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Tuesday, April 23, 2024

Pequenininho

Minha mãe me chamou de pequenininho por sua vida inteira. Era assim que ela me via quando eu era bebê, e a imagem ficou para sempre, mesmo quando eu já era muito maior do que ela. Sei como é: tenho amigos que conheci ainda crianças quando eu era adolescente, e agora eles são quarentões mas ainda os vejo como garotos. 

Pequenininho. É o que sou. O que sempre fui. Minúsculo.

Saio à rua, olho para os prédios e vejo como sou uma formiguinha perto deles. Mesmo quando passa um ônibus ou um caminhão grandão. Na barca da Praça XV eu me sinto minúsculo. 

Eu sou pequenininho. Um número. Um CPF pobretão e triste nessa terra de tanta mágoa e indiferença.

Minúsculo. Vejo tanta gente sofrer pela rua e não tenho capacidade de ajudar a mudar suas vidas. Tanta fome, tanto choro e olhares tristes, vazios, a caminho da fila do ônibus ou do trem.

Pequenininho. Sem pai nem mãe, sem perspectivas, com a lâmina de uma adaga me lambendo o pescoço e, até esta linha, sem saber como escaparei de tragédias. 

Sozinho. Pequenininho. Sem ninguém pra me ouvir, me acudir, nada. Se morro agora, só vão descobrir quando feder. E o pior: literalmente não tenho onde cair morto. 

O que eu tenho é meu corpo e minha cabeça, que sonha o impossível e cria coisas, todas elas sem valor comercial mas artístico algumas vezes. Minha cabeça pequenininha, cabecinha de Santo Onofre como dizia minha mãe. Ela me amava. Meu pai também gostava de mim, do jeito dele. Meu irmão acho que não gosta de mim, senão não tinha sumido. Agora ninguém mais gosta. Ninguém. Nunca fui tão ninguém. Tão pequenininho. A formiguinha na beira da pia com louça suja, sonhando com uma migalha de alimento. 

Acho que sou pequenininho porque a gente se ilude a vida inteira achando que cresceu, que amadureceu e envelheceu, que passou a fazer só coisas de adultos, mas a verdade é que somos crianças para sempre. O corpo muda, o tempo passa, mas à medida que envelhecemos, mais o passado é importante. O começo, os sonhos, as pequenas coisas, a minúscula e efêmera felicidade. A saudade. 

A cada dia eu penso mais na criança e no jovem que fui. Não é que fosse tudo bom, porque estava longe de ser, mas quando você é jovem sempre tem a perspectiva do futuro - a chance to heaven! 

Eu tinha carrinho, eu brincava e jogava bola. Eu lanchava e via desenhos com minha mãe - ela ficava muito feliz comigo, me chamava de seu tesouro, de seu reizinho. Ela gostava de mim mesmo. Nós éramos bem pobres mas tínhamos algum conforto - e eu tinha a praia, o futebol, o sonho. Às vezes lanchávamos no Bob’s. Quando o caixa estava bom, comprávamos pizza da Bella Blú. Eu jogava botão e tinha dias bons nos acampamentos escoteiros. Meus pais tinham 40 anos - eles eram jovens demais. 

Eu só conheci a felicidade pequenininho. Eu só tenho a esmola de felicidade quando me sinto pequenininho, parte de um mundo de fantasia onde não havia ódio, maldade nem ganância. Onde todo mundo podia ter uma casinha, roupas, uma televisão e comida. Onde ninguém vivia dois anos chorando todo dia em desespero pela miséria. 

Saiu um gol bonito na televisão. Brusque x Mirassol. O futebol me faz ficar pequenininho, feliz num Maracanã que já não existe.  No estádio eu sempre fui pequenininho, sonhando que todo mundo do meu lado era meu amigo. A mão do meu pai me puxando provava que eu era pequenininho. E como já se passaram quase cinquenta anos, certo é que sou um grãozinho de areia diante do tempo. Pobre, triste e desesperado grão de areia, procurando por uma casa que não existe, pessoas queridas que estão mortas e um futuro que sequer repete o passado.  


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