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Friday, June 09, 2023

Vinte metros

Eu tô numa cadeira confortável dentro da famosa Leiteria Mineira, bem no coração da cidade, em frente à estação Carioca do metrô. Hoje é sexta-feira depois do Corpus Christi, tudo está ainda mais esvaziado no Centro porque a Alerj, claro, está fechada - e com ela tem um movimento que lota a Mineira nos almoços. Vim tomar um café da manhã para aguentar o tranco do trabalho: misto quente no pão Petrópolis e Toddy gelado. 

Eu queria falar várias coisas bem legais, mas a verdade é que eu tô bem fudido e triste com um milhão de coisas. A minha pandemia ainda não acabou: continuo isolado do mundo, com trabalho precarizado e com outras bombas prestes a estourar bem no meio da minha cara, enquanto luto há alguns anos contra um novo ímpeto suicida - o que só não aconteceu devido ao meu transtorno mental, porque se eu fosse perfeitamente são, já teria repetido há muito tempo. Mas aqui, na Mineira, eu sou o cliente de sempre e tento me acalmar com um lanche. Não tem quase ninguém no salão, exceto um casal tomando café.

Então resolvo mandar uma mensagem para meu amigo Eric com uma foto da porta da Leiteria, onde normalmente as pessoas formam um caldeirão humano em dias normais, mas hoje não há ninguém. Não, não é verdade, há sim, mas só percebo depois de enviar a foto. No cantinho direito do campo de visão, a uns vinte metros da porta há um símbolo de tudo aquilo que deveríamos lutar todos os dias para corrigir: o sofrimento silencioso de um jovem homem negro, sentado no chão, com o ar tão cansado que parece não ter dormido - e se ele for uma pessoa em situação de rua, é bem possível que não tenha dormido mesmo, muitas vezes por medo de ser incendiado, estuprado ou assassinado. 

Estamos nós dois a vinte metros de distância. O que nos separa é uma porta de vidro. Para ele, eu talvez seja um esquisito burguês gordo, de roupas simplórias demais para estar naquele restaurante tradicional. Nunca vai imaginar o que estou passando, mas eu sei exatamente o sofrimento que ele passa só de vê-lo e isso me rói. Está tudo errado. Num mundo normal, ele estaria comendo um misto quente comigo. Nós vivemos a anormalidade, a indiferença, a escrotidão e fingimos que tudo é normal, mas é exatamente o contrário.

Como o misto devagar, olho para o rapaz, ele está extenuado. Não são onze da manhã. Aquele sofrimento vem de ontem, ou de muito tempo atrás. Num instante, alguém para para falar com ele. Parece um entregador. Será que são amigos? Bebo Toddy, lembro da minha mãe, fico ainda mais sufocado, mas a chance de ter uma refeição deliciosa é uma dádiva neste mundo. Então paro para ouvir dois áudios típicos do descaso, onde tudo se resolve pelo WhatsApp e, prestando atenção na grande fachada de vidro da Leiteria Mineira, ela parece uma grande televisão, a TV da vida real onde no cantinho direito da tela o Brasil está estampado por um jovem homem negro extenuado por algum sofrimento - ou todos. 

Peço a conta, pago, meu garçom querido está com uma tremedeira na mão acima da média, ainda conversamos um pouco antes de eu me levantar. Nem reparei que o casal já tinha ido embora. Vou falar com o rapaz, oferecer alguma ajuda, algum dinheiro, o pouco que tenho, ao contrário de todos os filhos da puta que se dizem meus amigos mas ficam em silêncio diante da minha dor - ou fingem que não sabem de nada. Pobres dos que acreditam no inferno, pois terão muito a pagar. Só preciso romper a barreira da grande porta de vidro e dos vinte metros para encontrar um amigo que não conheço, mas que não deve ser desprezado porque praticamente toda vida é importante. 

Tchau, pessoal, uma ótima sexta. Abro a porta e rompo a barreira. Restam apenas dez metros e um vazio: o jovem foi embora para sofrer noutro lugar. Desapareceu. Ou será que sequer existiu além do meu delírio? Não importa: todas as grandes esquinas do Centro têm jovens homens e mulheres negras, quando não crianças, vivendo em berço esplêndido de sofrimento mas, ainda assim, há quem insista em negar o racismo no país.

O vazio é inevitável. Eu não estendi a mão para alguém que precisava. Não deu tempo. Carrego mais essa dor. Agora é hora de ir para o trabalho, responder as mensagens que importam, talvez ouvir música, ocupar a cabeça com ideias, lutar contra a morte, quem sabe fazer uma fezinha na Loteria e até fingir que terei uma noite de paz, escrevendo, sonhando acordado ou estando longe demais daqui. 

@p.r.andel 

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