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Sunday, February 27, 2022

estranho carnaval

UM

Há tempos, as coisas andam fora da ordem. Não que o mundo fosse grande coisa antes da pandemia, mas o ruim piorou bastante. E se o caso é Pindorama, multiplique por quatro ou seis.

De berda em berda, de galho em galho, chegamos a 2022. Há guerra no mundo, nenhuma novidade e nenhuma exclusividade do confronto Rússia versus Ucrânia - nesta semana vários países foram bombardeados mas no Brasil ninguém sabe, a não ser o mais badalado. O resto a gente varre para debaixo do tapete. 

O espetáculo da morte estrangeira na TV é tão grande que os mais distraídos se esquecem das nossas desgraças cotidianas. Afinal, continuam caindo três aviões lotados de covid-19 por dia no Brasil. E a nossa guerra urbana de décadas envolvendo o tráfico, a milícia e a polícia? Tem bomba, fuzil, escopeta e carnificina, mas uma parte da turma finge que nem tá aí. Fazemos cara de paisagem, choramos (justamente) pelos mortos do outro lado do mundo e desprezamos a nossa pilha de cadáveres no morro ao lado. 

Por incrível que pareça é Carnaval. Ou quase, adiado que foi. Foi proibido no Sambódromo, furaram a fila na Zona Sul e a folia comeu solta. Parece que no Porto Maravilha também. Adiamento? Pra norueguês ver. As fotos do Facebook e do Instagram e do Facebook não deixam dúvidas. Infelizmente é a sina: como sociedade, somos bagunçados e indiferentes a tudo. A velha história do homem cordial do pro espaço. 

Nao que eu seja um folião, longe disso, mas é legal ver os desfiles na TV. E para quem mora perto do Sambódromo, faz falta ouvir o foguetório de hora em hora anunciando as novas escolas na avenida. E os bailes de antigamente transmitidos ao vivo? Tudo acabou. 

Por um instante tudo fica para trás no fim da noite de domingo. Na TV Senado toca o excepcional pianista Gilson Peranzetta, acompanhando ninguém menos do que a mitológica cantora Leny Andrade. Dois monstros da música brasileira soando como o bom e velho jazz, capaz de unir a todos. Ok, carnajazz que a gente merece. Quando cantam "Saigon", vira Seleção Brasileira: Paulo Cesar Feital na letra, a lembrança inevitável de Emílio Santiago na voz. Leny Andrade é a maior cantora de jazz do Brasil, Gilson Peranzetta é um dos maiores arranjadores da Terra. 

Num instante a terça-feira desaparece, a quarta-feira de Cinzas não tem cinzas. A vida volta ao novo normal, com toneladas de miséria em cada esquina. Não há empregos nem dinheiro, mas navegar é preciso. Não tem desfile das campeãs, ficou tudo para abril. O que está à frente são as águas de março, românticas e perigosíssimas - mal saímos da tragédia de Petrópolis. O problema é que não memorizamos nada direito, tudo passa rápido demais e vamos esquecendo a cada 15 dias os 15 dias anteriores. 

Sigamos em busca da sobrevivência, torcendo ardorosamente para todo mundo aguentar o rojão até outubro. Entendedores entenderão. 

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DOIS

São seis horas da manhã e nada tenho a ver com a velha e boa canção da Gang 90. Seu criador, o poeta Júlio Barroso, morreu há quase trinta anos. Ele faz falta. 

Não acordei. Na verdade não dormi. Cochilei. Despertei às três e meia, revi a reprise de Leny Andrade, revi Afogados x Náutico e, quando me dei conta, o céu já era alaranjado, prestes a explodir o sol nas vistas sensíveis e tirando de vez a chance de descanso para pessoas feito eu. 

Por vários motivos sou uma das pessoas mais tristes do mundo e pode ser que isso me leve à morte, mas não agora. Meu país me dá muita tristeza, as pessoas boas, as muitas ruins, as falsas, a minha família extinta. Eu sou o último grão de areia de nomes que desapareceram, absolutamente desimportante para mudar as coisas na Terra e lutando por uma sobrevivência que parece inútil. Isso não me impede de trabalhar nem de produzir coisas legais, mas me instiga a uma pergunta permanente: o que é que eu ainda estou fazendo nesse lugar cheio de escrotidão? Não sei. Sinceramente não sei. 

Queria ouvir um disco, mas estou sem aparelho. Ler um livro, mas está me faltando paciência. Queria comer menos, dormir mais, ter alguma diversão. O mais incrível nesse lugar é que sou um privilegiado, mesmo sem dinheiro, casa própria, carro, plano de saúde e direitos trabalhistas, logo eu que, por mais de 20 anos, trabalhei para que muitos profissionais tivessem seus salários devidamente corrigidos. 

Por incrível que pareça, hoje é segunda-feira de um Carnaval pela metade. Era para as pessoas não aglomerarem, mas se elas não ligam para si próprias, o que fariam pelos outros numa hora dessas? 

Na TV está passando um gol da Portuguesa. Eu escrevi o livro do time. Um idiota disse que o livro foi um fracasso, eu entendo que idiotas devem ser desprezados. 

Meu joelho direito está doendo. Estou muito pesado. É um problema de saúde, mas sempre tem uma besta para me chamar de preguiçoso sem saber o que acontece. São esses que votam em milicianos. 

O BRT voltou. O Circo Voador foi interditado. Para quem conseguir, feliz ano novo.







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