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Monday, February 19, 2024

A jovem que não disse adeus

(original 01/2019)

Por alguns meses de 1973, morei com meus pais em Cascadura. Até hoje sei qual é o prédio e, se não estiver enganado, morei no penúltimo andar, sem elevador e com poucos andares. Estudei no Colégio Pinguinho de Gente, o primeiro em minha vida, ali perto. E foi em Cascadura que, pela primeira vez, me lembro de ter tirado fotos coloridas com minha mãe. No mesmo prédio, minha mãe inventou minha primeira namorada, Ilana. Eu tinha cinco anos de idade...

Eu tinha a Lúcia, que cuidava de mim. Lembro que ela falava pouco e ria bastante, mas envergonhada. Colocava a mão na boca e ria. Acho que tinha vindo de Minas. Naqueles tempos todos fazíamos refeições à mesa juntos. Ela não era uma funcionária, uma babá, mas uma familiar. E minha mãe pensava o mesmo: lembro vagamente de tentar demovê-la de usar o uniforme que a Lúcia fez questão na hora da contratação, sem sucesso. Minha mãe, cuja vida dá um livro dos bons, humilde e sofrida, precisava de uma funcionária mas nem de longe agia como uma patroa: tivemos várias em casa e testemunhei. Mas dela minha mãe gostava demais. 

Certa vez, eu estava triste porque o Multi-Homem tinha sumido. Lúcia havia ido ao mercado e minha mãe estava enlouquecida porque não achava o brinquedo. Meia hora depois, Lúcia volta, minha mãe pede a ela pra achar o desgraçado e a vê quase rindo, mexendo numa latinha de Nescau pequeno, abrindo e... tirando um Multi-Homem recortado de alguma revistinha ou figurinha, que não tinha mais de um centímetro de tamanho. Minha mãe caiu na gargalhada, todo mundo riu e voltei a brincar com meu herói de papel. 

Éramos felizes dentro do possível, eu acho. Meu pai saía bem cedo, só voltava para o jantar. Minha mãe às vezes o ajudava, noutras vezes estava em casa. E Lúcia acompanhava minhas aventuras com o Multi-Homem, o Zé Colmeia, o Fred e outros seres míticos. 

Numa manhã, Lúcia desceu para fazer compras. Já tínhamos tomado café, eu não tinha aula por algum motivo. Minha mãe lhe deu a lista e o dinheiro, ela desceu mas antes fez questão de colocar o uniforme, que a mãe detestava. E desceu. Lá perto, no Largo de Cascadura, tinha algum supermercado. 

O tempo começou a passar, Lúcia não voltava, deu uma, duas, três horas e nada. Minha mãe, bem nervosa, me puxou pela mão e descemos para procurá-la. No caminho, comprou fichas para telefonar no orelhão (só ricos tinham telefone em casa) e pedir socorro a meu pai. Ele largou a loja em Madureira com o sócio e veio. Os dois estavam desesperados e sei porque, apesar da pouca idade, tinha sido a primeira vez que eu os via daquele jeito.  Quando escureceu, eles me deixaram na vizinha, a mãe da Ilana, e foram para a delegacia. Os dois desesperados e tristes. Para piorar, meu pai era fichado como subversivo devido à militância de meu tio, a época exilado em Israel. 

"Minha senhora, como é que eu vou saber de uma empregada que sumiu? Isso é coisa de homem, fugiu de paixão". 

(Uma resposta tão estúpida que tem tudo a ver com o Brasil negacionista).

Quem ia contestar policiais numa delegacia em plena ditadura de Médici?

Voltaram desolados. No dia seguinte, meu pai não foi trabalhar: peregrinou pelo bairro em busca de alguma pista. Ninguém sabia dizer, ninguém viu, ninguém sabia. Eu fiquei triste mas em minha ingenuidade de criança achei que ela logo voltaria. E minha mãe chorava, chorava, aquilo me deixava tão triste quanto agora, quando relembro o acontecimento. Ela desapareceu com a roupa do corpo, deixou suas coisas, documentos, nenhum contato de parentes, nada além de alguém dizer que era de Minas. Nada. Semanas e semanas de perguntas, agonia, eu vendo meus pais sofrerem em vão. 

Meses depois, voltamos para Copacabana. Fui morar na Santa Clara, estudar no Pernalonga (de onde fui convidado a me retirar por "comunismo"). Voltamos a ter funcionárias em casa, mas nunca mais para cuidar de mim. Muitas vezes depois, minha mãe chorou ao recordar a história. Até meu pai, que muitas vezes abafava suas emoções por completo, se emocionava. 

Esta é uma história de 1973. São 46 anos em tese. Meus pais estão mortos. Nunca mais vi Lúcia. Talvez eu seja o único sobrevivente daqueles meses de pequenas felicidades, trabalho, estudo a começar e o mundo pela frente. Ou um mundo interrompido, voluntária ou criminosamente falando, o mais provável. Vivi para contar e chorar disso. 

Já ouviu falar que naquele tempo era bom, não é? 

Mentira escrota. 

Todo mundo da minha infância e juventude sabe de alguém ou ouviu falar de alguém que subitamente desapareceu (foi "desaparecido").

Vejo meus pais chorando de novo. Imaginem a minha dor. Mas amanhã vai ser outro dia.  

Só gostaria que Lúcia soubesse que foi muito importante na minha vida. Ainda me lembro direitinho do Multi-Homem de um centímetro.

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