Agora sou tão velho. E quase outro. Curioso é navegar pelos cantos escuros de minha memória, revendo tudo o que já foi há muito perdido mas, num estranho passe de mágica, parece ali tão evidente e claro, sem a menor importância se o que vejo tem vinte ou trinta anos atrás. Pois bem, agora sou outro. Vivi muitas vezes, morri em quase todas, mas sobrevivi para chegar até aqui e olhar todo o passado, como se fosse na visão romântica de quem, por exemplo, atravessa a ponte no sentido Niterói-Rio numa terça-feira à noite, bem noite, e ainda se encanta com as luzes da cidade – até mesmo as vistas nas localidades mais carentes, cercadas por sofrimento, parecem sorrir aos céus. E sobrevivi inesperadamente segundo meus próprios conceitos rústicos: por alguma razão, quando pensei em idade no tempo em que era garoto, achava trinta anos uma eternidade, algo muito longe, impossível de alcançar. Dessa feita, caminhar rumo aos cinquenta anos tem sido uma experiência surpreendente. Talvez pareça menos do que tenho, talvez muitos riam do que falo e, por isso, me achem alguém admirável e divertido – pode ser verdade, mas não tenho me divertido comigo mesmo nestes dias em que o gris das tardes troca as mãos com réstias de sol. Estranho pensar que algumas das pessoas que considerei mais admiráveis estão irreversivelmente mortas, mesmo que permaneçam à luz do dia por meio da arte, das expressões, das lembranças pequenas e grandes. Posso lembrar de meus pais a cada instante, suas frases, caretas, brincadeiras e discussões; vivem em meus pensamentos, mas estão irremediavelmente mortos. Xuru é uma referência constante de piadas em todos os sentidos, mas não me canso em lamentar que esteja morto. Fred, meu grande anfitrião de tantas jornadas desde sempre, permanece vivo à mente e completamente morto em meu telefone. Minha amada mãe. Tatiana. João. Todos estão irrecuperavelmente mortos e, quando começo a escutar Thelonious Monk ou Tom Jobim ou Jon Lord numa tarde de sábado em casa, percebo que parte da minha vida foi embora com eles, mesmo que estejam aqui de alguma forma – ou estão, acho. Alguém me disse que eu deveria ter comemorado meu aniversário, mas acho isso absolutamente desnecessário para mim (não para os outros) – é que constatei estar muito, mas muito longe das coisas que eu imaginava perto de mim na juventude, de modo que esta distância também torna tudo um pouco irremediavelmente morto. Claro, muitos dirão que a vida começa aos quarenta anos, mas não tenho como acatar isso: aos dezesseis, já havia meninas a fim de carinho sem compromisso, o eterno belo horizonte no mar do Leme e incontáveis acampamentos, viagens e experiências - tudo, hoje, irremediavelmente morto. Outros dizem por que, na verdade, isso é uma forma de talvez não se sentir tão desconfortável quando comemora um aniversário e parece muito mais perto do fim do que do começo. Mas agora isso pouco importa, eu penso no hoje, no logo mais e não há muito tempo para refletir sobre o que há de sombrio no futuro. Simplesmente não há tempo. Não temos tempo a perder quando somos jovens, não temos tanto tempo para qualquer coisa quando ficamos bem afastados da juventude. Há um futuro lá fora que não me pertence. O egoísmo, a hipocrisia, a falsidade, a prepotência, valores mofados que não significam nada diante de cadáveres, nada. Dizem dos tempos modernos, dizem do futuro, mas que presente é esse? Talvez não possa reclamar: quando optei por determinados caminhos, sabia que eles seriam os mais difíceis e tortuosos e nunca me arrependi deles, independentemente de qualquer tristeza. Quero ouvir Kurt Cobain gritando “It's better to burn out than to fade away”. Quero ouvir os Beach Boys cantando “Summer’s gone/ gone like yesterday/ The night’s grow cold/ It’s time to go”. O orgasmo da morte me interessa, mas tlvez seja cedo demais. Estou muito longe de tudo, mas isso tudo não quer dizer da última noite, menos ainda a última história. Ainda haverá um verão invencível.
paulorobertoandel30072012
@pauloandel
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