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Thursday, August 05, 2010

CCC

















Cenas Contemporâneas de Copacabana

I

Não me venham com balelas: férias são férias e, gigantes pela própria natureza, boas. Pouco importa se duram um mês ou uma semana – só nos resta viver. E discordo daqueles que creem na obrigatoriedade de se viajar para ter boas férias. Ora, se nasci e vivo numa das cidades mais maneiras do mundo, descontadas as hipérboles e todas as mazelas já conhecidas, viajar para quê? Um acréscimo: mais do que nascer e viver numa cidade maneira, melhor ainda ter nascido/vivido no bairro mais maneiro dela.

Assim como todo craque é craque até que volta a ser simples mortal, quando comparado com Pelé, todo bairro nobre é nobre até que alguém fala de Copacabana. Saiam de baixo!


II

Nasci na Rua do Bispo, Casa de Portugal, julho de 1968, definitivamente uma época sem mar para peixes, barcos e sereias. Oito dias depois, já instalado em meu confortável berço na rua Belford Roxo, apoteose do Lido, a ditadura entrou em minha casa e pôs minha amada mãe para correr... comigo no colo, é claro. Escapei do primeiro atentado contra minha vida sem maiores arranhões. Reviraram a casa toda e destruíram livros, para deleite dos imbecis que ainda acreditam que o Brasil não foi tomado pelo fascismo em 1964.

Não tenho maiores lembranças além das sensacionais fotos tiradas pela Bolinha Mãe. Uma festa em casa, talvez dos meus dois anos de idade. Imagens esparsas. E só. Na praça do Lido, brincava com cordão de ouro na chupeta. Sérgio Brito e Clóvis Bornay eram meus fãs, o que muito orgulhava a minha amada mãe e, como se viu a seguir, somente me agregaram valores positivos. Sou modesto.

Descontando seis meses em Cascadura e um ano em Madureira, entre 1968 e o dia 19 de novembro de 1993, eu respirei Copacabana. Isente os acampamentos escoteiros que, somados, devem dar umas noventa noites em campo. Uma ou outra viagem. Assim, oito mil e quatrocentas noites bem-vividas vendo televisão em casa, jogando bola na praia, correndo na orla ou em outros causos íntimos que não vale a pena publicar.

Oito mil e quatrocentas noites depois, atravessar o Túnel Novo, que já não é tão novo (uma galeria, centro e cinco anos; a outra, apenas sessenta e um), Copacabana ainda mexe com meus gordos hormônios. Pobreza e riqueza na mesma quadra, prédio ou até mesmo apartamento. Travestis cumprimentando babás. Lutadores de kung fu conversando sobre o Concretismo. O modelo que usava chifres viking na porta do Centro Comercial. A entrada do Clube Israelita que virou feirinha. A baleia do Parque Peter Pan.

Mais ou menos por aí.


III

Muito legal flanar sem rumo ou compromisso pelas ruas do bairro, feito os tempos de criança.

Antes disso, deliciosos discos na Fnac, quando meu amigo de infância Marco me telefona e combina um encontro no dia seguinte: está de férias, precisará visitar a mãe e, com isso, podemos jogar alguma conversa fora. Segunda-feira foi dia de descanso. Hoje, que foi outro dia, compras de música. Nenhum problema com downloads, eu baixo também. O problema, para quem me entende, é que ler o jornal na internet é diferente de folheá-lo. Já escrevi aqui mais de uma vez sobre as delícias do ritual de ouvir um disco: um bom refrigerante gelado, deitar na cama, abrir o disco, colocar para tocar, ler o encarte, quem tocou quem produziu.

Quarta-feira na estação Arcoverde.


IV

Tá lá o português. Não temos mais a casa do Fred, o carteado com Luiz Magno e o Jorge vive viajando, fato que dificulta a reunião da turba.

- Cara, vamos dar uma caminhada por aí? Depois a gente vai comer alguma coisa.

- Fechado.

Um sebo que fica perto dos fundos do Copacabana Palace. Nenhum disquinho. Da outra vez eu capturei um Fito Paez importado.

Mais duas quadras pelo saboroso caos da avenida Copacabana, número quarenta e três da Siqueira Campos.

CCC. Centro Comercial de Copacabana. Quinze anos que não entrava ali. Da outra vez, eu queria um Doobie Brothers ao vivo. Não rolou.

No subsolo, há uns trinta anos, a loja “Lixo” era um clássico para quem queria, acreditem, comprar calças jeans. O dono se dizia amigo do meu pai, mas nunca lhe deu um tostão ou auxílio quando ele adoeceu e parou de andar... e de ter trabalho e renda. Apareceu no enterro. Grande bosta! A loja faliu. Foi merecido.

Subindo a escada rolante, do lado esquerdo era uma lanchonete que tinha excelentes sucos e misto-quente. Desapareceu. Era tudo tão presente para mim, como pode ter sumido? Descendo pela esquerda até o fundo, era a Disco do Dia. Fred adorava comprar coisas por lá, geralmente mais baratas; o que não era lançado no Brasil, era na Billboard mesmo, da Barata Ribeiro.

Em algum dos corredores comprei jogos de botão. Onde, não lembro mais.

Agência de viagens, loja de souvenirs eróticos, delivery de quentinhas. Loja de conserto de eletrônicos, o velho DJ da Help no batente – com cara de poucos amigos. Marcel. Morava no prédio do Fred, bloco F, Figueiredo Magalhães, 598. Saudade.

Um inegável aroma de trash e elegância que só Copacabana tem. Aquela coisa limítrofe entre o Braga e o admirável. A tangente. Minha casa.

Segundo andar, um sebo cheio de dvds e revistinhas. Marco gostou. Alguns cds, mas não menos bons. Mundo Livre S A, “Manuela Rosário” e um ao vivo do Maurício Pereira, tocando covers de grandes sucessos do rádio e tevê. Maurício foi dos Mulheres Negras, com André Abujamra, e é um dos grandes artistas brasileiros – atualmente pode ser visto/ouvido como o locutor da propaganda da lata vermelha de cerveja. Simpática a dona. Tudo baratinho, segundo ela, para voltar. Voltarei. Noutro andar, a loja que não tinha Doobie Brothers, cheia de metal pesado.

Quando tinha catorze anos, voltando da escola Cícero Penna, caminhar no CCC era uma recorrência. Quase trinta anos depois, não tenho mais como fazer isso regularmente – por isso, um passeio kitsch é extremamente valoroso.

Ainda deu tempo de almoçar um sanduíche no Cafeína, bem ao lado do prédio onde Marco morou por muitos anos. Patrícia passou por mim, não me viu, não me reconheceu, continua linda, acho que é a dona. Tempo também de descer a Cinco de Julho, onde ele, Marco, reviu o velho centro espírita que freqüentava, agora em novo endereço.

Caminhar pela praia deserta em dia nublado e conhecer as maravilhas dos banheiros subterrâneos da orla, limpos, vigiados e, claro, caros.


V

Bar no fim da tarde, rápido. Uma horinha de drinque, falar da vida, dos amores, das pessoas queridas que se foram, dos momentos muito divertidos, de outros nem tanto. Religião, não-religião, política, esse desastre que envolve o goleiro Bruno, efemeridades. O bar se chama Alla Zingara, pleno ítalo, foi todo reformado recentemente, mas o chamamos de Bar da Kátia: nossa amiga lindona e caozeira mora do outro lado da rua e batizou involuntariamente o apelido da taberna. Esquina de Belford Roxo com Ministro Viveiros de Castro. A vinte metros dali, era a minha festa de dois anos de idade. Ou o endereço do qual fugi aos oito dias de vida, porque o Estado Fascista me considerava comunista e, por isso, criminoso. Estamos em 2010. Sou comunista.

Num mundo escroto como o de hoje, repleto de individualismo e valores fúteis, bom olhar para a frente e ter um amigo de mais de trinta anos de batalha.

Hora do Marco ir embora. Trânsito. Barra. Recreio. Não é mais como era antigamente, entendo. Não é só ir ao velho Gordon perto da Figueiredo e andar duas quadras para casa. Hora de fechar conta.

Toca o telefone, Luiz veio do Paraná e está onde as coisas acontecem. Copacabana. Teremos outro encontro breve. Marco levanta, vamos até a Rodolfo Dantas. Dizem que Einstein almoçava, voltava para a faculdade e, quando encontrava um amigo, aluno ou similar, almoçava de novo. Meu dia de Einstein, portanto: deixar Marco, passar na lan house e agradecer os recados de aniversário no Orkut, voltar ao Bar da Kátia.


VI

Eu lembro de ter visto dois jogos de futebol seguidos, dois filmes seguidos, mas não de ter ido a um bar, fechado a conta, saído dele e, vinte minutos depois, voltado. A rapidez se deveu porque os recados orkutianos eram bem comportados, o que deixou minha gata gordinha bem feliz, creio.

Falando em gata gordinha, cinco ou seis telefonemas. Mulher gosta de telefone.

Quase três anos depois, Luiz de volta. Alegria. Falar da vida, dos amores, das pessoas queridas que se foram, dos momentos muito divertidos, de outros nem tanto.Acho que já li isso antes.

Coisa de dez da noite, hora de partir. Eu numa linha do metrô, Luiz na outra. Nos cumprimentamos fraternalmente.

Sete telefonemas.

Em breve, estarei em casa.


VII

Ainda deu tempo de ver o segundo tempo do jogo do Santos. É ataque, é toque de bola. Merecemos isso, ainda mais depois da burrice colossal de Dunga. Dunga? Já era. Que nem Serra, felizmente.

Se eu tivesse um dia por mês para ir a Copacabana fazer essas coisas, seria mais feliz.

Quem disse que eu precisava viajar para me divertir se enganou.

“Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!”

Noel Rosa, 1935.


Paulo-Roberto Andel

6 comments:

Unknown said...

Adorei a crônica. Voltei no tempo e me vi andando por Copacabana, no CCC e me surpreendi achando graça quando alguém ia no Lixão comprar jeans.
Devemos valorizar o hoje para que amanhâ tenhamos histórias para contar.

Unknown said...

Adorei a crônica. Voltei no tempo e me vi andando por Copacabana, no CCC e me surpreendi achando graça quando alguém ia no Lixão comprar jeans.
Devemos valorizar o hoje para que amanhâ tenhamos histórias para contar.

Unknown said...

Olá Paulinho amei essa crônica, parecia que estava na nossa velha e querida Copacaban, o pior é quando moramos ai não damos valor, mas quando mudamos para longe as pequenas coisas ficam enormes... bjkas

Unknown said...

poeta_gaucho//1946Meu querido mestre tricolor saudades grande abraço. De moradia nova aqui no meu RS. Numa praia simples mas que amo também. Assim como esse amigo que mora no lugar mais lindo do mundo. E mostra mais uma vez essa especialidade que poucos conseguem ter. Escrever uma crônica perfeita. Grande abraço amigo agora estou de volta.

Elika Takimoto said...

Sempre bom passar por aqui.

Delícia isso tudo aí que vc escreveu. E pensar que o governo dará como prêmio para professores municipais viagem à Nova York... com tanto Brasil por aqui.

A felicidade mora ao lado.

Bobo de quem pensa diferente.

Beijos

Philippe von Buren said...

Copacabanense convicto, tendo vivido apenas dois anos no catete, entre 1968 e 2008 ( 40 anos de praia), identifiquei-me com tudo o q vc escreveu. Mais uma empatia, sinergia, simbiose, tricolor..