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Monday, May 01, 2023

Cesare

Nós ficamos amigos anos atrás, em 2007. O primeiro contato não foi dos mais pacíficos para mim, mas deu tudo certo: estávamos no Alla Zingara, um bar favorito da esquina de Belford Roxo com Ministro Viveiros de Castro, quando minha amiga Kátia me pediu para que buscasse alguma coisa em sua casa, então bem em frente. Peguei o molho de chaves e atravessei a porta. Quando a abri, conheci meu novo amigo rangendo os dentes, mas em paz absoluta. 

Cesare era um buldogue clássico e, nos primeiros momentos, fiquei tenso, mas logo nos tornamos amigos, amigos mesmo. Ele era bem pesado e tinha um visual assustador, mas também era um doce. A única coisa que não aceitava de jeito nenhum era se, dentro do carro, alguém tentasse falar com a Kátia pela janela do motorista - dava super latidos perturbadores. 

Durante alguns anos, Kátia trabalhava para um executivo que tinha um enorme apartamento em Copacabana, gigantesco literalmente, e lá fizemos encontros, jantares e tal. Cesare virou integrante da turma, mesmo sem dar uma palavra. Performático, ele vinha caminhando de longe, atravessava a imensa sala, chegava bem devagarinho e aí eu me sentia feliz demais: girava seu corpanzil, encostava em minha perna direita e então me cutucava com o dorso, pedindo carinho. 

Um dos nossos momentos inesquecíveis no apartamento foi numa tarde em que marcamos um almoço com a turma da escola. Cheguei mais cedo para ajudar na cozinha. Quando deixamos tudo pronto e o pessoal ainda não tinha chegado, Kátia resolveu dar um banho em Cesare, mas cadê o buldogue? Sagaz e percebendo que ia rolar banheira, ele simplesmente sumiu no gigantesco imóvel. Meia hora depois, reapareceu perto da sala, que era muito longe do banheiro. Ao nos ver, fingiu ter desmaiado ou dormido, virou a pança para cima e ficou na dele. Como era pesadíssimo, tivemos que arrastá-lo lentamente - e isso com o sem-vergonha fingindo estar desacordado. Um maravilhoso cara de pau. A muito custo, conseguimos empurrá-lo até a banheira e subi-lo. Ele aceitou o que considerava uma traição, mas não movia sequer a pata. Tivemos um trabalhão mas foi divertido demais. 

Nascido na Itália, Cesare tinha natural afeição pelas cores de sua bandeira. Logo se tornou um fanático torcedor do Fluminense. Corria e pulava nos gols tricolores, levando a rivalidade a sério: se fosse um gol do Flamengo, dava latidões assustadores. 

Um dia Cesare se foi. Tinha chegado a hora. Fiquei triste e chorei. Nunca me esqueci de como ele era carinhoso comigo, mesmo quando eu parecia ameaçador com a proposta de banho. Lá de longe, vindo devagarinho até bater o dorso em minha perna direita e pedir um abraço do jeito dele, com a dignidade que só os cães têm. Não esquecia de mim, mesmo quando ficávamos semanas e até meses sem nos ver. Penso nele sempre. 

Agora tenho o Ship e o Xou. Marina me manda vários vídeos e fotos deles, são legais demais. Nunca os vi de perto, mas é como se morassem comigo. Quando estou sozinho, os vejo no smartphone e me sinto melhor. Eles não sabem, mas eu os amo demais. A vida é assim: amor, amizade e lembrança. 


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