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Sunday, September 17, 2006

O silêncio das mil palavras

Ontem, em certo momento do fim do dia, pude observar o horizonte nas imediações de Mangueira; subitamente e sem maiores justificativas lógicas, fui tragado pelas memórias de muitas estações atrás. Tratou-se um momento de amor antigo, surpreendente pelo momento em que ontem eu vivia, calmo e feliz. Surpreendente? Quem somos nós para administrar os anjos e demônios que navegam em nossas cabeças? O que importa se estamos bem-acompanhados, desejados, amados, se um pensamento vago pode nos surpreender com uma força de criptonita capaz de derrubar qualquer Super-Homem? Podemos estar apaixonados, inebriados, quando uma lembrança de amor rasga-nos feito uma potente lança das Cruzadas.

Nos tempos de minha adolescência, muito diferentes dos modernos, quando ainda era um amador assumido nas artes do amor, quase o mesmo de hoje, comecei a me interessar por uma menina que morava na mesma rua que eu; estudava num colégio, hoje extinto, onde eu tinha alguns amigos e, por fim, era minha companheira no grupo de escoteiros. Passamos a conversar regularmente, de modo que eu também comecei a utilizar o pretexto de visitar os amigos na saída da escola, apenas para vê-la. Em certo momento, era comum que nos falássemos diariamente e isso, certamente, fazia com que a moça não saísse de meus pensamentos. Havia, contudo, um problema para mim: tinha sido namorada de um então amigo meu, que ainda mostrava-se interessado, embora ele também o fizesse para outras inúmeras garotas. Tomei-me pela insegurança e fui deixando o tempo levar-me.
Aconteceu uma festa, eu sentado ao lado do amigo, e a moça convidou-me para uma dança. Tremi, mas fui. Primeiramente, o turbilhão de incertezas que povoa todo jovem; segundamente, o ar educado mas contrariado do amigo. Terminei a dança rapidamente, voltei a meu posto. O amigo comentou-me que eu não deveria ter ido, já que ela tinha chamado-me apenas para provocar-lhe ciúmes. Talvez fosse o certo, desculpei-me e seguimos em frente. Não sabia como lidar em tal situação, e nem sei se ainda hoje sou capaz.
Tempos depois, fizemos um acampamento de escoteiros e bandeirantes em um belíssimo lugar, o Forte Imbuí, parte integrante da Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói; teatro de uma vista fascinante, capaz de lotar as vistas de Guanabara e suas luzes, mais o Atlântico Sul. Houve uma tarde muito nublada durante o evento, feriado, de modo que os escoteiros foram liberados das suas obrigações rotineiras; com a praia deserta a postos, resolvi mergulhar no mar gelado, emoldurado por cinzas, mas ainda sem chuva. Eis que o amigo, ao saber, veio em seguida. Sugeri-lhe que saísse; estava relativamente gripado e o oceano não estava dando tréguas, um frio enorme. Manteve-se.
Ao sairmos d'água, alguns outros amigos estavam na beira-mar; entre eles, a linda menina. Meu amigo batia-se de tanto frio, o que fez com que a garota fosse até perto do acampamento para pedir a alguém um casaco. Trouxe-o e entregou-lhe. Tive algum desconforto com a situação; ciúme, só instantes depois, quando ele comentou-me algo sobre o amor que ela lhe dedicava ainda, tendo ido até duzentos metros depois só para trazer-lhe um casaco. Quando estávamos deixando a areia, rumo às barracas, em bando, eis que a menina tocou em meu braço e disse-me que queria conversar comigo mais tarde. A curiosidade me bateu; imaginei que talvez quisesse minha ajuda numa conversa entre os dois, não sei dizer ao certo. Após o jantar, procurou-me e fez convite para que fôssemos ver o mar de perto, por cima das cúpulas dos canhões de guerra do forte. Aceitei e fomos.
O caminho foi de menos de um quilômetro, talvez. Perguntei se não queria que chamasse mais alguém, e surpreendentemente, recebi o veto. Ao longe, o amigo olhou e calou; nada fez nem disse, deu as costas.
Chegamos a uma das cúpulas e sentamo-nos ao chão. Tenho certeza de que a vista do negrume do Atlântico foi um grande momento para nós. Assaltado pela vergonha e pela insegurança da juventude, comecei a falar de outras coisas, menos a que supostamente nos teria levado ali: o desejo dela em conversar em particular. Entre músicas e futebol, a passagem do dia e a praia, ocorreu que ela entrelaçou sua mão esquerda na minha, direita. Em diante, um silêncio, silêncio profundo, de mergulhos n'alma. Pensei em fitá-la de frente e dizer como a achava linda; pensei em aproximar-me devagar e dar-lhe um beijo capaz de empolgar toda uma cidade. Pensei em dizer-lhe que era a dona dos meus pensamentos quando eu vagava em busca de sono, de como era bom ir até o colégio dos amigos só para vê-la.
Mais do que a falta de coragem, deve ter ocorrido outro motivo, inexplicável, para que eu não dissesse nada.
Por sua vez, ela também se calou, não sei exatamente a razão. E ficamos nós, calados, com os olhos mergulhados no Atlântico, de mãos dadas, sem dizer uma palavra por minutos e tendo como trilha o tilintar das águas nas pedras e areia.
Foram muitos minutos, muitos, até que ela, docemente, pediu para que retornássemos à base.
Deu-me outro sorriso, lindo, louro. Levantamo-nos e fomos caminhando calmamente, como que sorvendo cada instante, cada pedaço de brisa, cada gomo azulado do céu. Ela manteve a mão junto à minha, muitos metros. Ainda tenho na memória o calor de sua mão, a candura, a maciez, tudo inesquecível.
Quando a entreguei em seu posto, não podia sequer imaginar que aquele era o último momento próximo que teríamos em vida. Esperei por uma nova oportunidade que jamais voltaria a acontecer; o amigo, também.
Foram-se mais de vinte anos. Passa um, passa outro, sempre lembro do acontecimento.
O que diria a menina? O que me contaria? Aceitaria meu carinho, que ali seria inesquecível feito a cena de um épico de Hollywood? Paro e penso na delícia de que foi aquele momento, tão puro e significativo das melhores sementes do amor que tenho tentando plantar pelo mundo, por onde passo.
Tanto tempo depois, não sei dizer se aquele beijo, que tanto desejei ali, por não ter acontecido, passou a ser mais importante do que os inúmeros que vieram a seguir, nessa jornada de desencontros que, por nossa comodidade, denominamos vida.
Até hoje, mesmo amado e desejado num fim de tarde em Mangueira.
Sentindo-me primaveril, docemente adolescente e até sonhando com o amanhã.
Paulo Roberto Andel, 17/09/06

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