Translate

Saturday, June 03, 2023

Estão rolando os dados

Em alguma noite de 1975, minha mãe me chamou para um jogo de dados. A gente morava num prédio baixo da rua Santa Clara, que já não existe mais. 

Fomos para a saleta e preparamos a mesinha de jogo. Uma folha de papel, dois dados e um copinho de couro, que tenho até hoje. Cada um colocava seu dado no copo e jogava. Anotávamos os pontos na folha. Jogando, jogando, jogando. Era muito divertido. Quem ganhava uma rodada, comemorava. Cinco, três, você ganhou. Não lembro o fim da contagem, mas lembro que minha mãe ganhou e ficou contente. Como a conta passou de quinhentos e um dado tem seis pontos no máximo, jogamos pelo menos oitenta e tantas vezes. 

Talvez tenha sido minha experiência com jogos de números, talvez aquilo tenha me marcado para sempre. Era apenas uma brincadeira feliz com minha amada mãe, mas aquela noite me despertou para algo que nunca mais parei de fazer: cálculos. Quase vinte anos depois daquela brincadeira, eu virei um calculista de verdade, com diploma e tudo. No meio do caminho, fiquei 28 anos fazendo contas em escritórios. Faça chuva ou faça sol, contas. Na alegria ou na tristeza, contas. No sufoco desesperador, contas. É engraçado que me conheçam mais como escritor do que calculista - sim, escrevi muita coisa, mas calculei mais ainda. Bom, escrevendo você pode deixar pessoas felizes e até dar autógrafos; as contas nem sempre têm esse poder.

Daqui a algum tempo aquele dia do jogo de dados vai fazer 50 anos. Eu lembro dele, lembro muito agora. Lembro do apartamento, que era bem grande e confortável. Lembro da minha mãe, que faz tanta falta o tempo inteiro de todos os dias, sem alívio. Uma simples brincadeira que, por muitos e muitos anos, determinou os rumos da minha vida. 

Ultimamente tenho me dedicado aos estudos de combinação da Lotofácil. São mais de três milhões de possibilidades, mas sigo tentando. Já foram catorze pontos duas vezes, treze umas dez, doze e onze já perdi a conta. Está batendo na trave. Já, já, a bola vai entrar. Não é só o dinheiro ou a chance de mudar de vida, até mesmo salvá-la, mas a diversão de tentar descobrir a sequência mágica. 

Pouco tempo depois do jogo com minha mãe, a minha vida virou de cabeça pra baixo. Mudamos de casa, eu saí da escola, fiquei sem estudar, voltei pro colégio no ano seguinte e passei de série - estudei por minha conta. Deixei mais de um professor assustado. Eu não fiz a primeira série nem a terceira, e a segunda eu fiz num bimestre só. Da quarta em diante é que a coisa mais ou menos estabilizou. 

Em algum momento de 1988, na faculdade, um professor escreveu no quadro um exercício de probabilidade das faces de um dado. No primeiro momento sorri, mas logo em seguida me veio uma grande emoção ao lembrar do jogo com a mãe, a mesma de agora quando tudo aquilo parece tão longe, mas na verdade é muito presente. 

Logo a seguir, escreveu um grande poeta: "ainda estão rolando os dados, porque o tempo não para". Tome mais trinta e cinco anos e aqui estamos, tentando entender o mundo, buscando esmolas de alegria e tentando respirar. 

Ah, minha mãe.

No comments: