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Monday, October 16, 2023

Nos arredores do Castelo

CAMINHANDO pelo meu pequeno e desimportante mundo, lembrando de tanta coisa que passou e plenamente destemido, apesar de ter uma pistola apontada para a minha cabeça 24 horas. 

Eu ando com meu par de chinelos confortáveis que comprei no Mercado Livre, e olho para os grandes prédios com a mesma admiração de criança. Olho para o prédio do Consulado da Itália e lembro de um pesadelo que tive justamente dali, me suicidando mas caindo em câmera lenta e acordando molhado de suor. Isso tem muitos anos mas nunca me esqueci, porque foi um pesadelo com final feliz. Feliz? É, eu me salvei. Não sei se foi realmente feliz, mas escapar da morte é uns vitória, acho. 

A grande avenida com poucos carros, quase nenhum, mas todos apressados porque ninguém quer perder um segundo que seja.

Na calçada, sempre tem gente morrendo a prazo e isso é devastador, mas ninguém liga e fica por isso mesmo. A regra é a desumanidade. O outro que se dane. Fico triste em lembrar de um colega que me parece tão desumano agora. Bom, a maioria é assim. 

Perto do grande prédio da Academia, a bela estátua do poeta Manuel Bandeira, muito parecida com o original. Perto dele, Joaquim Nabuco. 

Uma garotinha vendendo balas pra ninguém, provavelmente longe de todos os seus sonhos e tenho vontade de desistir, porque nasci no país do futuro que nunca chega e estou morrendo completamente distante de tudo que sonhei para mim, bem como para a coletividade. Crianças deveriam estar brincando, lanchando, descansando, estudando e vivendo a melhor época de suas vidas, logo está tudo errado. 

Eu não preciso olhar para o Whatsapp porque não tem mensagem alguma. Sou eu caminhando pelos restos mortais da glória da cidade, com uma pistola apontada para a minha cabeça e tentando respirar, enquanto olho à distância para a Santa Casa. Eu me sinto tão derrotado que poderia serrar ali mesmo e chorar até morrer. 

Eu ando pelo mundo e choro, e daí? Por que não posso ser diferente dos lacradores, dos senhores com peito de pombo? Por que não posso dizer e sentir o que realmente sinto, se ninguém vive essa vida miserável e deprimente no meu lugar? A minha vida não é o meu lugar de fala, ora? Eu estou tripudiando de quem vive uma vida de aparências e mentiras? Não. Posso me sentir infeliz em paz. 

Aí o Fluminense. Todos estão sonhando com um ingresso para a decisão. Eu estou tranquilo: quem tem uma arma apontada para a cabeça 24 horas tem outras prioridades. Eu queria estar lá mas já vi muito. Edinho, Assis, Romerito, Renato, Magno Alves, Antônio Carlos, Sheik... Já vi muita coisa e já escrevi demais. O Fluminense talvez seja o nosso único amigo, de nós tricolores. A gente pensa nele, sonha com ele, quer o melhor para ele. Sem o Fluminense, o que teria sido de mim? Quantos e quantos dias ele não me deu sentido à vida, alegria e bem estar? Eu lembro dos campeões da Taça Rio de 1990, mas ninguém liga porque agora só a Libertadores interessa. Futebol é bom demais, só o esnoba quem é muito, mas muito ignorante. O futebol já salvou minha vida e a de muita, muita gente. Já evitou muitos suicídios e adiou as famosas últimas palavras em leitos de despedida. Mesmo com todos os seus problemas, o futebol foi um dos únicos ambientes onde vivi momentos verdadeiramente felizes. Eu ainda me lembro dos garotinhos descalços na porta do Maracanã, sonhando em entrar no estádio, até que pessoas como meu pai vinham com quatro ou cinco ingressos e os garotos viravam foguetes em direção à lua, de tão felizes. Subiam a rampa cantando e rindo. Que momento!

Eu ando pelo mundo, tenho sessenta anos de vida e dez de sentimento. Eu ainda penso em brinquedos, lancheira e desenho animado. Meu espírito não se encaixa em meu corpo: um garoto que sonha com o futuro ocupando o corpo de um homem idoso. E ser criança é a única chance de afastar a pistola apontada para a minha cabeça. 

Na esquina, está minha lanchonete favorita da infância. Estava. Ela acabou. Faliu. Há uma grande faixa de "aluga-se" mas nada será alugado mesmo. A cidade é cheia de anúncios e cartazes, e cheia de gente dando adeus. Aluga-se o mundo, quem tem dinheiro? 

Caminhando sem canto, com medo, sem esperança, sem amigos, sem pai nem mãe mas ainda igualzinho a quando tinha sete ou oito anos de idade, olhando os prédios e as pessoas com curiosidade e empatia, sem receber nada além da indiferença em troca - não nos esqueçamos, esta é a sociedade do descaso, do desprezo, do descompasso entre discursos e ações. Esta é a sociedade da hipocrisia, onde a solidariedade, se muito, surge nas condolências e às vezes sequer isso. É a sociedade que absolve qualquer canalha na hora da morte, mas humilha e deprime pessoas honestas por toda uma vida. É a sociedade da falsidade e da bajulação acima de tudo. 

Depois do almoço, dois quilômetros depois, espias o deserto da Praça Tiradentes. Há um clima de desolação, exceto na nova loja de empréstimo pessoal - claro, o dono sabe que terá lucro máximo explorando gente pobre. As pessoas vão se humilhar. A vida é assim.

Aluga-se. Vende-se. Não há vagas. Tanto faz se é noite ou dia, exceto pela chuva e saber que, a cada manhã, a Supervia humilha e ridiculariza centenas de milhares de cariocas. Ninguém liga. 

Falei de ontem e hoje. A noite passou. Mais um dia, mais um cumprimento de pena para milhões de pessoas. Numa cidade esvaziada, a chuva ajuda a detonar de vez o movimento das ruas.

@p.r.andel

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