Translate

Sunday, May 02, 2021

hamburguer

Queria comer um hamburguer. Tou com fome. Comecei a olhar o iFood e tudo é caro demais. Então resolvi desabafar um pouco e depois volto para lá. Aqui praticamente é meu único canal de troca e diálogo, enquanto ainda é possível.  

Lembrei de quando era garoto e ficava contente quando meus pais me davam algum dinheiro, suado, e eu economizava tudo para lanchar no Sumol ou na grande lanchonete que ficava na esquina de Siqueira Campos com Barata Ribeiro, cujo nome já não recordo. Ou ainda o Bolonha, que o bozismo acabou de sepultar. Todas essas lanchonetes estão mortas. Todas tinham bifes próprios, suculentos. 

Por metade da década de 1980, o Gordon foi minha lanchonete oficial. Cheguei até a lanchar lá em pleno ano novo: eu e Fred comemos bastante, porque as garotas não aguentaram os sanduichões e faturamos. Havia um balconista educadíssimo chamado Misaque, homônimo de uma vítima da máfia carioca naquele tempo. O Gordon tinha crepe e sundae divinos, mas era impossível não pensar no Big Gordon, no Goleiro, no Angélico, no Toreador e no simpático Tudo. 

O Bob's da Domingos Ferreira era maravilhoso. Xuru morava bem em frente. 

O hamburguer da UERJ não era espetacular, mas quebrava um galhão em noites de muita fome e pouco dinheiro. Tenho saudade. Ando com saudades demais, não é saudosismo, não é oco, mas saber que era muito bom apesar das dificuldades - nunca é fácil quando você tem vinte anos de idade e precisa arrumar um emprego com urgência para ajudar seus pais, num país governado por Collor (claro que hoje é incrivelmente pior). 

(Enquanto penso, Noel Gallagher toca no programa de Jools Holland).

Falei de hamburgueres porque gosto. Pode ser de carne, pode ser vegetariano, pode tudo. 

(Lá fora começa o maldito silêncio sepulcral das noites de domingo).

Antes dos artesanais, eu ia sempre com Marina no Burger King do Barra Shopping, na verdade um pretexto para irmos à Livraria da Travessa e FNAC. Passávamos o dia lá. E pensar que o Brasil já teve FNAC...

Antigamente não se vendia caixas de hamburguer no supermercado. Quando a Sadia começou, minha mãe comprou uma com doze bifes, mais pão redondo com gergelim e queijo Chisi. Foi uma festa em casa. Tomate, cebola, maionese. Ela ficava contente demais quando me via lanchando porque sabia que eu estava contente. Quantas pessoas ficam felizes por saber que você está contente? Já se permitiu pensar a respeito?

Eu não sou egoísta porque estou falando de hamburgueres num país onde 110 milhões de pessoas não têm garantia das refeições diárias. Na verdade eu queria era que todas elas tivessem acesso aos pratos saborosos e aos hamburgueres também. Quantas pessoas você conhece que se preocupam DE VERDADE com a fome dos desconhecidos?

(Noel Gallagher sente saudades de David Bowie enquanto conversa com Jools Holland. Aimee Mann canta. Você se lembra dela fazendo vocais para o Rush?)

Vou escolher um hamburguer modesto mas não consigo pensar na garota que sumiu em Niterói, torcendo para que ela esteja bem, é irmã da amiga de um amigo meu e gostaria que ela estivesse bem. É tão jovem, bonita, tem o mundo pela frente, não pode desistir. 

Quando o sanduíche chegar, vou caminhar sozinho pela memória e saudar a velha Copacabana que me deu tantas coisas boas. Um bom sanduíche era o mundo. Estou deitado em casa. Espero ser vacinado e ficar mais alguns anos por aí, procurando esmolas de bondade cada vez mais escassas, já que meu país é na verdade um depósito de crueldade semeada em shopping centers - eles têm bons hamburgueres, é um alívio. 

(Algumas das piores pessoas que já conheci me abraçavam, me beijavam e me chamavam de querido, tudo muito pior do que no tempo em que eu comia um sanduíche sozinho, mas feliz, num balcão simples). 

@pauloandel

No comments: