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Wednesday, June 19, 2013

A voz das ruas



“A burguesia não tem charme nem é discreta/ Com suas perucas de cabelos de boneca/ A burguesia quer ser sócia do Country/ A burguesia quer ir a New York fazer compras”

“A burguesia tá acabando com a Barra/ Afunda barcos cheios de crianças/ E dormem tranquilos/ E dormem tranquilos”

“As pessoas vão ver que estão sendo roubadas/ Vai haver uma revolução/ Ao contrário da de 64/ O Brasil é medroso/ Vamos pegar o dinheiro roubado da burguesia/ Vamos pra rua”

(Cazuza, “Burguesia”, 1989”)

Passados tantos anos, os mais ingênuos e os intelectualmente rasteiros ainda não deram o devido crédito ao poderoso legado poético deixado por Cazuza. Os ignorantes de fé o tinham - e têm – como um junkie orgiástico, uma tremenda bobagem. Cazuza é um dos grandes poetas do Brasil contemporâneo.

“Burguesia” foi escrita em 1989. Cazuza já via a cara da morte, tão injusta e antes da hora. O fato de ter pais ricos nunca o fez um burguês boboca sentado à frente da TV nas tardes de domingo: conhecia bossa nova, sambas de tradição, os poetas franceses. Tinha estofo. Muitos não o engoliam por sua homossexualidade latente; muitos outros, por inveja mesmo. Só entende quem namora.

No fim da vida, Cazuza escreveu um de seus mais emblemáticos poemas musicados. “Burguesia” estourou em plena era Collor, o apogeu dos neosertanejos, um país desgovernado nos céus, muita fumaça no ar até hoje não bem explicada. “Burguesia” é mais do que um hino ou o retrato de uma época do país: vinte e três anos depois, tem uma atualidade assustadora assim como toda a obra do poeta. Ecos de “Burguesia” podem ser claramente vistos no trabalho de outro gênio das letras musicais do Brasil: Renato Russo, em “Perfeição”. Os dois poetas foram embora e ainda tinham muito a dizer. Antes disso, “Miséria” - dos Titãs - era também uma poderosa bandeira tremulando no vento.

Os anos se passaram, o Brasil conseguiu se tornar ao mesmo tempo mais moderno e mais atrasado. A partir de 2002, novas políticas de inserção social foram implementadas no sentido de se diminuir a miséria, com grande êxito. Entretanto, o custo desta transformação deixou sua conta: acordos políticos tenebrosos e a grande imprensa como juíza máxima dos acontecimentos, decidindo o que era céu e inferno.

Aos poucos, a força desta mesma imprensa arrefeceu. Não que esteja perto do fim, longe disso, mas aconteceu que temos pelo menos uns 50 milhões de celulares nas ruas com câmeras e as redações não têm mais o poder de decidir o que é a “informação oficial” ou não. Ao mesmo tempo, enquanto as elites econômicas ficaram cada vez mais ruidosas e reacionárias, a classe pobre ascendeu, o sistema televisivo teve que acolhê-la (a contragosto, ressalte-se) e “pessoas sem voz” passaram a tê-la claramente, menos pelo voto e mais pela opinião (o sistema político do Brasil ainda conduz a verdadeiras barbaridades).

A turma que usa Supervia, Metrô e Barcas na metrópole carioca já devia ter pulado no teto há uns cinco ou dez anos, tamanha é a vergonha destes serviços públicos (mal) concedidos. Mas ilude-se quem acha que milhões de pessoas vão às ruas “apenas” pelos centavos que idiotas como Jabor ridicularizaram. E também não é nenhum “fora Dilma”, como os ávidos pela retomada do poder tanto sonhavam - aliás, quando parte do tucanato tentou se promover com as manifestações, o tucano imperial abriu seu bicão e rechaçou imediatamente o ato, num raro gesto de lucidez social – depois dos oitenta anos, até os mais deslumbrados precisam de lucidez. Quem está nas ruas reprova práticas do PT e de seus aliados, sem dúvida, mas não está derrubando nenhum governo e nem de longe querendo a volta de FHC, Serra e congêneres.

Entender a voz das ruas por ora não é simples. Os intelectualmente rasos falam de vandalismo, bem de acordo com o horizonte em que transitam. Há, na verdade, um enorme saco cheio de tudo! A vergonha dos estádios, a questão das passagens sim, a luta por um Brasil que se afaste cada vez mais do imperialismo elitista e se aproxime da maioria – sem deixar a minoria, contudo -, a luta contra o império das comunicações que cria um país irreal contrastado com seu dia-a-dia. Um Brasil mais próximo do que o sentimento no peito exige por um mundo melhor. E isso não tem a ver com a deposição de governantes.

É o saco cheio.

É o cansaço do atraso, do descompromisso com as causas populares, dos choques de ordem que torturam e matam, da opressão, da polícia que quer se fazer justiça ao mesmo tempo.

Vai haver uma revolução ao contrário da de 64. As pessoas não estão mais dispostas a tomar tiros na cara da mesma polícia que financiam com impostos suados. Descontem-se eventuais problemas pontuais nas ruas (depredação etc) que devem ser tratados pela lei, respeitem-se as centenas de milhares de pessoas nas manifestações que querem uma mudança de paradigma. Estão de saco cheio de obras a dois bilhões, quando deveriam ter custado 25% disso. Hospitais caóticos. Sempre importante lembrar o conceito de república federativa - estados e municípios. Cada um tem seu quinhão de culpa em cartório.

Não se trata de tirar um grupo para colocar outro, mas sim a rejeição de todo um conceito para que venha outro, cujo formato ainda não se sabe direito, mas que claramente rejeita clientelismos e discursos mofados de “um país melhor” com velhas práticas que não deram certo no passado e só serviram de prática entreguista dos interesses da nação (alô, torcida do Flamengo, isso não é com vocês!).

Rejeitar inclusive o conceito da elite candanga que, na semana passada, vaiou (com direito, mas sem mérito algum) a presidente num evento oficial. Nem Collor deveria ter passado por isso. Mas a elite não perdoa: se não é o que é dela, é um lixo. Curiosamente, seus lacaios principais, como Jabor e o auto-exilado (com motivo claro) Mainardi afrouxaram seus chicotes fascistas. Todo covarde só comete seus maus atos se tiver certeza de nenhum arranhão – e hoje não parece ser este o caso.

A Globo tendo que emitir nota dizendo que “não edita a verdade das ruas” é, desde já, um marco da vitória do que vem por aí. Ninguém pode entrar nas nossas casas, robotizar nossos pensamentos e nos guiar pelas verdades que interessam apenas a grandes poderes escusos. Isso aconteceu em 1989, mas, depois dos tempos da internet, tornou-se impossível de se repetir.

O STF, tão rigoroso e poderoso nos últimos meses, recolheu-se a um silêncio enorme.

Arautos conservadores não põem a cara sequer na janela.

Mervais e Noblats sem rumo ou bússola.

Brizola, Jango, Niemeyer, Darcy, Prestes, Sérgio Macaco, Glauber Rocha, Mário Pedrosa e tantos outros mereciam estar aqui para que tudo lhe soasse aos olhos de perto.

Antonio Carlos Magalhães, não.

Alguém disse que o povo era burro.

Raras vezes a burrice foi tão bem-devolvida na cara, como se fosse uma torta.

As ruas estão cheias de pensamentos. E vontades.

Tudo o que Cazuza já cantava e não escutaram direito.



@pauloandel

Dedicado a José Augusto Freire







1 comment:

Rafael Rigaud said...

Sensacional crônica!!Braaax!!