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Saturday, August 19, 2023

Três botequins mortos

Entre dezembro de 1983 e agosto de 1990, se passaram mais de dois mil dias. Em 90% deles eu dediquei pelo menos uma hora diária ao Sniff's, o mitológico botequim que ficava aos pés da escada rolante que levava ao Teatro Teresa Raquel, o Teresão, um dos símbolos da cultura nacional, hoje Teatro Claro. Foi uma fase muito importante da minha vida, dos 15 aos 22 anos, onde pude aprender muita coisa com os veteranos da área, rir de montão, chorar um pouco e infelizmente até brigar. Faz parte da vida. O mais incrível é que fui um frequentador de botequim praticamente sem consumir álcool: ficava na Coca-Cola e no suco de morango ao leite. Anos depois, incentivado por minha amiga Ana Elisa, acabei escrevendo um pocket book sobre o Sniff's, um dos que mais gostei de fazer. O boteco resistiu a planos econômicos, golpes de estado, inflação galopante, desemprego e o escambau, mas perdeu a batalha para o COVID-19. Vida que segue. 

Eu vivia no Sniff's porque meus amigos escoteiros - sim! - lá estavam diariamente. Depois, os maravilhosos personagens do bar eram uma atração à parte. Por fim, apareciam as celebridades artísticas e culturais por conta do Teresa Raquel, então estava formado o grande caldo cultural para boas conversas, muitas hilariantes e outras que chegavam à beira da porrada. Era nosso bar oficial. Não tinha nenhum atrativo que cativasse o público além da birita e do bom papo. Comer por lá, nem pensar. 

No circuito do Shopping dos Antiquários, que não tinha esse nome nos anos 1980, o Sniff's teve dois concorrentes por longo tempo, melhor dizendo, um - o outro durou menos. Eram o Bole-Bole e o Abílio, que tinha outro nome mas só o chamávamos pelo nome do dono, gente boa. O Abílio durou anos e anos, o Bole-Bole acabou nos anos 1980 mesmo. Ambos eram nossos points ocasionais, às vezes para prestigiar os outros comerciante, noutras vezes em greve contra o Sniff's por algum motivo que nunca passava de dois dias. 

O Abílio ficava de um lado da grande e maravilhosa rampa circular do Shopping, bem em frente aos Supermercados Leão (onde tomávamos Ice Cream Soda nos sábados à tarde). Era um boteco simpático e nele os clientes comiam, ao contrário do Sniff's. Estava sempre cheio. Já o Bole-Bole ficava do outro lado, no outro corredor e estava sempre vazio. Era um refúgio de bebuns. Quem o comandava era Marieta, algo incomum para uma mulher naqueles tempos, onde volta e meia recebia alguma cantada dos fregueses. Quando o cidadão passava do ponto, ela dizia barbaridades sexuais que deixavam todo mundo sem graça e o assunto morria. 

O Bole-Bole era famoso por seus acepipes trash e uma pimenta que assustava todo mundo, mas devia ajudar a encarar os pratos. Em certa ocasião, nossos amigos João e Jésus fizeram uma aposta: o primeiro pagaria uma grana se o segundo encarasse uma almôndega do bar com uma pimenta quadrada aterrorizante. De olho na bufunfa, Jésus pegou o pratinho com duas almôndegas estilo semana passada. Abriu o garrafão, tacou a pimenta e mordeu. Ficou impassível, mas não conseguiu esconder as lágrimas quando mordeu a pimenta. João só ria. 

(continua)


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