então começa mais uma semana nesta terra cheia de dor, desprezo e arrogância, mas nós, grandes corporações de água e carne, caminhamos para atravessá-la. é preciso, não resta outro caminho. sim, somos bolas gordas e magras de água e carne, preparadas para apodrecer a qualquer momento.
isolados dentro de casa, nos deparamos com o museu de grandes novidades, um verso de cazuza, o maravilhoso poeta dos anos 1980: crianças desaparecidas, personalidades mortas, violência, fome, solidão. no ar uma peste que mata e atordoa. não é preciso estar nas ruas para saber de sua agonia. há quem enxergue o progresso, mas de maneira muito peculiar.
na janela fechada do quarto, uma cortina azul-escuro deixa escapar uma réstia de sol nublado.
em algum lugar que não sei dizer, nós nos perdemos de vez. deve ter sido quando alguns sujeitos passaram a acreditar que eram as únicas pessoas importantes num mundo com bilhões de habitantes. ou quando o imaginário coletivo passou a entender que o outro não tem importância para a satisfação individual. a era do descartável devia ser limitada aos objetos, mas chegou às pessoas e assim estamos. bem mal.
o trânsito está tão devagar que o barulho do ônibus é menor do que o de um cachorrinho esperto latindo nas imediações. precisamos escutar mais os latidos, porque a desumanidade leva muitos a confundir os sons caninos com os choros humanos, desprezando ambos. é isso: nós viramos a capital mundial do desprezo.
mantendo a rotina, o restaurante vizinho liga seus grandes aparelhos de operação, que lembram o som de turbinas de avião defeituosas. ninguém liga, nem os donos.
na tv, uma matéria fala sobre o número de moradores na rua, que certamente é quatro ou cinco vezes maior do que qualquer estatística oficial.
hora do home office em breve: banho, café, lágrimas, fracassos e postagens, postagens para vender, postagens para divulgar, revisões, cálculos e dinheiro algum. ainda são oito da manhã e há uma longa segunda-feira pela frente. isso para os que têm home office, porque a maioria não tem nada.
mensagens inúteis, áudios inúteis, posts inúteis - aqui estamos! - enquanto a maioria celebra práticas nazifascistas acreditando se tratar de defesas da pátria e da família. pior ainda: a da liberdade. o direito de pisar na cara das outras pessoas para não sujar as próprias botas. o que isso tem a ver com a evolução humana?
[eis a idade média com iPhone e iFood
cidade alta, parada de lucas, são josé operário, fé, tiroteios intensos em nome de uma guerra surda que estupra, humilha e mata pobres enquanto enche o bolso de empresários escroques. mais do mesmo a cada segunda-feira.
[um jovem de cerca de trinta anos chamado andré, vestido com a bela camisa de 1902 do fluminense, mais uma máscara tricolor, sentado na calçada gelada e sonhando em sair do inferno das ruas.
[trinta ovos por quinze reais. ovos são ótimos, mas não eram a base alimentar dos tempos da ditadura, com inflação mensal a 70%? deve ter algo errado.
lá fora o terceiro ônibus freia e para. é provável que o motorista não tenha visto o único passageiro à espera do serviço no sentido centro-estácio.
bom dia. boa semana. boa morte.
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