Translate

Tuesday, December 05, 2006

Buena ación

Ontem, voltando na madrugada pelo Botafogo, recordei momentos de muito significado da minha juventude. Tem mais de vinte anos. Tempos de calouro.
Eu era estudante da faculdade de estatística de Niterói. Não eram tempos bons. Meu pai, num dos seus últimos suspiros profissionais, buscou emprego em São Paulo, de modo que vinha raramente ao Rio, e isso era bom mas também muito mau. Estava atormentado com o inferno que era saber ou não estar livre do quartel. Pouco dinheiro, muitos problemas, não me adaptava bem ao ensino superior: muita gente mais velha do que eu, sofria muitos preconceitos, sem contar que uma preferida dos marmanjões resolveu cobiçar-me. Rotina era diária: acordar, estudar, procurar um emprego que jamais viria enquanto não tivesse o maldito certificado de dispensa de incorporação, nome que, por si somente, já define a aporrinhola que o cerca. Tarde era preparar um lanche, guardá-lo na mochila e seguir para as barcas: um ônibus qualquer para a praça XV, depois atravessar a baía e saltar em frente à avenida Amaral Peixoto, para depois descê-la até o final. Era tudo muito escuro ao fim da trilha.
Uma lembrança foi do Andorinha. Era um prédio veterano da Almirante Barroso. Servia para o funcionalismo público; pegou fogo numa tarde. Um engarrafamento danado, saltei do coletivo na entrada da rua México, percebendo que havia uma grande confusão. Quando cheguei à esquina do prédio, mal deu tempo de evitar: alguém suicidou, pulando por uma das janelas. Aterrorizado, desisti da aula e voltei para Copacabana. Foi o noticiário do dia em todos telejornais. Focaram numa janela esfumaçada, era possível ver o braço de alguém, pedindo socorro com muita fraqueza, já debilitado; de reprente, o braço abaixou e desapareceu da vista. Era a morte. Para as pessoas que têm uma gota de amor no coração, é muito difícil de ver aquelas cenas sem alimentar tristeza e dor. Houve um herói: chava-se Eugênio, não esqueço. Tirou seis ou sete pessoas das chamas, voltou para buscar mais uma, não conseguiu e entregou a vida. Salvo familiares, ninguém lembra mais. Somos assim, lamentavelmente. O para sempre é por duas semanas, três talvez. Nem para todos, ainda bem.
Durante meses, tive a imagem da morte em meu caminho, até porque de segunda a sexta era preciso passar nas imediações dos escombros do prédio, donde vinham pensamentos ininterruptos sobre a tragédia. Meses. Piorava quando tinha de voltar de Niterói na barca: um silêncio, um negrume, uma solidão e saber que a antiga vista do Andorinha ficava na mira de chegada. Felizmente, não era comum - retorno padrão era tomar o 996, com modelo de Mercedes-Benz dos anos sessenta, primeiramente pintado todo de azul, depois branco com um friso vermelho e outro celeste. O letreiro era GÁVEA, assim mesmo, letras garrafais. Bonito e veloz descer a Ponte com firmeza, depois vinha um caminho que eu tinha pouca afeição, a deserta zona portuária, depois Santo Cristo, mas o ônibus raramente parava ali - geralmente, só descia público já em Laranjeiras. Eu tinha três caminhos: saltava frente as Sears, tomando alguma condução que fosse para Copacabana via rua da Passagem; ao perceber que, na cola do 996, vinha algum 434 ou 35, descia toda a São Clemente e tentava a baldeação imediata no primeiro ponto possível; por último, não havendo caixa disponível, descer Real Grandeza toda, passar pelo cemitério (grrrrr!), atravessar o túnel e encontrar Siqueira Campos, alguns amigos no bar Sniff que está por lá até hoje.
Houve uma noite. Uma senhora bem velhinha com uma trouxona de roupa pediu minha ajuda, no mesmo velho ponto da Sears. Não era mendiga, nem pedinte. Velhinha, velhinha, de pele maltratada, negra, balbuciava. Estava à procura de seu neto, que trabalhava em algum órgão público do bairro...mau sinal. Como ajudar naquela hora da noite? Deveria tudo estar fechado. Eu só tinha o dinheiro da passagem de ônibus, mais nada. Pedi-lhe pequeno tempo, bolei um plano do Cebolinha: chamar um motorista de táxi para colaborar. Fiz sinal, parou um rapaz, expliquei a situação de que uma carona era urgente, para local incerto. Não é que o moço topou?
Colocamos a grande trouxa de roupas no porta-malas, descemos São Clemente. Ela balbuciava com dificuldade, de modo que não conseguíamos ao certo entender o que dizia. Parecia vir de longe, e muito estranhei que estivesse sozinha. Longe e sem dinheiro. Desamparo.
Um estalo do motorista fez pensar que o local procurado fosse o arquivo que funcionava na praia de Botafogo, o que exigia retorno. Comentamos, ela sorriu, inconclusa. Fizemos a tentativa.
Na mosca.
Quando nos identificamos com o vigia de plantão, ela conseguiu falar "Naldo". O funcionário chamou o colega de turno, o próprio. Entregamos a ele a trouxa, ela entrou a passos curtos, curtíssimos, lentos, enquanto o moço vinha na contramão distante. Ainda consegui ver pela fresta da porta não fechada o abraço de avó e neto, muito bonito. Eu não tive avô nem avó para me abraçar, só a Tia Maria de São Paulo, umas duas vezes.
Não falei com Naldo, nem o motorista. Ele entrou no carro e ofereceu-me carona, mas fiquei encabulado por já ter abusado de sua ajuda e, inclusive, ter desviado seu serviço. Agradeci em muito, falei-lhe até de um Deus no qual eu, ingênuo, acreditava à época. Não lembro de seu nome. Foi embora, parecia com semblante de dever cumprido.
A velhinha entregue sã e salva, o motorista seguiu seu rumo. Restava eu, como sempre sozinho no fim da missão.
Pensei num lanche, mas só tinha o dinheiro da passagem. Tinha que optar. Passei na padaria, ainda aberta depois das onze da noite, comprei um picolé de limão. Naquele dia, decidi ir a pé até em casa, saboreando a compra gelada, o ocorrido e talvez o fato de que havia libertado-me, naquela noite, das imagens do prédio em chamas, ao menos fixamente falando. Ajudei alguém a ser feliz por um instante, e isso me fez apagar o incêndio da memória, baixou intensidade.
São Clemente, Real Grandeza e Siqueira Campos. Em tempos que nada dava certo para mim, aquela foi uma noite feliz, de alívio. Nem parei no bar: corri para casa contar à mãe, senti-me orgulhoso de ajudar alguém e de ter dado certo, mesmo que minha participação fosse mínima.
Muitos anos depois, muitas outras razões depois, vi-me tomado em caminhar atravessando Botafogo a pé de novo. As vacas estão magras, mas dinheiro para o táxi há. Tudo parecia ter voltado ontem: um momento em que nada dá certo, que tudo parece perdido mas que, por um instante, um ponto, as coisas parecem oferecer uma réstia de felicidade.
Desci Humaitá até a praia, até o velho depósito que lá está. No caminho, eu pensava nas coisas: não há mais velhinha, nem o motorista amigo, nem Naldo nem o trauma de pensar permanentemente nos mortos do Andorinha. Todos mortos, tudo muito morto. Menos dentro de mim, de minha memória juvenil.
Frente ao depósito, ri. Tal como ontem, efemeramente, lembrei de um instante em que me senti muito feliz, enquanto a lua trazia um sorriso indestrutível antigo, muito antigo. Sorri. Um pouco mais, até.
Atravessei pista, tomei táxi, voltei para casa.
Certas coisas nunca mudam.
Outras, para sempre. Sempre. Advérbio de tempo, sempre, feito ensinamento de Tia Acy.
Paulo Roberto Andel, 05/12/2006

No comments: