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Friday, February 24, 2012

AS RETICÊNCIAS

I

Sim, eu devia ter dito o que pensava. Mas não o fiz. Poderia ter contado sobre as vezes em que sonho com você, os desejos, a vontade quase incontida de te puxar para o primeiro canto deserto e refrigerado para dissecar toda uma lascívia há muito cobiçada. Sim, eu devia ter feito isso mas não fiz. Eis que penso nos meus problemas, nos teus anseios, no estúpido medo de errar quando já se passou mais metade da vida esperada. O problema talvez não seja dizer e ser rejeitado e nem mesmo ser acatado mas não corresponder à altura: meu maior medo é querer acordar com você ao lado no dia seguinte e não querer que você vá embora. E agora você beija em outra porta, ri de outra piada, dorme em outra cama enquanto penso estupidamente que tudo poderia ser muito diferente se eu tivesse com você a mesma atitude que tenho com outras - mas simplesmente não consigo. Não devia tê-la visto em dança - foi a minha kriptonita. Queria banhar-lhe em mel, oferecer dois mil beijos inesquecíveis e provocativos, empenhar todas as carícias plausíveis e que isso não significasse uma prisão, uma masmorra, não sei dizer. Sou um idiota e talvez por isso sinto-me tão confortável.

II

acordei
diante de um mundo morto:
as calçadas rompidas
a carne podre nas ruas
o ódio e a miséria solenes
e tudo não parecia tão diferente
de um sábado à tarde
na pujança comercial
de um shopping center

III

morreu um grande cantor
morreu uma grande voz
não prestaram atenção direito
nas palavras
do cantor
nas frases que umedecia em tons
não foram justos
com o brilhante passado
do grande cantor:
somos porquinhos reticentes!

III

o poeta sumiu, fugiu
parecia inebriado
pelo êxtase da morte.
todos ficamos assustados
quando ofereceu adeus
aos pés de uma grande edifício
via internet.
felizmente era só um arroubo:
o poeta vive
e sofre
e dorme
e nos encanta com seu dom
permanente
num preciso monodrama.

V

aquilo que cogito
é muito distinto
da nobreza, dos topos
de qualquer olimpo.
não pretendo ser
um às das letras
um pintor rebuscado
um estupendo escultor:
o que me basta
é a alcunha
de vagabundo iluminado -
modéstia à parte,
qualquer Jack Kerouac
me enobrece.

VI

amar é mordiscar
os seios da bailarina
numa quinta-feira
aprazível
calorenta
mas inesquecível -
seja bendita
toda lascivia sã
beijar-lhe o ventre
o colo
a nuca
e que tudo soe
feito um poema
de Leonard Cohen.


pra 240212

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