I
O futebol não existe sem o outro, por mais que seja um jogo e, dentro dele, haja um oponente. Não existe Flamengo sem Vasco, Fluminense sem Bangu, Botafogo sem Olaria, uns sem os outros. O que move o futebol como tradição secular mundial é exatamente isso: os outros.
Vejam o jogo de ontem: não tinha nada para lotar um Engenhão, exceto a estréia de um dos últimos representantes daquele futebol que, segundo Álvaro Doria, era “outro esporte” se comparado com o hoje, menos técnico e muito mais dependente da questão física. E justamente na exceção é que se justifica o estádio apinhado, com gente saindo pelo ladrão (sem nenhum trocadilho). E então estreou Ronaldinho no Flamengo, e então a cidade parou: uma multidão a favor, outra contra e todos querendo ver o velho e grande futebol de antigamente na figura do rapaz dentuço, multimilionário e amante das coisas boas da noite.
Não foi uma partida de brilho intenso, embora com momentos muito interessantes. Descontemos as hipérboles intergalácticas que cercam a Gávea a todo instante. Quero falar de um dos momentos mais bonitos que vi no futebol dos últimos tempos: terminada a partida com a vitória rubro-negra, o extenuado Ronaldinho fez questão de cumprimentar os milhares de torcedores que pagaram (caro) para vê-lo. Via-se no jogador uma profunda emoção, misturada a agradecimento, que ficou evidente quando ele passou a saudar à massa presente curvando o corpo para, a seguir, com a voz quase embargada, falar com a imprensa ainda no gramado.
Ronaldinho ganhou tudo. Aos trinta anos ou perto deles, já ganhou o mundo com suas jogadas fantásticas, grandes gols e grandes títulos. Foi o melhor de sua geração, ainda que tivesse rivais à altura que jamais confirmaram o muito que deles se esperava, exceto por lampejos: Felipe, Roger e, num plano acima - mas com poucos degraus a mais - Alex. Muitos afirmam que sua opção em jogar no Rio foi por conta da imensa vida noturna da cidade. Será que só isso o faria deixar a belíssima Milano? Não creio.
Muitas vezes, meu texto exige piadas contra a Gávea, bem-absorvidas pelos meus amigos que a ela dedicam amor; noutras, nem sempre. Hoje, é diferente. Ronaldinho teve uma atuação modesta, mas o fim do jogo reservou uma emoção incrível não somente para ele ou os presentes às arquibancadas, mas para todo mundo que teve a oportunidade de assistir via televisão ou internet. A maneira como se dirigiu aos torcedores mostrou humildade, respeito, dignidade e, por um instante, isso transcendeu às paixões clubísticas. Muitas vezes, em vídeos, quem vi fazer coisa assim foi Pelé, não por acaso o maior de todos os tempos. Não era preciso ser um flamengo para aplaudir e se emocionar com o final do jogo de ontem, mas sim digno e confiante na esperança que ainda pode resgatar o ser humano, muitas vezes somente vista numa partida de futebol.
O meu amado Fluminense volta a campo hoje, luta pela Guanabara e torcerei com todas as forças pelo almejado título estadual. O Fluminense me basta, o Fluminense é minha cobiça incessante. Independentemente do que aconteça, um dos grandes momentos deste campeonato e deste ano foi visto ontem no Engenhão, num lindo gol de Ronaldinho que não balançou redes, mas corações.
II
Ricardo Gomes é o novo técnico do Vasco.
Quem era criança ou adolescente Tricolor como eu, no começo dos anos oitenta, não tem como não reverenciar Ricardo. Era o paradigma do zagueiro: clássico, elegante, firme sem ser violento, impecável no senso de colocação, com enorme disponibilidade técnica, bom cabeceador, excelente chutador. Perto dele, de trinta anos para cá, só Thiago Silva. Ricardo era o grande capitão dos Tricampeões daqueles tempos. Mais tarde, pela incontestável força do capital no futebol, ganhou o mundo: Portugal e França. Teria sido o grande capitão da vitória em 1994, não fosse uma contusão às vésperas da Copa – era o homem de confiança de Parreira.
Como treinador, jamais conseguiu resultados à altura de seus feitos em campo. Trabalhou aqui e ali, passou pelo meu amado Fluminense e foi até constestado – o que sempre me incomodou. Ele é botão do meu time, isso diz tudo. É claro que entendo o fato: muitas vezes, fora de campo, grandes craques não conseguem repetir êxito como treinadores – até nisso, Pelé foi sábio, pois nunca arriscou o pescoço à beira do gramado.
O Vasco é meu rival, não meu inimigo. Ele é o outro, é um dos outros; sem ele, o Fluminense não existe.
De um ano para cá, por causa de um torcedor imbecil da Colina (que, evidentemente, não reflete nada da gigantesca e apaixonada torcida cruzmaltina) que quase me fez perder a cabeça e fuzilá-lo, por conta de seu baixo nível contra meus amigos num trem de Metrô, cheguei até a deixar um pouco de lado minha simpatia pela Colina, casa de meu inesquecível amigo Xuru. Deixar somente um pouco, diga-se de passagem: o respeito ao time que inventou o negro e o pobre no futebol brasileiro não poderia parar por conta de um imbecil drogado e com ares de malandro calça-frouxa. Com Ricardo Gomes, a coisa muda de figura. São Januário está desfraldando uma verdadeira bandeira Tricolor no gramado, justamente num momento de pavorosa crise.
Meus olhos estão no Tricampeão, mas uma bela lembrança agora veste a camisa cruzmaltina. Título não, claro e com risos, mas tomara que Ricardo finalmente mostre à beira do campo ao menos parte do colossal talento que me ofereceu um dia, nos gramados e mesas de futebol de botão, quando era um dos maiores craques do futebol brasileiro de todos os tempos.
Oxalá.
III
Ver o Maracanã do lado de fora me angustia quando passo pela Radial Oeste.
A troco de quinze dias com partidas a quinhentos reais de ingresso, espatifaram tudo.
Para fazer o que estão fazendo, mesmo com a dor que me custaria, era melhor terem derrubado o templo sagrado do futebol mundial. Pior: o Maracanã nunca mais vai ser como antigamente: democrático, pluralista, com ingressos para todas as classes sociais e suas disponibilidades de renda.
Ronaldinho Gaúcho merecia um Maracanã lotado ontem, e isso não quer dizer qualquer depreciação ao Engenhão. Apenas questão de tamanho, tradição e festa.
Tenho medo de como o Maracanã será depois da Copa.
Paulo-Roberto Andel, 03/02/2011
1 comment:
Belísima resenha. Fiz a mesma leitura que você quando da reverência do Ronaldinho à torcida. Também me emocionei.Só não curti aquela de dizer que todo mundo tem um pouco do Flamengo. Só se for da cor vermelho. Nem isso... O meu sangue é tricolor. :)
Tomara que o Ricardo diga a que veio. E que o Dinamite não "dinamite" mais com as contratações estranhas que vem fazendo.
Quanto ao Maraca, tenha paciência. "Mitos" precisam de uma manutenção, de um ácido hialurônico. Botox , jamais,deforma. :)
Paulinho, "muita calma nessa hora"[rs]. Amigo, estou perdendo a motivação para "blogger". "Fazer o quê? Perder, né?
Beijosss
E.T.
O projeto está pronto. Guarde essas crônicas para o próximo "book". Geniais, como sempre.
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