Estou de saco cheio.
Estou de saco cheio.
Definitivamente estou de saco cheio.
Não é que eu tenha muito a perder. Na verdade, eu já morri. O que falta é finalizar. Enterrar, terminar, tchau e depois de duas semanas ninguém se lembra de mim ou de você.
Mesmo morto, eu estou com saco bem cheio é porque acho que o Brasil podia dar certo e o Rio de Janeiro podia dar certo.
Mas não dá.
Eu tô de saco cheio de ver tanta gente chorando de fome na rua ou então desmaiada, maltrapilha, porque não tem absolutamente nada. Não aguento mais.
Eu estou de saco cheio de ver em mil janelas anúncios de "vende-se" e "aluga-se quando eu não tenho onde morar.
E estou de saco cheio de ver mil portas de lojas fechadas, com anúncios cujas negociações nunca mais vão se concretizar.
Acabou. O comércio de rua de vários bairros do Rio simplesmente morreu.
Eu tô de saco cheio do ódio, da ganância, da indiferença e do desprezo. Do desdém.
Eu tô de saco cheio do mau caratismo, da inveja, da maldade e da violência. Eu tô de saco cheio de ver gente arrogante, que se julga certa ao humilhar e menosprezar os outros, mas mal serve para respirar. Devia pagar imposto sobre respiração.
E também tô de saco cheio de tanta gente boa que não tem uma mísera oportunidade de fazer coisas boas legais, progredir, porque todo esse sistema é opressor, excludente e humilhante ao extremo.
Eu tô de saco cheio de andar na rua e ver o asfalto vazio. Sem carros como se fosse um feriado, simplesmente porque as pessoas não têm dinheiro pra botar gasolina nos carros velhos. E depois fico com mais saco cheio, porque minha única diversão é a televisão e quando ligo, ouço sobre PIB, emprego desenvolvimento, investimentos, mas nada disso coloca um único ovo a mais na minha geladeira vazia.
Eu tô de saco cheio de ver as pessoas colocando as contas dos problemas alheios na falta de fé. Fulano sofre porque não tem fé, o fulano sofre porque não tem Deus, faça-me o favor. Será que Deus não tá olhando as pessoas que são humilhadas todo dia na SuperVia, nem está olhando todas aquelas que descem a Rua do Lavradio na hora do final do expediente pegando biscoito para almoçar, por que não têm dinheiro para outra coisa? Aí na TV o sujeito diz que biscoito recheado faz um mal horrível, mas não estão nem aí com o poder de compra do trabalhador, que obriga o biscoito.
Eu tô com um saco tão cheio que até o meu time de futebol, que é uma das minhas pouquíssimas alegrias, volta e meia me dá aborrecimento e me tira a vontade de ir ao estádio, não pelo time em si, mas pelo que acontece em torno dele. Gente ruim, escrota, vendida, negócios escusos.
Eu tô de saco cheio daquelas pessoas que desaparecem e te deixam a ver navios, para depois te procurar quando precisam de alguma coisa pontual. Inclusive tem a eleição chegando e você já sabe: sempre tem alguém querendo te falar de um grande candidato, de uma grande maravilha, de um grande projeto que vai do nada a porra nenhuma e só serve para colocar gente empregada em gabinete.
De forma alguma negando a importância da política das instituições, pessoal. É só uma constatação. Metade da Alerj está alinhada à milícia. Eu não sei nem dizer o que que tem na Câmara dos Vereadores, mas deve ser bem pior, vide o que fizeram com Marielle e Anderson.
Eu tô de saco cheio de passar na rua e ver pessoas que acabaram de ter problemas, procurando ou a polícia ou a Guarda Municipal ou algum representante de instituição, e serem tratados com desprezo como se não fossem nada, porque ali não está um rico ali, não está alguém com sobrenome famoso, não está alguém que mora na orla do Rio de Janeiro e é assim que a maior parte das pessoas trata as outras nessa porra dessa terra, se você não tem dinheiro. Se você não tem um grande sobrenome e se você não mora na orla do Rio de Janeiro, você é ninguém. É exatamente assim que é uma parte das pessoas te trata.
Nem a internet escapa. E aquele fulaninho ou fulaninha que nunca dá apoio a nada do que você faça, nunca compartilha nada contigo, não pergunta nem como você está durante anos, não interagem, mas basta que você publique qualquer coisa que minimamente a contraria e ela vem cheia de pedras, né? Como a figura defensora da moral e da ética contra a maldade do mundo. É hipócrita que chama essa gente, né? Ou é escrota?
Eu tô com saco cheio de ser um excluído na minha própria cidade. E o pior é que diante de toda essa porcaria que a gente vive, de toda essa miséria e de todo esse descaso, eu ainda sou privilegiado mesmo passando por momentos desesperadores. Isso não quer dizer que eu estou bem; pelo contrário, eu estou muito mal, mal como nunca estive. Quer dizer que tudo é uma merda muito pior do que se pode imaginar.
Você no meio da tragédia, no prédio em chamas e a pessoa vem falar para você "seja positivo", "pense coisas boas" , "fique bem".
Dá vontade de mandar tomar né?
Você ali na merda sofrendo, chorando, desesperado, sem uma única mão que possa te ajudar, a pessoa vem e fala "fique bem". Vá pra puta que pariu. É melhor não falar nada e ser escrota raiz mesmo.
É isso. Essa é uma quinta-feira de abril de um ano ruim e que provavelmente vai piorar. Não é negativismo, nem palavras atraindo "coisa ruim", mas apenas analisando friamente a realidade dos fatos que aí estão. Por educação ou por conveniência, muita gente prefere varrer para debaixo do tapete e fingir que não existe.
Ou você não conhece ninguém que atravessa de um lado do para o outro da rua, só para não passar num grupo de pessoas em situação de rua?
Você não conhece ninguém que já tenha dito que nunca viu uma pessoa comendo lixo na rua?
Pois essa a mistura da alienação com a indiferença, com descaso, com dane-se o outro.
A cidade é maravilhosa na geografia e em parte dela.
A outra parte é só humilhação para milhares de pessoas, debaixo das miras de fuzis, com riscos de estupro de morte, tortura etc.
Chamam isso de democracia, tá bom?
Chega, pessoal. Pouco importa se eu já morri ou não, ninguém se importa com isso. O que importa é que eu continuo de saco cheio vivo ou morto, eu vou continuar de saco cheio vivo o morto, eu nunca vou aceitar essa situação que vive a minha cidade, o meu estado e até certo ponto o meu país.
Fomos trucidados por nós mesmos.
Fuzilados por aqueles que acham que a solução é destruir o outro e manter tudo como está. Resultado: o que era péssimo, piorou.
Daqui a pouco esses espíritos de porco vão ressuscitar algum mito para tentar dizer alguma coisa que nos leva do nada a lugar nenhum.
Ou melhor, pode até levar, né? Das investigações policiais até a quadrilha.
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