Meu pai tinha uma letrinha bem pequena e elegante. Anotava tudo, estava sempre com um bloquinho e papel: escalações, preços de produtos, datas de pagamento, qualquer coisa. Falava pouco, sempre escrevia. Era muito organizado. Escreveu até poucas horas antes de sua morte.
Hoje, mexendo entre alguns CDs, encontrei pequenas folhas de um bloco. Lá estava a letrinha: compras. Macarrão, arroz, manteiga, suco, tudo com preço. A letrinha me diz tanta coisa, tanta, e ao mesmo tempo, traduz todo o vazio que ficou com a morte dos meus pais, mesmo sabendo que a vida é assim e que não há jeito. Piora um pouco porque meus pais eram boas pessoas, e isso está cada vez mais difícil num mundo de gente falsa, egoísta e de mau caráter - como perdi tempo com pessoas assim nos últimos anos... Felizmente ficaram para trás.
A letrinha traz à tona a história de um homem que sofreu desde garoto, perdeu os pais ainda criança, foi criado em colégio interno e desprezado pelos parentes, que veio para o Rio, lutou, trabalhou, enriqueceu, perdeu tudo e continuou lutando até os 54 anos, quando parou de andar. Mesmo assim, tentava ajudar em todas as tarefas domésticas. Nunca reclamou de ter se tornado cadeirante. Do jeito dele, foi feliz e infeliz com minha mãe. Faleceu um mês depois de ter completado 67 anos, com plena saúde mental. Apesar do problema, teve sua última década com alguma tranquilidade, eu segurava o tranco.
Tínhamos diferenças de uma vida inteira. mas também proximidades. O Fluminense ficou para sempre, a não ser que o destruam. Andar pelas ruas foi um hábito que ele incentivou. Leu alguns dos meus textos e gostou muito, o que também gostei porque era um leitor voraz e, portanto, um bom avaliador. Num começo de noite como hoje, falaríamos do Águia e desse jogo que merece cuidado. Eu o chamava de Mala Pai.
Para alguns pode parecer uma bobagem, mas aquela letrinha era uma espécie de marca de uma família que desapareceu. Lembrando dela, eu penso no meu tio que morreu lá longe, da minha amada mãe. Se estivessem aqui, certamente estariam sofrendo porque o Rio de Janeiro humilha seus habitantes, ainda mais sendo idosos octogenários. Mas seria bom que estivessem. Já que é impossível, tomara que eu esteja errado e tenham se encontrado, que estejam bem, muito diferentemente de mim. Mas é isso: daqui a pouco começa mais um jogo do Fluminense, eu lembro tudo de novo e preciso fazer várias coisas para continuar sobrevivendo. Não dá tempo de pensar, apenas seguir em frente nessa estrada que é muito difícil e que, no fundo, nenhum de nós sabe ao certo onde isso tudo vai dar.
PS: quem diz que não houve ditadura no Brasil, nem tortura nem humilhação, não deveria sequer ter nascido
@p.r.andel
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