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Thursday, March 14, 2013

Ginger & Fred, Claudia & eu



I

Agora o verão precisa se despedir, mas ainda mostra sua força. Dias de calor incessante, entrecortados pela breve chuviscada como a que vi quando voltei do almoço.

Olho para a tela do computador, escuto o CD de Miles Davis que toca rascante na sala branca e silenciosa.

Por um instante parece janeiro ou fevereiro de 1986. Não me pergunte a razão. 

II

Fred havia comprado um EP dos Smiths, capa amarelada, foto afetadíssima do escritor Truman Capote na capa. Naquele verão de muitas histórias atrás, passávamos a tarde em sua casa, ora vendo a sessão da TV, ora jogando cartas, escutando música ou bebendo “mellon juice”, como gostava de dizer o anfitrião. Uma sala confortável bem no alto de um prédio completamente Copacabana, rua Figueiredo Magalhães, vista reluzente do mar de gente que vai e vem tentando imprimir sentido à vida. Dona Magda, a mãe de Fred, trabalhava fora, de modo que o apartamento era nosso playground até meia-noite, imaginem! Entretanto, foram poucas as ilegalidades da época. Quero dizer, nem tanto.

III

A discoteca já tinha Iron Maiden, Kiss, AC/DC, mas o fato é que tínhamos lá nossa pluralidade: também se podia ouvir Genesis, os próprios Smiths, Level 42 e... Marina, Joana, Simone (essa parte da história fica para outra história). Uma vez Flavia trouxe Claudia e nossa vida mudou. Quem diria: para vê-la, Fred aceitava até ir a Botafogo, pegar o metrô e atravessar a cidade até a Tijuca, estação Saens Peña, as duas estudavam por lá, eu ia também. Então conversávamos e brincávamos e éramos felizes. E foi com Claudia que Fred passou a ouvir mais música pesada, muito além do heavy metal convencional, o que lhe deu o querido apelido de Mercyful – oh, agora vejo Luiz Magno entrando pela sala, gritando algum excelente impropério constrangedor para as meninas, falando de algum grande baixista tal como ele mesmo era, vociferando contra o amor e tecendo loas ao sexo pago, tudo enquanto Renatinha não surgia. Também vejo Jorge resmungando algo consideravelmente engraçado, Marco com cara de assustado e Ricardinho sonolento. Gustavo trazia todos os discos do mundo e alguém fazia piada com suas histórias hiperbólicas e maravilhosas. Onde estão Luiz Magno e Fred, deus de alguém?

IV

Era bom ver Claudia sempre com seus olhos brilhantes, apaixonantes, algo que Glauber Rocha chamou certa vez de “olhar de cobra verde”, com toda a doçura que talvez não esteja à vista nesta sentença – as melhores admirações são não evidentes à primeira letra. E suas camisetas pretas de banda, sempre esbelta, simpática, era bom vê-la gesticulando e falando de músicas e cantores e bandas, assim como era bom ver Fred completamente hipnotizado com todo aquele cenário. Tempos depois, ele também comprou um contrabaixo. Eu começava meus dias de faculdade, mas fazia questão de sempre dar uma passadinha na casa só para ver o pessoal e depois rumar para Niterói, depois seria o Maracanã. Quando eu matava aulas, o endereço era certo. Posso dizer que a casa de Fred foi também a minha casa entre 1978 e 1992. Um dia, ele mudou de endereço, aquela magia se rompeu fisicamente, mas o coração jamais a esqueceu. Treze anos depois, num estalar de dedos, lá estávamos todos juntos de novo uma mesa da Cobal do Humaitá. Fred se assustou quando eu bebi três chopes: - Véio, pega leve. – Cara, foram apenas três chopes. – Tem que ir devagar.

IV

Nos dois dias mais difíceis de toda a minha vida, Fred estava comigo: quando enterrei minha mãe e meu pai, meus tesouros. Ambos tiveram funerais em dias de sol, assim como tinha sido com Xuru e pode ter sido com Luiz Magno, nosso querido irmão, tão jovem e tão distante daqui. Quando minha mãe faleceu, retomamos os velhos tempos como nunca: dois encontros semanais para conversa fiada, lanches no Rio Sul para recobrarmos a adolescência, CDs, livros, a vida em riste. Custo a crer que esse retorno do amigo, tão importante frente à minha ferida que jamais cicatrizará, tenha durado pouco mais de dois anos.

V

Certa noite de quarta-feira, entrei no Copa D’or para fazer uma visita ao Fred. Lá estava Dona Magda, sempre serena, mais Flavia e Claudia, ainda tão jovens, na mesma rua que um dia nos ofereceu os raios de sol da mocidade plena. Fred ria e tentava deitar, mas não conseguia por conta de uma dor nas costas. Jamais desconfiei que algo tão grave ia desembocar nos próximos dias. Numa hora, sem que ninguém soubesse, olhei para todos eles e voltei no tempo, a querida sala de estar naquele apartamento alto no coração da cidade Copacabana. Ingenuamente, pensei até que, quando ele saísse do hospital, poderíamos fazer as mesmas coisas de antes. Algo me veio à cabeça como se Claudia e Fred fossem Ginger Rogers e Fred Astaire sapateando e dançando por todos os musicais possíveis e imaginários, com ou sem chuva. A injustiça da vida me leva à outra sentença: show no mercy.




VI

Três ou quatro semanas depois, marcamos um chope na Cobal em tributo a Fred, falecido tão antes do justo e razoável. Claudia chegou toda de preto, gata todo dia, uma motocicleta possante que não sei descrever porque sou um ignorante, mas, mesmo assim, também capaz de admirar o belo que não posso explicar. Agora Marco tem um filho com a idade que nós tínhamos no tempo do suco de melão e do disco amarelado dos Smiths. Gustavo disse ter dado um esporro em Bono Vox, no que todos pusemos fé convicta. Jorge foi Jorge, Marco foi Marco, Ricardinho foi ícone eterno. Flavia não veio, uma pena. Anna Claudia também.

Isso faz quatro anos e, toda vez que eu vejo algo sobre Marillion, penso em Claudia. Basta ver alguma garota bonita de camiseta preta e sua banda de rock preferida no peito em qualquer bairro do Brasil, eu penso em Claudia. É só ver uma motoqueira audaciosa e sagaz cortando as ruas da cidade como uma heroína desejável e penso em Claudia. Meus olhos lacrimejam porque Fred não está mais aqui e eu penso em Claudia, tantas vezes quantas forem necessárias até que meu coração encontre uma improvável paz. Ginger e Fred, Claudia e Fred, eu e ela, todos os amigos, todos os pequenos momentos que, um dia, deram  - e dão - sentido ao melhor de nossas vidas. Eu penso em Fred.

@pauloandel

2 comments:

JG Pereira said...

Não vivi nem um décimo de tempo, conheci o Fred, e perdi, mas consigo visualizar como se estivesse lá toda essa história.

Saudades do Grande Fred, até hoje não consegui voltar a voar nos simuladores em que ele me ensinou a voar, os céus ficaram vazios demais sem ele voando com a gente, pra mim até hoje não deu. mas sei que ele está lá em cima fazendo seus loopings....e provavelmente escutando um rock bom e pensando nos amigos relembrando exatamente esse tempo bom.
valeu Paulo

Claudia Daflon Coelho said...

Assim você me fez chorar... Não exatamente de tristeza, mas de saudades...
E temos que tomar outroSSSS choppSSSS na Cobal ou em outro lugar qualquer!
Vamos agitar logo isso!!!