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Monday, August 21, 2023

Tchau, Raul

Naquele tempo eu tinha uns três períodos na faculdade, que escorreram como se fosse água na pia. Vivia encantado pelo prédio, pelas programações culturais - shows de rock e jazz, filmes de arte na concha acústica -, pelas garotas - todas lindas, cada uma de um jeito. Enfim, eu era o garoto pobre que conseguiu passar para a universidade pública em condições precaríssimas. Quando não estava na casa do Fred ou jogando botão no Luizinho, a UERJ era minha casa. 

Passei um dia inteiro por lá. Assisti aulas de manhã, levei Alessandra no ponto do ônibus, depois fui almoçar num restaurante natural que ficava lá na Souza Franco - a comida era deliciosa, barata e você podia repetir. Alguém da turma foi comigo, Gerson talvez, Alexandre, alguém mais. Voltei pra faculdade, eram quase três da tarde, melhor ficar e economizar a passagem de ônibus. 

Sentado no hall, fiquei lendo alguma coisa de Kerouac mas não mostrei pra ninguém. Eu era garoto, ali era um ambiente careta, a maioria não ia entender. Depois parei, a turma começou a falar de futebol e depois de música. Eram verdadeiras aulas, às vezes mais interessantes do que as da sala. 

Rapidinho bateu seis da noite. E choveu. Fez frio. Muita gente não apareceu, o corredor ficou vazio e triste, não havia risos nem musas. Assisti os dois primeiros tempos e depois avisaram que não ia ter a outra aula. Eu evitava de chegar em casa muito cedo, porque era uma época muito difícil de alcoolismo do meu pai, então tudo era briga, eu evitava ao máximo. 

Do nada, surgiu o Zé. Ele atrasadão, nem sabia que não teria outra aula, já se preparava para voltar pra casa. Eu não tinha mais nenhuma programação, resolvi descer. Voltar pra Copacabana, fazer hora no Sniff's e chegar em casa com os pais dormindo. Do nada, resolvemos parar no Bar do DCE, completamente vazio, e pedimos uma cerveja - lá vendia. Conversar um pouco e aliviar as dores da juventude sem emprego, sem dinheiro, chamado de vagabundo, sonhando em ter uma calculadora. 

Eu, Zé, o atendente do bar, o ventinho na varanda e tocando Rádio Fluminense - você tem ideia? Trocamos ideias, deu para gastar exatamente uma garrafa de cerveja. De repente, um rock depois do outro, entra uma faixa de Raul Seixas e o Zé vibra, porque era muito fã. O som baixa e a locução anuncia a morte de Raul Seixas. 

Em silêncio, pedimos a segunda cerveja. O Zé ficou transtornado. Eu, mesmo não sendo fã apaixonado mas ligado no trabalho do ômi, de repente senti um enorme, enorme vazio. Bebemos a cerveja em completo silêncio, com o Zé às vezes cortando a mudez: "Car@lh0, morreu Raul Seixas". A gente sabia que ele andava doente, mas ainda era muito novo. Muito.

Tudo era silêncio. Nossa descida para a portaria, o pedido de carona na entrada da UERJ - acredite: isso existia! -, nossa despedida. Meu amigo ficou triste paca. Eu consegui um bonde para Copacabana e, chegando ao meu bar oficial, lá estavam as pessoas chorando. Raul Seixas morreu. 

Engraçado que hoje achei a noite mais silenciosa e apavorante do que de costume. Há pouco, soube do aniversário da morte do Raul. Voltei exatamente naquele dia e senti exatamente a mesma tristeza, aquela não de um fã apaixonado mas modesto, certo de naquela noite fria do DCE, havia um gosto de derrota do Brasil numa Copa do Mundo, com a diferença que no futebol sempre é possível sair da adversidade para a glória. 

Uma tremenda saudade do Zé e da nossa juventude. Em 1989 eu ainda achava que o ser humano era viável. Toca Raul! 

@pauloandel

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