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Monday, March 11, 2024

Vespertina

Era sexta-feira, quase três da tarde. Entrei no VLT com destino à Praça XV. Perto da estação Sete de Setembro, uma mulher começou a falar bem alto. Disse que achou o fiscal bem bonito. Ela tinha a voz de uma senhora, daquelas que chamamos "de pigarro". E falava alto, ninguém reagia. No ponto final saltamos todos, uns a caminho de Niterói, outros para Paquetá e Ilha. Eu fui para a loteria, apenas para tentar escapar da morte. Em certo momento ficamos bem perto, eu e a senhora, e então me dei conta da avaliação equivocada. Na verdade era uma mulher dez ou vinte anos mais jovem do que eu, mas carregando sob os ombros todo o sofrimento do mundo. Amputada completamente do braço esquerdo, carregava uma garrafinha de cachaça na mão direita e sorria com sua boca desdentada. Ao contrário de todos no VLT, ela não tinha um destino: estava apenas de passagem, vagando pelas vias de dor e indiferença. Cinco ou seis segundos depois, já havia desaparecido no horizonte. Uma jovem mulher preta, amputada, alcoólatra talvez por necessidade, vivendo o auge de sua tragédia em meio à mais completa indiferença, enquanto batalhões de estranhos vêm e vão. Num súbito, me bateu uma reflexão: se dependesse de algumas pessoas que conheço, e que incrivelmente dizem ser minhas amigas, se eu fosse a exata versão daquela mulher em chamas de sofrimento, elas não fariam absolutamente nada. Seguiriam indiferentes para seus rumos. São daquelas que não querem se envolver, que se despedem de gente sofrendo dizendo "fique bem" ou "se cuida", expressões clássicas da amizade sob distância regulamentar. Escrotas, enfim. Fui para a loteria tentar escapar da morte e salvar alguns colegas. Não consegui e morri. Como os problemas não param, hoje é dia de tentar a ressurreição antes que todo mundo acorde. É madrugada de segunda-feira. Vem aí uma semana de lutas. O Fluminense perdeu. Veremos novas famílias chorando pelos corpos de seus entes queridos no IML. Garotos esfomeados com suas caixinhas de Mentos tentando vendê-las para transeuntes do Centro. A concentração de renda será cada vez pior. Enquanto isso, aquela jovem mulher negra, curtida pela dor, amputada e sem casa, continuará a vagar sem rumo, às vezes gritando no VLT para que ninguém ouça, fazendo de sua vida trágica uma pequena expressão artística. 

@p.r. andel

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