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Monday, November 14, 2011

ACERTO DE CONTAS


1974

Fazíamos fila indiana na Praia Vermelha. Alguns soldados e pessoas do Exército estavam perto. Perguntei à Tia Diva porque a praia era chamada de "vermelha". Os adultos me olharam de jeito desapontador. Eu tinha seis anos. Era a ditadura afrontada pelo meu olhar de criança. Estupidez. Tirania. Ignorância.

1977

Quando chegamos à porta do prédio da avenida Edgard Romero, minha mãe caiu em lágrimas. Saíamos da relativa riqueza para a miséria. Eu chorei por vê-la triste. No minúsculo apartamento, uma parede falsa tinha colagens de fotos; era habitado antes por estudantes da faculdade do outro lado da rua. Uma delas era a de Mussolini morto, pendurado de cabeça para baixo. Eu não sabia quem era, mas chorei outra vez. Veio o Natal e meu pai perdeu sua última loja. Estava falido, desesperado, começou a quebrar as coisas. Voltamos no último banco de um ônibus, eu e minha mãe. Era 24 de dezembro. Meu pai só apareceu em casa no dia seguinte. Em seis meses, perdemos uma cozinha inteira e minha mãe passou a cozinhar num fogareiro. ela tinha 32 anos; meu pai, 36. 


1978

Meu pai arrumou emprego no Centro, voltamos a morar em Copacabana. Minha mãe se sentiu feliz por algum tempo. Eu gostava da praia. Era bom voltar às ruas da infância. Meus amigos se afastaram de mim porque eu era pobre. Conheci Fred e fui com ele até o fim, quase 30 anos depois.


1993

Depois de dores e alegrias, novamente deixei Copacabana em desespero. Foram dois anos difíceis; arrumei a seguir um emprego razoável e comecei a ajudar meus pais. Meu pai parou de andar seis meses depois disso, ficou um ano internado. Para cada estrada nova, pedras e pedras no caminho. Vivemos quase bem.


2008

Em menos de dois anos, perdi minha família toda. Pais deram adeus, meu irmão fechou a porta e nunca mais quis saber de mim só porque eu era contra ele se aproximar de riscos do crime. Antes, o Xuru; depois, o Fred. Todos os queridos falecidos foram enterrados em dias de sol lancinante. Quem me convence da beleza destas cores?


2011

Agora que estou morto, nenhum pecado ou prazer me regenera.


Paulo-Roberto Andel

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