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Friday, April 03, 2015

Romão: racismo, tristeza e uma bala na cabeça

Era uma tarde qualquer de outono na Copacabana de 1975.

Por alguma razão que jamais saberei, provavelmente muito simples, minha mãe resolveu me puxar pela mão - o que ela adorava - e saímos de nossa casa, na rua Santa Clara, até o Lido, mais precisamente na rua Ronald de Carvalho, no prédio art déco que hoje serve de cenário para novelas.

Descemos as escadas do pequeno prédio de grandes apartamentos - que futuramente deixaríamos para um período de meses de dor e miséria em Vaz Lobo, até a volta para Copacabana na Siqueira Campos 143 -, minha mãe fez o sinal, pegamos o táxi. Antes do embarque, do outro lado da rua, Cícero nos cumprimentou efusivamente. Era nosso ex-cozinheiro, de uniforme alinhadíssimo à rua e carregando a barra pesada de ser homossexual assumido no Brasil da ditadura, sem pertencer aos guetos tradicionais. Um homem de muita coragem.

O taxista fez uma corrida rápida. Nenhum trânsito. Santa Clara, Atlântica, retorno no Lido e o velho prédio cinza.

Talvez fosse o apartamento do primeiro o segundo andar quando entramos. A dona da casa era uma amiga da minha mãe ou algo parecido, ou havia alguma espécie de encomenda, um serviço. Chamava-se Vilma.

Na sala, a mesa aberta com bolo e refrigerante. Era uma casa humilde. Fui convidado ao lanche. Uma menina branca do meu tamanho, sentada, talvez disse um oi. Outro garoto, éramos todos pequenos. E mais um garoto grande, que podia ter dez anos de idade. Era negro e magro. Lembro de seu rosto muito triste. Não dava uma palavra. Aquilo me impressionou, a imagem da dor. Lanchamos.

Foi uma visita rápida. A família ia sair. Depois do lanche, minha mãe me ajeitou e todos fomos para o elevador.

Num súbito, a dona Vilma começou a gritar e gritar assustadoramente com o menino negro. Tive medo. Percebi que minha mãe ficou tensa em poucos segundos de descida. Gritos, gritos, violência:

- Seu negro burro! Burro! Idiota! Sua merda!

O garoto tinha o rosto tão triste que era inacreditável não estar chorando. A dona Vilma parecia tão calma e, de repente, explodiu. O acesso de fúria só foi interrompido quando saímos da portaria. Minha mãe fez questão de dar um abraço no garoto negro e nas crianças. Falou com a dona sob certo constrangimento.

Novo sinal para um táxi. Entramos. Demos tchau à família. Aos poucos, com os olhos vermelhos, minha mãe explicou que o menino era filho de criação da dona Vilma. Talvez o filho de alguma empregada, alguma conhecida. Pouco tempo depois, os olhos vermelhos estavam cheios de lágrimas silenciosas, até uma única fala na pequena viagem até Santa Clara:

- Meu Deus, como eu tenho pena do Romão. Se pudesse, trazia ele para morar conosco. Sofre muito.

Pouco tempo depois, deixamos Copacabana temporariamente. Houve um martírio breve em Vaz Lobo. Voltamos. De empresário, meu pai passou a ser um digno empregado novamente. Deixamos um apartamento de 400 metros quadrados para outro de 30, melhorando um pouco na Siqueira Campos, onde ficaríamos dezesseis anos.

Nunca mais vi a dona Vilma. Nem o Romão, com quem não pude trocar uma palavra sequer, brincar de futebol, nada. Só lembro da tristeza de seu rosto. Tempos depois, ele pode ter sido uma peça fundamental na minha vida: sempre carreguei aquele dia no ventre, o que mais tarde influenciou minhas atividades como escoteiro, estudante e militante político. Minha mãe não conseguiu resgatar o menino negro de olhar triste demais e sem palavras.

Agora que a minha mãe não está mais aqui, só restam as minhas próprias lágrimas ao pensar naquele dia de quarenta anos atrás, quando eu era uma criança sem a menor dimensão das coisas do mundo, mas suficientemente atenta para não achar normal a violência contra ninguém. Hoje eu poderia ser avô do menino negro triste e do menino pequeno de cabelos encaracolados e olhinhos, mas sou apenas uma testemunha da tristeza.

Meu amigo Bola ficou naturalmente consternado com o fuzilamento desse menino no Alemão, ao falarmos no Facebook. Mais uma vítima da estupidez da grande sociedade. Todos os meninos deveriam ter direito a brincar, comer, ganhar bom tratamento, crescer e viver, por mais que este mundo injusto, covarde e cruel imponha o contrário.

Eu também fiquei consternado. O garoto do Alemão não teve direito ao futuro, destruído por uma bala na cabeça. E o Romão, onde mora?

O racismo a gente nunca esquece.

Até quando esse país vai insistir em ser um navio negreiro?

@pauloandel



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