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Sunday, April 16, 2023

Onde estará meu pai?

Nós vivemos juntos por 39 anos, quase 40. Fomos ao céu e ao inferno. Brigamos, choramos, rimos, dissemos coisas duras, sofremos (muito) e deveríamos ter vivido muito melhor do que vivemos, mas era o que tínhamos e assim foi. A ditadura não deixou que fosse melhor. 

Eu achava meu pai grandão e isso continuou até depois de eu ter ficado um pouco mais alto do que ele. Aliás, continuou a vida inteira. 

Era de poucas palavras, mas às vezes tagarelava. Ria. Contava coisas engraçadas. 

Durante muito tempo o álcool criou uma barreira insuportável entre nós, mas só a maturidade me permitiu entender a tragédia que também me vitimou. Quando meu tio foi expulso do Brasil pela ditadura, meu pai entrou em depressão - à época, tida como frescura. Eles já haviam sofrido muito, perderam os pais ainda crianças, foram criados em colégio interno e uma pergunta é inevitável: para que servia a família deles? Enfim, a separação do irmão e as dificuldades nos negócios, durante o milagre econômico que só abençoava alguns, o levaram ao alcoolismo e daí veio uma fase muito difícil para nós, eu e minha mãe, que se estendeu da minha infância à jovem idade adulta. 

Numa luta danada, consegui me formar e arranjei um emprego, mas os anos duros cobraram a conta: meu pai ficou doente e parou de trabalhar. Pior: parou de andar. Apesar de tudo, vivíamos uma vida razoável, apertada de grana mas com aquela sensação de família que, de alguma forma, está ali junta. Era meu conforto chegar em casa à noite e vê-los, eles e meu irmão. Dava uma sensação de dever cumprido. 

Meu pai me cercou de livros, jornais e revistas desde pequeno. Era tudo natural para mim, até folhear jornais incompatíveis com minha idade, caso do Pasquim. Foi desse jeito num apartamento de 300 metros quadrados e, a seguir, num de 30 metros. Com ele, aprendi o significado de Fluminense e o carreguei para sempre. Entre 1976 e 1982, fomos a muitos jogos juntos. O Maracanã era minha vida e meu pai, o guia. 

Conhecia muita música. Embora tivesse predileção pelo sertanejo tradicional dos tempos de infância, gostava de sambistas da antiga, da Bossa Nova, de Jorge Ben e Simonal. Elis, Simone, Elizete. 

Conhecia tudo do Rio. A noite, os points, o underground. Nada lhe era alheio, das altas rodas aos bafafás. 

Lia todos os jornais possíveis, acompanhava o rádio e a TV, era obcecado por notícias. Informação o tempo todo. 

E futebol, futebol, futebol! Às vezes via ou ouvia outros esportes, mas o grande lance estava no jogo de bolapé. 

Aos poucos fomos nos aproximando sob distância regulamentar. Na verdade, sempre estivemos perto. Eu não tinha como entender sua tristeza, nem ele a minha. Quando minha mãe morreu, nossa única válvula de escape foi conversar todo dia. Infelizmente o tempo foi curto, porque ele faleceu um ano e quatro meses depois, mas ainda tivemos tempo de comer bons lanches, falar de música, comemorar a Copa do Brasil de 2007 e sonhar com o futuro. Tão novo, acabara de fazer 67. 

Quinze anos depois, ele faz uma falta tão grande que só de pensar minha cabeça explode. Eu o procuro num Maracanã que já não existe, num botequim que foi todo remodelado, numa calçada que não tem ninguém. Onde estará meu pai? Não sei, a não ser na hora diária das lágrimas, feito agora. 

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