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Friday, December 29, 2006

O aviário

Depois de tantos anos morando pelo centro da capital, ainda sinto-me um estrangeiro morador.
Estou mais do que acostumado ao frenesi das ruas na condição de trabalhador assalariado, muitos estão.
Habitar, contanto, é outra coisa. Sei das ruas e dos caminhos, mas não tenho os endereços em mente como os de minha tribo nativa, que sempre será Copacabana. Vez ou outra, palpito e dá certo. Um estabelecimento, contudo, sempre chama-me atenção: um aviário que fica na rua André Cavalcanti.
Nos meus tempos de criança, na velha Toneleros, havia uma casa de aves também. Impressionava-me: primeiro, não era tão comum para crianças da zona sul depararem-se com animais vivos que não cão, gato e pombo, variedade que só fui ter no zoológico e, tempos depois, quando tornei-me escoteiro. Contaram-me também que os pobres bichos ficavam ali à espera do sacrifício, entre as grades apertadas. Tive muito medo daquilo, e tal fato volta e meia traz-me a idéia de necessitar parar de comer cadáver.
Sei que são muito gostosos.
Gente muitíssimo mais importante do que eu, como Nelson Rodrigues, já sonhou com bifes em crônicas, de modo que em minha condição de reles mortal aceito-me. Às vezes. A pena, entretanto, existe em mim. Pobres bichos. Pobres.
O dono do aviário da André tem um perfil cansado, por vezes entediado. Sempre está sentado em uma cadeira, do lado de fora do balcão de atendimento, tragando um cigarro, à espera de ávidos consumidores que, em busca de carne fresca, disponham-se a mandar abater os coitados patos, galinhas, porcos e associados. Tem um ar triste nos bichos, assim como tinha na Toneleros. São irracionais, feito eu, consumidor; não sei como, sopra em suas estampas a síndrome da morte a seguir. Saddam deve estar sentindo isso, ou já sentiu, ninguém sabe ao certo.
Promessas de ano novo não são tão válidas, sabemos. Podem soar como início de regime alimentar às segundas-feiras. Eu queria diminuir a carne do cardápio, sei que é difícil. Adoraria extingui-la do meu cenário, sei que é impossível. Creio que me faria bem e sentimentos melhores viriam ao meu pensar, descontados todos arrependimentos que tenho pelos milhares de bois, frangos e peixes mortos em nome da minha fome e da minha saúde. Isento as estranhas criaturas que dizem ser a receita dos hamburgers Mac.
Estamos no fim de mais uma etapa, mais um ano, novas promessas à vistas, velhas perspectivas. O que virá mais à frente? A esquina, outra vez. O aviário. O dono.
Eu não tenho pai do céu para fazer promessas, promessas. Promessas. Resta-me apenas um incômodo neste momento de fim de tarde.
Parece que os bichos da minha infância no aviário da Toneleros reviveram nos da André. Trazem-me medo, apreensão.
Algo em meu subconsciente traz algum alerta para a demolição da Frei Caneca ontem. Grades, bichos enjaulados à espera da morte e algum sujeito sentado tragando um cigarro despreocupadamente. Alguma coisa tem a ver.
Pior ainda.
Pensar nas gentes enjauladas pelas janelas de vidro dum ônibus, ardendo vivas no inferno, morrendo para satisfazer a insanidade de bandidos cruéis, que trouxeram de volta os tempos da inquisição. E que uns insistem em defender que são meus semelhantes.
Eu sou um bicho menos insano. Arrependido, sirvo de amparo para que a carne não humana seja bom negócio no planeta. Longe de mim incendiar um galeto em vida.
Mais perto, do veículo, tem gente sentada tranquilamente e tragando demais, como se nada estivesse acontecendo.
Desisto do passeio e volto para casa. Amanhã, outro dia, é um novo ano. Novas grades.
Paulo Roberto Andel, 29/12/2006

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