CONVERSANDO com meu amigo Raul há
pouco no departamento profissional da empresa onde trabalhamos, talvez no
começo da manhã, nosso assunto começou em aposentadoria e voltou até o tempo em
que cada um, a seu modo peculiar, enfrentou as agruras dos primeiros empregos e
ocupações. Somos de gerações diferentes; tivemos formações, residências e
práticas diferentes. No entanto, tudo fica parecido demais quando se começa a
trabalhar: nada é fácil, cada dia é uma luta. E rimos também: ele não tem a
menor aparência fisionômica do que se imagina (em pré-conceito) da figura de um
homem aposentado.
Caminhar pelo sol a pino,
enfrentar clientes beligerantes que possuem toda a razão porque “estão pagando”,
encarar filas intermináveis, percorrer quilômetros até a hora em que uma
cliente generosa ofereça um pedaço de bolo ou um copo de água, atravessar a
Baía de Guanabara às duas da manhã depois do expediente ter sido encerrado
(teoricamente) às dez da noite. Tudo isso é menor diante dos milhões de
brasileiros que diariamente encaram as piores condições de trabalho nos piores
cenários e ambientes possíveis – o noticiário está cheio deles. Por nossa
imensa sorte e alguma competência, estamos longe dessas mazelas. Não trabalhamos
no melhor lugar do Brasil? Não sei dizer, mas acho difícil que nossa casa de trabalho
não esteja entre os dez – ou cinco – melhores points profissionais a cinco mil
léguas do coração do Rio para qualquer direção da bússola. Somados, temos quase
meio século de vida profissional na empresa e isso quer – ou pode – dizer alguma
coisa.
Desde que comecei lá longe a estudar
Estatística, debaixo de muitas adversidades no fim dos anos 80 do século
passado – um país em completo abandono e desemprego; uma inflação de 70% ao
mês; a luta para se conseguir ficar entre os primeiros lugares de uma universidade
concorridíssima; a dificuldade de se conseguir um estágio numa carreira que mal
era (e é) disseminada na economia -, o mundo mudou demais. Isso valeu para o
futebol que amo e escrevo (vendo-o agora de maneira diferente, por sinal), a própria
sociedade, a vida cotidiana, as inovações tecnológicas, os noticiários, os
embates políticos, tudo. Mas minha diversão no emprego não mudou. Incrível. Pensar
que já se passaram quase vinte e três anos é uma preocupação, mas, ao mesmo
tempo, permite olhar o que aconteceu – e posso dizer que o saldo é
absolutamente favorável: excelentes e confortáveis condições de trabalho,
relações humanas gerais excelentes, silêncio na hora de calcular (o que é
fundamental), todos os direitos trabalhistas absolutamente impecáveis e
visíveis no computador, salário impecavelmente depositado na conta com precisão britânica, dezenas de histórias divertidas que dariam até um
pequeno livro: garotas bonitas, chefes engraçadíssimos, diretores que hoje são
saudade. Claro que houve percalços, pois a vida não é feita só do arco-íris,
mas são absolutamente desimportantes diante do contexto da obra (em se tratando
da casa a que me refiro, literalmente expresso); para um profissional da
Estatística, não se permite o erro de inferência.
ÀS VEZES um admirável e querido maluco passa falando em usar as sobrancelhas no “estilo Madame Satã” (sabe-se lá o que o interlocutor quis dizer com isso). Outro recita poemas intermináveis. Alguém faz piada boa com a voz em alta escala, alguém fala num idioma próprio e divertidíssimo. Gente com sotaque divertido, daqui e de fora. Pequenas e divertidas barbaridades verbais. Gente suadíssima, vindo da rua depois de horas de esforço, beneficiando inclusive os companheiros da casa. Nas salas dos setores, é difícil constatar a ausência de riso, mesmo diante de tarefas mais complexas e que exigem atenção. Pessoas erram e acertam muito – aliás, é de bom tom jamais confiar em quem nunca errou, dado que os mentirosos não são lá essa coisa toda em termos de confiabilidade, por motivos óbvios. Geralmente o ar condicionado funciona muito bem, a internet idem e não tem lista de convocados ao DP para o desligamento a cada mês, praxe nas majors por aí. Tudo tão confortável que, ao apertar os horários de almoço, pude me tornar até um escritor publicado. A sede é linda e tem detalhes seculares, que geralmente impressiona os visitantes. À tarde servem lanche sala a sala.
Boa parte do elenco dos
funcionários tem duas ou três décadas nas costas; os “especialistas” dizem ser
contra isso e me sinto do direito de questioná-los: oh, senhores da exatidão,
já estiveram aqui para avaliar o quanto a coisa funciona? Nenhum deles foi pago
por vinte anos para exercer as especialidades em lugar algum, é natural que não
aprovem. Gosto dessa coisa de defender uma camisa por muitos anos, isso me remete
ao genial Nílton Santos.
Outro dia mesmo, a empresa parou
cedo para que tivéssemos o almoço de Páscoa. Um bacalhau espetacular, dos
melhores do ramo, repetido com louvor a cada ano. Lembrei-me dos rapazes
trazendo o peso-pesado em bandejas por três ou quatro quadras, correndo para
que tudo chegasse absolutamente quente do forno da padaria. Tive vontade de rir
de quem reclamou do atraso de cinco minutos da festa: sorvete,
bebida, comida, ar refrigerado, dinheiro na conta, cadeiras confortáveis, tudo
a um ou dois quilômetros de comunidades carentes onde pessoas ainda deixam de
almoçar para que o jantar possa existir. Ou num mundo onde a cada três segundos
uma criança morre de fome. Uma a cada seis pessoas na Terra não tem sequer água, elemento
quintessencial da vida. Uma vez por dia, tento tirar cinco minutos para ir a
algumas salas, falar com os camaradas, saber como estão, trocar pequenas grandes
ideias. O mundo lá fora é doloroso, injusto e cruel enquanto ainda me divirto
em minha cadeira preta em frente a um computador preto.
Queria falar mais da festa, das
pessoas, do bacalhau. Tudo isso foi só um pretexto para lembrar que, enquanto
estamos por aqui, nossa vida é farta e especialíssima em se tratando da média
no planeta Terra afora. Conversei com Raul e me lembrei do quanto nos
divertimos. Antes da conversa, meu objetivo era entregar a ele um cálculo de
juros qualquer. Noutros lugares, parece sacrifício. Calcular por aqui é
diversão para mim.
Dizem que os empregados ficam
mais felizes quando recebem um prêmio extra ou alguma benesse. Seria fácil
demais. Digitei isso na hora do almoço de hoje, com o público querendo minha cabeça
porque o CUB não foi publicado, gente rosnando no telefone e no e-mail. E daí?
O trabalho é sério e me divirto com ele do mesmo jeito. Daqui a pouco tudo
estará bem. Agora mesmo dois colegas de labuta conversam fraternalmente em frente à mesa de café a centímetros da porta da minha sala de trabalho.
Muita gente, ao olhar o passado,
diz que gostaria de ter feito outra coisa na vida. Se fosse o caso de escolher,
eu talvez estudasse e trabalhasse bichos, que gosto muito, embora não saiba
dizer se me divertiria o tempo todo, ainda mais num trabalho em que perdas e
mortes são inevitáveis no cotidiano. Então fico admirando os bichos de longe e
continuo muito feliz aqui pela rua do Senado com meus números: desde aquele
1992, quando vim com vinte estudantes disputar uma vaga de estágio e venci, eu
não moveria uma vírgula sequer. Tudo exatamente como tem sido.
Há livros que já nascem prontos,
deve ser isso.
@pauloandel
No comments:
Post a Comment