Translate

Friday, April 23, 2021

dia do escoteiro

Aconteceu que a turma saiu cedo como sempre - marcado às sete para partir às oito da manhã - na quinta-feira, mas eu tinha um compromisso à tarde e só poderia viajar à noite. De toda forma, ajudei no embarque; depois, voltei para casa. Nem precisamos acordar Macedo, um fato raro. 

Estudei um pouco de Matemática, almocei e sai para resolver pendências. Perto das quatro da tarde, estava de volta. Um banho rápido, a mochila estava pronta, vesti o uniforme e desci a caminho do ônibus 136. Em pouco mais de meia hora, com a cidade esvaziada, cheguei à rodoviária. Não havia muito movimento para véspera do feriado, culpa da inflação galopante de 70% ao mês, suponho. 

O 1001 estava ocupado pela metade. Bem confortável. Peguei um livro para me distrair durante a viagem, mas a leitura foi entrecortada pela paisagem: eu gosto de janela, de estrada, de ver o que se passa pelo caminho ou o que quase se vê no percurso escuro. Não havia ninguém ao meu lado, de modo que pude me espreguiçar com as duas poltronas. Entre campos e casas, comércios de beira de estrada, postos de gasolina e supermercados, uma hora e meia depois eu estava à porta do acampamento nas Chácaras Vale do Sol. 

Mal deu tempo de me apresentar ou abraçar os camaradas, quando fui chamado para uma emergência: salvar o arroz do jantar dos lobinhos, numa panela gigantesca que exigia cuidados diversos. Dois anos antes, eu não cozinhava, mas a péssima comida de alguns acampamentos me fez estudar os caminhos e fiquei bom de massa.

Imediatamente fui para a cozinha montada e preparei as colheres para a operação anti papa de arroz. Dividi com outra panela para controlar melhor o processo - quando se cozinha praticamente ao relento com um pequeno fogareiro, é necessário - e tudo corria bem. Dois escoteiros me acompanhavam, tentando pegar de olho o procedimento para uma ocasião qualquer.

Em três segundos, alguém gritou "Que marimbondo GRANDÃO!" e só deu tempo de me desvencilhar sem mexer as pernas - as queimaria na certa com a panela. Um esbarrou no outro, susto na cozinha e o inacreditável: o marimbondo caiu na panela de arroz fervente. 

Ninguém viu, só eu. De qualquer maneira, tinha que tirar o corpo da panela. Mexi, remexi, voltei e não havia um pedacinho do bicho. Morreu no fundo, coitado, no calor do inferno que os fascistas merecem. Depois de minutos e minutos sem a localização do corpo, decidi ficar na cozinha para também servir à Alcateia. Não queria nenhuma criança assustada e ninguém melhor do que eu mesmo para achar o pobre maribondo desnorteado. 

A fila indiana se fez. Todo mundo estava com fome, já passava de oito horas. Vinte e quatro crianças entre sete e dez anos. Eu, adultíssimo, com quinze. 

A carne moída com pomarola e cebola ficou ótima, as batatas cozidas também. Alguns lobinhos adoraram o arroz, chegando a elogiar - e nada é mais sincero do que um elogio de criança. Sorri também, mas a cada colherada servida eu procurava o cadáver para remoção e nada, sob tensão. Doze, quinze, vinte e quatro pratos. Os assistentes. Os chefes. Eu. Nada de marimbondo. Cheguei ao final da panela, raspando o arroz que todos adoraram, inclusive eu mesmo. Não havia um milímetro inteiro daquele corpo. Desintegrou-se na panela. 

Uma hora depois da janta, os escoteiros me convidaram para a guerrilha deles. Agradeci. Os lobinhos já tinham ido dormir. Preferi ficar sozinho, de frente para o campo, em silêncio, com a noite fazendo as vezes de telhado. Sentado num tonel, liguei meu rádio FM e quase todas as estações estavam tocando Stevie Wonder, estouradaço com a trilha sonora de um filme.

Cinco ou seis metros adiante, Patrícia me olhava e quase ria. Ela também jantou. 

@pauloandel

No comments: