro é bomba atômica
panamericana, arrasadora, amor devastação
nela, implodo os mais irremediáveis sonhos
embebidos em certos amores menos sinceros
dela, extraio combustível para ser bom enganador
dos todos que apostam fé na minha capacidade
louros da inteligência que nada muda no mundo
que não faz tostões, nem oferece preces, amém
tampouco é capaz de odiar alguém, no entanto

sou eu, meu próprio sequestrador, impune jovem
no cativeiro turvo que abençoa minh'alma nata
sem planos de resgate, abraços de finais felizes
tão pobre de mim, de ti, de quem à vera viver


Paulo Roberto Andel, 01/12/2006