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Wednesday, August 22, 2007

O comodismo conveniente e a farsa da indignação

Amigos, as tardes voam breves e, em muitas semanas deste ano terrível, fomos testemunhas, cada um a seu modo particular, das mazelas do mundo, muitos mundos, o mundo Brasil também. Aos poucos, fomos nos deparando com queima de gentes, estupros, mortes banais, pilhagem aos cofres do Estado e também aos particulares, justamente os dos mais pobres - estes, fonte pagadora de dívidas seculares e desafiadoras dos mais firmes preceitos da infinitude matemática.
Dia desses, surpreendi-me com o chamado "Cansei", um movimento que, conforme pode ler-se no afirmativo, é de pessoas cansadas. Há momentos em que o Brasil parece ter oferecido tudo o que de mais surpreendente possa ser em termos negativos, até que vem uma escala maior de negatividade e bagunça tudo.
Naturalmente, reconheço que é saudável para a democracia qualquer movimentação nas ruas, desde que provida de ordem, respeito e fundamentos de natureza pública. Contudo, desconfio claramente do "Cansei".
Tenho minhas razões.
A primeira delas é que o suposto movimento demonstrou excesso de cansaço, ou melhor, descanso - esteve nas ruas pela última vez em 1964, o ano maldito, o ano em que começamos a perder 50 anos em 5, "Marcha com Deus pela Família e Liberdade". Depois daquilo, pareceram, os cansados, deitar eternamente em berço esplêndido e viveram felizes num mar de democracia e justiça social por quatro décadas e três anos. Quem se declara cansado depois de tamanho intervalo de tempo provoca suspeitas.
Outra razão é desconfiar da turma que posou no pantheon da liderança cansada: Regina Duarte (excelente atriz, com passado distante de causas políticas bastante interessantes, mas atuamente mais ligada à cúpula do neoliberal PSDB); Hebe Camargo (defensora, declarada fraterna e eterna amiga de Paulo Salim Maluf - síntese perfeita); Ana Maria Braga e Ivete Sangalo (quem?). Pessoa jurídica, a Daslu (abrigo profissional da filha do governador paulista, empresa envolvida publicamente com sonegação de impostos e complicações legais de comercialização). Como cereja do bolo, o presidente da Phillips, famosa multinacional que há décadas lucra nesta terra com o suor de brasileiros, alguns nortestinos e piauienses também, afirmando que "se o Piauí deixar de existir, ninguém teria falta" - na apoteose dos anos 30, um sujeito com discurso semelhante de exclusão varreu a paz e semeou a morte pelo mundo: Adolf Hitler.
Foram para as ruas, mil pessoas? Cinco mil? Não se sabe. Na melhor hipótese, cinco, trata-se de um número magnífico para a classe que representam. Vinte mil famílias, ou cerca de cem mil pessoas, são donatárias de 74% dos títulos da dívida pública brasileira. Não é irreal afirmar então que cinco por cento da elite econômica brasileira movimentou-se pelos arredores da Avenida Paulista. Imagens televisivas flagraram transeuntes vestidos com camisas cansadas, xingando Lula, o presidente, de "ladrão" e "vagabundo". Neste momento, percebi que, apesar da ditadura disfarçada que vivemos pela opressão da distribuição de renda, há democracia: lembrei-me de certo embate, há dez anos atrás, que o presidente FHC travou contra um estudante secundarista no programa de Sergio Groisman, chamando o garoto de "ignorante" e "que não sabia de nada". Não houve um palavrão, nada - tratou-se apenas do então presidente, acostumado ao poder e às benesses que sempre desfrutou, na condição de descendente de tradicional família ligada ao generalato brasileiro, irritar-se com questionamento comum. Imaginou que, por ser presidente à época, deveria encontrar adolescentes cabisbaixos pedindo-lhe bênção. É curioso imaginar o que faria se estivesse no lugar de Lula, tola elocubração minha porque isso jamais aconteceria: a turma cansada gosta de FHC. E o inverso talvez justifique o ato: simplesmente não gostam de Lula. Incômodo com suspeitas de desvios públicos, nunca tinham apresentado até então, ao menos durante o período de descanso - basta verificar as contas nacionais entre 1964 e 2007, para saber que, se cansados da "vagabundagem" do governo, poderiam ter pisado antes nas calçadas da Wall Street brasileira.
Votei em Lula, mais de uma vez. Fui eleitor de Leonel Brizola por muitos anos, e ainda sou adepto da causa trabalhista fincada com os pilares dele, Brizola, mais Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, o que me dá respaldo para questionar vários posicionamentos do PT. O Brasil que vejo nas ruas é muito distante de tudo o que sonhei quando era criança. Há falhas, problemas e o mal-estar do chamado "mensalão" (que se, comprovado, levará a caminhos tortuosos muito anteriores à posse de Lula) incomoda qualquer cidadão de bem. Sabemos que este é um pais em busca ainda de longa construção, a longa noite. Mazelas, aquelas lá de cima, não nos faltam.
Agora, o que esse Brasil "cansado" tem a me dizer? Viemos de 1.500, falam como se a república fosse datada de 2003.
Para os que enxergam a causa social com obtusa miopia, basta "pagar impostos" e tudo está resolvido: o Estado e a sociedade devem servir aos neo-feudalistas como serviçais. "Pago, portanto exijo". Neste momento, afastam-se do amor ao próximo; das religiões que, vez ou outra, defendem enfaticamente; da vida real, nas ruas, que não depende somente de compras sofisticadas ou ingressos VIP para aplaudir a melhor cantora de axé do país - seja lá o que possa significar isso.
A verdade é que, a passos curtíssimos, para alguns milhões de brasileiros, a tortura de sobreviver diminuiu. Que seja um fiapo, mas aconteceu. Reitero que há muitos erros, e que bons e pequenos passos não devem servir de justificativa para assalto aos cofres públicos. Contudo, o fato é que, para muita gente (em cujo grupo não me incluo como beneficiário) o Brasil ficou menos ruim.
Eu imaginava ouvir coisas da tal passeata como "Baixe os juros!" ou "Analise a questão das células-tronco!". Nada. Era "Vagabundo!", "Safado!", "Pilantra!", "Fora, Lula!". Desnecessário e baixo. Não me pareceram indignados com um "paraíba", expressão antiga que, em São Paulo, equivale a "baiano" - afinal, já tivemos o maranhense-amapaense (e "imortal"...) José Sarney como presidente. Um dos mais influentes políticos brasileiros dos últmos cinquenta anos (com tudo o que de ruim que isso possa significar) foi o notório ACM. Pronto, dois filhos da terra nordestina. Apesar de que.... não advieram da parte mais baixa da pirâmide social - e as reações destemperadas talvez possam ser justificadas por isso.
Não votaria em Lula para um hipotético terceiro mandato, se vislumbrasse alternativas razoáveis para a governabilidade brasileira. Tenho dúvidas sobre os candidatos que venham a se apresentar.
Estou certamente triste com muitos acontecimentos deste governo. O Sivam, o escândalo da reeleição de 1998, a decuplicação da dívida pública que tanto interessa a cem mil pessoas dentre os cento e noventa milhões de brasileiros, o impeachment, tudo isso também trouxe-me cargas de mágoa no passado. Estranha-me que não se comente sobre isso em nenhum lugar.
Contudo, não posso fazer papel de bobo ao acreditar na balela de que a classe mais privilegiada do Brasil, desde sempre, tem algum interesse em impichar o presidente para fazer algo de realmente positivo para toda a sociedade, sem olhar para o próprio umbigo. Tiveram a faca, o queijo, a goiabada, a colher e o suco de caju nas mãos. Nunca usaram sequer o guardanapo.
Negar os erros de qualquer governo não deveria implicar em aliar-se com a escória moral do país para qual causa fosse.
Somos uma nação plenejada para a desinformação, a docilidade em afagar os afortunados tal como os índígenas faziam com os exploradores portugueses. Tudo foi tramado para isso. Tudo foi planejado para que o stablishment jamais fosse ameaçado. Hoje, muito sofremos por causa desta herança maldita.
Se vivemos hoje uma situação perversa, é claro que a classe política tem toda culpa. Mas não é a única.
Partes da sociedade brasileira vêem com bons olhos a ignorância popular, associadas ao comodismo conveniente e às farsas de indignação, por vezes reveladas pelos "cansados".
Eu estou cansado é de gente sem coração, que sonega, não gera empregos quando pode e prefere ganhar com a especulação, não distribui renda quando lhe cabe, que não impede a livre circulação do tráfico porque tem a lucrar com isso. Lucrar, lucrar ao máximo com investimento mínimo. Livre iniciativa, desde que tenham as rédeas da situação - competição, jamais.
O Piauí é mais importante para mim do que Miami ou Manhattan.
E, sinceramente, fico orgulhoso quando leio declarações de Chico Buarque e Oscar Niemeyer, e constato que muito o que eu comentei acima tem a ver com o ideário admirável deles.
Paulo-Roberto Andel, 22/08/2007

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