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Monday, September 04, 2023

Fragmentos de São Paulo

1987

[A gente não tinha um tostão pra sair. Resolvemos caminhar seguindo três ou quatro estações do metrô. Numa delas, São Bento, vimos uns caras espertos dançando break e ouvindo sons de batida da pesada. O Marco ia entrar na escola do exército, eu fazia faculdade com o dinheiro que meu tio me deu tão generosamente. A gente estava acostumado aos acampamentos, a noite no campo, admirar as garotas e viver nossa melancolia serena. Ali era o urbano, o som da rua, a galera black e, enquanto começava a revolução cultural do hip hop no Brasil, a gente era testemunha sem querer. Dois garotos cariocas andando na grande solidão que abraça a noite de São Paulo. Perto dali, a gente nem sabia do sofrimento do pessoal no edifício São Vito. A gente não sabia de nada e nem era feliz, mas tinha uma esperança enorme. 

2011

[Cansado da vida ridícula e posuda do mundo corporativo, onde sempre me sinto tão deslocado. Às seis da tarde escurece e caminho pela Berrini cheia de carros no asfalto e calçadas vazias. Quatro quadras depois encontro um botequim respeitável, parecido com o Vieira Souto no Rio. Entro e vejo o cardápio, também respeitável. Então peço um bife a cavalo que vem maravilhoso. Enquanto saboreio a excelente refeição, numa outra mesa o pessoal fala do Corinthians enquanto ri. Na rua, os faróis dos carros parecem espadas de luz se digladiando no rush de São Paulo. Logo depois, voltarei sozinho pela calçada deserta, chegarei ao bom hotel, tomarei banho, verei TV, a vista da janela e tentar descansar para o trabalho no dia seguinte. Estou num hotel quatro estrelas mas nem ligo para isso - a única coisa que me interessa é o ovo mexido no café da manhã. Suco de laranja também.

1987

[Samuel me levou ao cemitério para ver o túmulo de meu avô. Foi uma tarde muito triste. Eu merecia ter conhecido meu avô, algum dos avós. Não tive nenhum. Estamos na Vila Mariana? No Araçá? 

A inscrição na lápide dizia algo como "A saudade de seus filhinhos". Como meu pai e meu tio sofreram com sua morte, minha tia também, que não conheci, foi dada para uma família rica e nunca vi. Ela também não me viu. Se estiver viva, tem 80 anos. 

As famílias dos meus pais sofreram demais. Quando se casaram, eles tinham mil quilômetros de distância de casa, muita luta e provavelmente eu fui a única alegria deles por muito tempo. De certa forma, a herança desse sofrimento me ajudou a aguentar muita coisa ruim, especialmente vinda de pessoas ditas amigas - elas são as piores. 

Não ficamos muito tempo no cemitério. Logo depois, estávamos no jipe cortando as ruas, navegando pelas artérias de asfalto de São Paulo. Ladeiras, sobe, desce, mão dupla. É bem diferente do Rio e também interessante.

2011

[Ainda tenho três horas para chegar ao trabalho. Talvez seja legal ficar deitado vendo TV. Juliana manda uma mensagem de bom dia, eu digo que seria muito bom se ela estivesse lá comigo, ela ri e dissimula. Gastamos uma hora com passatempos, aí desisto de sair mais cedo e passar nos sebos da Avenida São João. 

No ano passado comprei um ótimo CD do Yes. 

@pauloandel

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